edição 45 | dezembro de 2013
temas:  mentira | tesão | fé

 

luz de agamben
bernadete reutman 


*

 

Vinha de uma família de intelectuais.

Seu pai, Antônio Pródigo, é professor de física nuclear aposentado.

Sua mãe, Nícia Tavares, até hoje escreve artigos sobre literatura para jornais e revistas do mundo inteiro, além de ministrar palestras sobre a névoa de que a literatura é representante1.

Criança, Clara tinha mania de pintar as unhas, uma de cada cor. Adolesceu sem perder o bizarro costume. Por isso, jamais deixava de usar roupas brancas ou pretas: para não roubar das unhas a majestade. Casa cheia de livros, quando morava com os pais. Agora, seu apartamento de dois quartos vive abarrotado deles, inclusive e sobretudo o quarto do fim do corredor, exclusivo para os livros.

Perguntara ao pai sobre a explosão. Como a capital sediaria evento mundial de grande vulto, e a mídia estaria de olhos esbugalhados para tudo, não cairia bem que a sede do evento fosse banhada por uma baía coalhada de cagalhões a lhe enfeiarem a vista. A explosão, programada, seria a primeira da história. Neutrinos, dizia o pai, que, no momento da explosão, seriam direcionados para destruir aquelas cadeias químicas que compunham 93,75% dos dejetos diariamente lançados na baía. O resultado seria a sua imediata despoluição, precedida por um cogumelo de dimensões absurdas e cor azul, a cor fugidia do neutrino, podendo o cogumelo ser visto de Luanda com um bom par de lentes.

Entretanto, ativistas ambientais lutavam pelo cancelamento da explosão e danavam a impetrar mandatos para tal, argumentando que a programação faria com que três espécies de ave marinha, comuns no entorno da baía, igualmente fossem exterminadas, por conterem em seu tubo gástrico diversas das cadeias químicas que a explosão teria como alvo. Os mandatos foram negados. As canetas que os negaram, premiadas.

Na época da graduação, um professor já lhe havia dito que os malaios costumavam fazer buracos no tronco dos bambus e depois, quando o vento batia, ficavam deitados na terra feito abóboras esparramadas, ouvindo as sinfonias tocadas por aquelas gigantescas harpas eólicas. Era uma citação livre de Strindberg, ela sabia, mas ficava imaginando malaios deitados, e a estranha canção amodal dos bambus: contemplação. Em seguida, pegava um livro sobre arte rupestre, abria-o e fechava os olhos, imaginando-se uma arqueóloga extasiando-se frente a uma caverna cheia daquelas estranhas inscrições, em seguida uma explosão, pedras caindo e impedindo a passagem para fora da caverna, ela presa, os carregadores e ela, aqueles homens fortes que falavam uma língua que ela compreendia se alguém silabasse, lento, meloso, dias se passando, agora eles a comendo, ela melada de suor, pouca água, pouca luz.

Contemplação. É isso que ela agora fazia, depois de concluída a leitura do livro que tem nas mãos. Não era um livro qualquer. Era o livro mais incrível que já lera, e por isso não achava correto que seu destino fosse o cárcere de sua biblioteca.

Precisava ir ao supermercado, pensou, entre uma e outra lufada de vento que vinha da baía. Depois pensaria no fim que daria ao livro.

Depois de digitar a senha do cartão, Clara passou as compras do carrinho para o porta-malas. Resolveu deixar no carrinho de compras vazio o livro (entenda-se: não o livro vazio, mas o carrinho, embora vazio seja adjetivo que se enquadre em diversas situações). Alguém o acharia, pensou, enquanto dava a partida e, dos alto-falantes do carro, o locutor anunciava para dali a alguns dias a explosão programada.

 

***

 

Estavam juntos há menos de dois meses, mas Robério amava aquele menino quase dez anos mais novo que ele como se fosse ele próprio, seu umbigo, meu umbigo, seu tudo, meu tudo. Robério é nome de remédio para dor de barriga, disse-lhe Dô, apelido de Donato, o menino por quem ultimamente vinha respirando e a quem acolheu em seu apê em frente à baía encagalhada. Dô disse e deitou-se em seu tornozelo. Seu pé, adoro o seu pé, teria sussurrado, mas Robério apenas ouvira um murmúrio sem compreender seu significado. Não perguntou, pois estava preocupado, pensando em duas coisas. Primeiro, que precisavam ir ao supermercado, a geladeira estava vazia e Dô adorava cozinhar coisas inusitadas. A segunda coisa era uma pergunta que não conseguia responder, misto de medo e curiosidade: o que aconteceria dois dias depois, quando a explosão ocorresse? Afinal, seu apê dava frente para o lugar de onde vários neutrinos seriam liberados.

Depois de uma fila em que sofreram por quase quarenta minutos, os dois homens, já com o carrinho carregado das compras, passaram por um carrinho abandonado no estacionamento. Dentro do carrinho, um livro. Alguém o esqueceu, supôs Robério, pegando o volume e abrindo-o na folha de rosto. O dono anterior o deixara propositalmente, pois o achara fantástico. Robério leu algumas frases da primeira página e resolveu deixá-lo onde estava. Decidiu ocupar a cabeça pensando que precisava deixar de molho na água quente por trinta minutos aquele chitaque fantástico que comprara. Dô prometera um risoto dos deuses.

 

**

 

Antevia-se sendo preso, apanhando de policiais, envergonhando a todos. Afinal, pegar algo que não era seu constitui roubo. Por outro lado, aquele livro tinha sido deixado no carrinho por aquele casal de gays, os dois com roupas bem coloridas. Fazendo o sinal da cruz, ele lembra-se de ter olhado para a bunda de um deles, muito bem proporcionada, a propósito. Isso foi de manhazinha, início de seu expediente. Ele tinha olhado primeiro a bunda de um deles, depois viu o casal de homens. Agora já estava de tardinha, escurecendo, e nada, ninguém viera reclamar o livro. Título esquisito, numa língua que desconhecia, e com um cheiro muito forte de perfume feminino. Nem a própria língua ele conhecia bem, pois lia às trombadas, torcendo para não encontrar sílabas com mais de duas letras, mais difíceis de decodificar, como algumas de seu nome: Clarivaldo.

No almoço, folheou o livro: sem figuras, só letras. Na superfície do papel, o perfume, muito forte. Levou-o para casa.

Na volta para casa, os viu alardeando o fim. Diziam que Jesus viria em forma de neutrino reatar sua aliança com o Pai, que as almas impuras não seriam poupadas da ação conspurcadora da Grande Luz Azul. Eram pastores, leigos, padres, freiras, loucos, todos na rua, cada um alardeando uma mililitragem maior de derramamento sangue por conta da Explosão de Almaden, sua Luz, sua Vingança. Era o Pai e o Juízo Final.

À noite, deitou-se mais cedo. Abriu o livro e surpreendentemente leu os quatro primeiros capítulos. A história se passava no meio de um deserto, tinha uma estrada, uma árvore enorme, uma puta que pintