edição 45 | dezembro de 2013
temas:  mentira | tesão | fé

 

5 poemas
adriana riess karnal 


tesão recolhido

 

 

As roupas no varal

depois de recolhidas

esperam pernas

dorso e abraços.

Ah! Se soubesses como anseio

O que tu escondes!

 

 

 

 

lascívia

 

 

Lascívia é uma mulher.

Às vezes abre a gaveta

busca a caneta

da caixa aveludada.

Deixa que deslize por entre as mãos

e que ganhe a grandeza

de um falo em seu momento.

Inconsciente de si

apenas brinca de escrever seu nome

com outros sobrenomes.

 

 

 

 

fé I

 

 

Para conhecê-la verdadeira

é preciso compreendê-la

na justa medida

que te cabe inteira

a fé em ti.

 

 

 

 

fé II

 

 

Não quero que sintas

o que sinto.

Quero-te nova

brisa fresca.

Que saibas de ti

por ti.

Sem a crença

da velha Jericó

cansativa caminhada

do menino

e seu burro.

 

 

 

 

mentira

 

 

O buraco no dente do velho

A espera na fila

O olho por olho

Tanto faz a carne

Cozida, crua

A fome não mede o estômago

Nada disso importa

A gente vive simplesmente de mentira.

 

 

Adriana Riess Karnal é professora universitária, mestre em linguística aplicada e doutorado sanduíche na Universidade de Pittsburgh. Pesquisa sobre leitura em língua estrangeira e é poeta nas horas e vagas do mar. Publica em seu blogue: adrianadixson.blogspot.com.

 

©thereza portes

 

 

entre varas
ártemis klabin


A primeira coisa que eu notei foram suas mãos, grossas, calejadas na medida, a visão do dedo anelar totalmente desobstruída, um sinal de que essas mãos não estavam a perpassar o corpo de nenhuma mulher numa base regular. A segunda coisa que eu notei foram as suas sobrancelhas não feitas, o que me arrancou um suspiro de alívio. A terceira coisa que eu notei foram os olhinhos pequenos, de jabuticaba, condizentes com a advocacia passivo-agressiva que praticava na minha frente. Defendia uma empresa acerca de verbas trabalhistas quaisquer. Era muito difícil ficar inteiramente do lado do meu cliente quando minha calcinha já dava sinais de ânimos decididamente conciliatórios lá em baixo. Ele, sempre um fofo durante a eternidade dos quinze minutos que se passaram desde que nos conhecemos, estava alentando e chegando a um acordo. Consultou o celular pela enésima vez e fez que ligaria para a empresa, numa tentativa de fazer nosso acerto vingar. Quando se levantou, pude ver na tela do seu celular o número preciso de zero vadias agarradas em seu pescoço, ou dando-lhe beijos constrangedores na bochecha, ou dividindo espaço na cama. Também não vi foto de poodle (novamente alívio). Ao invés disso, vi um pôr-do-sol lindo que devia vir como configuração padrão no aparelho. Sempre confie em advogados para deixar as coisas o mais padrão possível (aliás, o meu protetor de tela também era de série). Quando ele voltou, só consegui lembrar que hoje estava usando a minha meia-calça um pouco rasgada acima da linha do sapato e estava me odiando por isso. Queria ter um pensamento menos pueril e mais mulher-independente-que-não-se-conforma-com-expectativas-masculinas, mas só conseguia pensar no rasgo e na minha vontade de que ele não fosse notado. Queria ter um pensamento mais ponderado, mas aquelas sobrancelhas não feitas, os olhos de jabuticaba, a advocacia passivo-agressiva e todo aquele joguinho de gato e rato básico inerente a advogados quando em audiências estavam queimando todos os meus circuitos que não acendiam os sensores de gata-você-quer-totalmente-dar-pra-ele. Queria saber o que aquele volume tímido na calça escondia, queria saber o gosto da boca dele (que se contorcia em um sorriso cansado típico de profissionais liberais em fim de ano), e se o cliente, o preposto e o servidor não estivessem ali, quiçá poderia descobrir ali mesmo. Iria demorar algumas horas até algum guarda do Fórum Trabalhista notar a súbita ausência de movimento naquela sala em específico e ir investigar. Chegamos ao acordo e apertamos as mãos, como o métier pede. Estava em alta tensão e tocá-lo não ajudou. Levantei desajeitada, com os saltinhos frouxos e o rasgo na meia, e o segui, sem saber exatamente como prosseguir. Conseguimos ficar sozinhos no elevador não sei como, quando me peguei dizendo Doutor, o senhor parece cansado... É sexta-feira, Doutora... É, foi uma semana difícil, só quero um drink e uma boa cama... Nesse exato momento, o elevador parou totalmente, nos deixando em total escuridão. Que ótimo, uma pausa dramática bem depois da minha frase mais piranha do dia. Ainda consegui sorrir por dentro pensando que agora ele não veria o rasgo na meia-calça nem fodendo. "Tá, talvez fodendo, ele visse". A voz dele veio interromper minhas comunicações internas: seu drink vai ter que esperar, Doutora. QUE. MARAVILHA. Eu tinha planejado fazer algumas reclamatórias à tarde. Bom, sua audiência era minha última do dia e meu escritório não tem expediente sexta à tarde. Sorte a sua. A voz dele alternava a doçura dos olhos de jabuticaba e safadeza que todo homem deve ter. Começamos a falar de casos (do que mais falaríamos?) e eu era só imaginação. Fazia amor com aquela voz incorpórea no maior estilo êxtase-de-Santa-Teresa, sem ousar chegar perto do cara, apesar de querer muito. Minha saia estava apertada demais e gêiseres explodiam em meu interior. O que foi isso? Merda, eu já tava me entregando em som. Falei que tinha dado conta do rasgo da minha meia-calça, por falta de coisa melhor pra comentar. Merda de novo. Ele deu risada. Minha gravata tem um rasguinho na ponta também, quer ver? Era uma deixa muito boa. Me aproximei, peguei a gravata, notei o rasgo e ao devolvê-la ao torso dele, tomei o cuidado de notar a pelagem que lhe subia pelos lados do umbigo, por dentro da camisa já um pouco suada. E aquela ideia do drink? Que tal o Viúva Negra, aqui perto? Que horas? Às seis. A luz voltou nessa hora e nos apressamos em ajeitar o cabelo e aparentar normalidade para quando as portas abrissem no térreo. Quando saímos, ele mandou, investido de súbita confiança e charme Já estamos fora do elevador, Doutora. Já pode mudar de ideia sobre o drink, se quiser. Ah, o olhar carinhoso de jabuticaba. Por um minuto, fico com mais vontade de beijá-lo do que tê-lo dentro de mim, mas isso passa logo. Já conseguia imaginá-lo fodendo a minha boca e me dedando naquele momento, mas eu teria que esperar até à noite. Deixe disso, Doutor. Nos vemos lá.

 

 

Ártemis Klabin é publicitária, professora e inquieta. Irrita-se com a expressão "relacionamentos modernos". Costuma ser sociável — exceto às terças-feiras. Diz escrever em busca de conhecimento de si, dos outros e do mundo, mas, com frequência, contraria suas próprias motivações.

 

 

6 poemas
bianca velloso 


as más e as boas

 

as más línguas

tão sisudas

estão sempre ocupadas

com fofocas,

em defesa da moral

e dos bons costumes

nada além de

discursos moralistas

 

já as boas línguas...

ah, as boas línguas!

— a tua e a minha —

que delícia!

tão livres

e desbravadoras

aventuram-se

pelos recônditos

mais secretos

do corpo

não defendem nada

apenas sentem

e incendeiam!

 

 

 

 

todo cuidado é pouco

 

 

Minha poesia

é espelho d'água

é buraco negro

é mar bravio

minha poesia

é o olhar

de uma fêmea

no cio

 

 

 

 

oração 1

 

 

A gente reza:

— Livrai-nos do mal, amém.

 

E Deus responde:

— Amem. E mais nada, só amem!

 

 

 

religião - (re)ligare

 

Os deuses nascem dos sonhos da gente

Tem gente que gosta de sonho de padaria

Eu prefiro sonhar meus próprios deuses

 

Descobri, num desses sonhos caseirinhos,

Que a gente nasce dos sonhos dos deuses

E os deuses sonham sonhos de amor

 

 

 

invertendo os papéis

 

Para me provocar

foi para a cozinha

preparar o almoço

— sem cueca —

primeiro toquei-o com o olhar

depois olhei-o com as mãos

e o prato do dia?

homem menino

al dente

ardente

no fogo de nós dois

 

 

 

 

quando o verão voltar

 

Vou cozinhar teu jantar

Só de avental

— e sapato de salto —

 

Que tal?

 

 

Bianca Velloso. Filha da Terra, irmã da humanidade, mãe da Helena. Nasceu gaúcha e ainda criança tornou-se catarinense. Tem como matéria-prima o olhar: traz no peito a optometria e na pele a poesia. Suicida para renascer.

 
 

 

2 poemas
dama maurícia 


orgasmo

 

 

O tesão

me jogou no preci

p

í

c

i

o

:

 

caí

sobre

o

prepúcio

e nunca mais

me levantei.

 

 

 

 

 

 

Atravesso o mês

comendo migalhas

:

algum dia

serei bem

esmigalhada.

 

 

Dama Maurícia: nasci Flor no berço chamado Pindamonhangaba. Graduada em Letras e desregrada em letras. Aspiro o narcótico dos versos com os quais aspiro inspirar a vida. Sou discípula do poeta esquizofrênico Ciorimau Rolheivaca.

 

 
 
 
 
encontro
jeanne araujo
 


Então, foi realmente uma mentira. A mentira mais escabrosa que já inventei na vida. Claro que não me arrependo de nada. Usei a mesma tática dele, disse que estava morrendo de saudades, que se ele viesse eu me jogaria aos seus pés. Planejei tudo, tim-tim por tim-tim. Maldosamente. Ele iria me pagar todas as noites insones e chorosas. Cada pedacinho de sofrimento. Vesti meu melhor vestido, aquele, que deixa meus seios lindos e eu sei que ele adora. É claro que ele veio correndo, prometi e jurei tesão imenso. Disse que não conseguia nem dormir de tanto desejo. Homem adora ouvir isso, que a mulher tá subindo pelas paredes de tesão por ele. E ele veio sim, correndo. Marquei o encontro no café do centro, para ficar mais longe e de difícil acesso para ele, que morava bem distante. Cortei meu cabelo, pintei as unhas, perfumei-me e ei-lo que caminha em minha direção, ofegante, suando em bicas. Cruzei as pernas e pensei: Hoje ele me paga! Chegou e deu-me um beijo na testa. Sentou-se e pediu uma cerveja. Aqui só tem café, querido — comecei o martírio. Ele odeia café. Ele apenas sorriu e pediu uma água. Ai que ódio, água tinha em qualquer boteco, até na farmácia. Enquanto ele me perguntava pela família, faculdade, amigos em comum, eu cruzava e descruzava as pernas, de forma que minha calcinha aparecia de relance e ele começou a ficar visivelmente nervoso. O garçom trouxe a água que ele tomou sofregamente. Passei as mãos no cabelo, molhei os lábios com a língua, fiz todas as caras e bocas que podia e sabia. Até que ele me olhou bem nos olhos e disse: vamos sair daqui, ir pra um lugar mais tranquilo? Claro que eu topei. Fazia parte do plano. Eu queria vê-lo implorar por mim. Pedir, chorar, ajoelhar-se aos meus pés. Dizer que me amava, que eu era a mulher da vida dele. Que aquela piranha com quem ele saiu no fim do mês passado não representava nada. Eu iria pisar com meu salto agulha no orgulho dele. Então fomos pro motel mais próximo. Pedi a suíte mais cara, eu queria que ele sentisse no bolso também. Minha vingança abordava todos os lados. Ele nunca me levava a um restaurante ou barzinho mais chique. Eram sempre os mesmos. Nem uma decoraçãozinha mais fashion. Nada. Mas a piranha ele tinha levado pro melhor restaurante da cidade. Ia me pagar com juros e correção monetária. Disse a ele que iria tomar um banho e que ele me esperasse. Tomei um belo banho, vesti meu espartilho preto e voltei ao quarto. Ele arregalou os olhos de susto e desejo. Veio ao meu encontro, pegou-me pela cintura e me puxou de encontro ao peito. Puxou meu cabelo à altura da nuca e sussurrou ao meu ouvido: Eu gosto tanto de você... Pronto, isso bastou para eu esquecer vinganças, salto agulha e piranhas. Amoleci em seus braços e acordei sozinha. Quando é que eu vou aprender?

 

 

Jeanne Araujo (Acari/RN). Poeta, escritora, professora. Formada em Letras. Vive em Ceará-Mirim/RN.

 

 

 

3 poemas
kátia ribeiro de oliveira 


mentira

 

A mentira é tudo aquilo que com o tempo muda.

 

 

 

 

tesão

 

 

Tá no olhar.

Na intensidade das palavras.

Na concretude da experiência.

No mistério que somos nós.

No interesse que temos um pelo outro.

 

 

 

 

 

 

Acreditei em tudo que vi sem duvidar. Mas com o decorrer do tempo

tive que duvidar de tudo o que acreditava. Então descobri que a fé era

o que me guiava.

 

 

Kátia Ribeiro de Oliveira nasceu em Porto Alegre. Morou em Brasília e São Paulo. Vive em Belém. Pós-graduada em Direito Público, Direito Processual e Direito Ambiental. Tem poemas e contos selecionados em várias antologias nacionais e internacionais, dez livros infantis organizados, um de contos, dois de poesia e um romance. Quatro peças de teatro. Escreve textos no Portal Cronópios e artigos no Observatório da Imprensa.

 

 

poemas
lílian maial 


vamos à próxima poesia

 

 

Tudo o que eu queria era ser teu poema.

Um poema estranho, ao mesmo tempo familiar.

E que me lesses.

Lesses aos poucos, sem pressa,

calmamente, deixando-se impregnar

de cada palavra que te me dissesse.

Que me soubesses de carne e osso,

de fala grossa, de estremecer tuas estruturas de homem.

Que te acostumasses com meus pensamentos argutos

de mulher inquieta, que sai do lugar e expressa a vontade,

o direito, a liberdade, assim, com destemidos verbo e vigor.

Queria que tu me lesses atentamente,

a página inédita da complexa técnica cirúrgica,

da promissora droga capaz de auxiliar a cura da enfermidade mais desafiadora.

E, então, seria possível seguir.

Seria perfeito entregar.

Ouvir minha voz em tua boca,

Sentir tua boca em minha carne,

Ter a tua carne em minhas mãos,

Tuas mãos em minha mente,

Tua mentira em meus olhos.

Eu, a mulher, teu pilar,

teu pasto, teu desacato,

a rima dos versos livres,

a sem-vergonha ali da esquina,

a que não te quer e que não te deixa.

 

 

 

 

por una cabeza

 

 

Teu cheiro é tango

Teus passos, planos

Rosa entre os dentes

Segredos rentes

se sou perita

la cumparsita

Caio e me arrasto

Perante os pés

 

Sou teu brinquedo

Morra de medo

Dessa parceira

Tão inequívoca

Eu sou carnívora

Tua rameira

Teu gosto é tango

Teu olho, afronta

És meu maestro

Sou violino

Me ordena puta

me entrega a conta

me esfrega a ponta

dessa batuta

 

Falta-me o ar

Por essas patas

Corcel nos peitos

Égua a voar

não tomo jeito

sou picareta

 

na tua boca

eu sou canção

e no salão

pura perfídia

jogo a orquídea

na contramão

 

e o menestrel

nos devaneios

boca nos seios

sugando o mel

 

bolinei o traseiro de Gardel!

 

 

 

 

sarça

 

 

Maria do abajur lilás,

dos sonhos da luz vermelha,

tinha visões de pecado,

tremores suados profanos.

 

O quarto perfumado a flor,

escuso cheiro de bordéis de quinta,

cultivado em frascos de vento.

 

Parede pregada de santos,

era devota confessa,

não dormia sem uma salve-rainha

e um pai nosso:

ajoelhava e rezava.

 

Bem no meio da homilia,

o pai arfava e gemia:

— Ave Maria!

 

 

 

 

marionete

 

cansada das cordas

improvisou:

mexeu os pauzinhos...

 

 

Lílian Maial. Carioca, médica, escritora e poeta. Publicou, em 2000, Enfim, renasci!, com 135 poemas, e tem participação em dezenas de antologias, desde 1999. Coordenadora Regional, no Rio de Janeiro, para o MIP (Movimento Internacional Poetrix), teve poetrix publicados em Antologias Poetrix, de 2002, 2007, 2009 e 2010, além de ter organizado um e-book com poetrix de 10 participantes do MIP. Filiada à REBRA (Rede de Escritoras Brasileiras), participou de quatro antologias lançadas nas Bienais do Livro de São Paulo. Filiada à APPERJ (Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro). Foi Consulesa do Rio de Janeiro para o movimento "Poetas del Mundo". Tem trabalhos divulgados em inúmeros sítios nacionais e internacionais, é colaboradora de revistas eletrônicas em vários Estados do Brasil e no exterior. Mais www.lilianmaial.com |lilianmt.zip.net |lilian.maial.zip.net |www.facebook.com/LilianMaialPoesia.

 

©thereza portes

 

enquanto sou temporária
malu f alves 


rosas

mais de mil rosas

soltas sobre o meu túmulo

todos os buquês em desalinho

os que o amor me deu foram poucos

ou  nenhum

homens com as mãos para trás

escondendo meia dúzia delas

e milhares de estórias mal contadas

as rosas que foram murchando

nos olhares mentirosos

me esconderam muito mais que um

 

ramalhete

 

um buquê que nem foi montado

porque não havia razão

então, no meu túmulo

eu quero

mais de mil rosas

todas elas

inclusive as que nunca foram compradas

podem ser roubadas, esquecidas

arrancadas com a força de um braço de um amante

estou pagando por todas elas

de todos os tipos

perfumadas ou não

eu preferia que elas estivessem apertadas

 

no laço do punho de um homem

 

que nunca me amou

como eu queria

com muitas rosas

milhares delas sobre os olhares

sepultos

que a minha espera atenta aguardou

milhares delas

 

caindo de todas as expectativas

 

rosas aos milhares

que escondam a lápide!

(é estúpido demais este pedido?)

 

 

Malu F Alves (Santo Antônio de Posse/SP, 1952). Poeta, publicou Velho é o Espelho (Ateliê Editorial, 2007). Vive em São Paulo desde 1970.

 

 

 

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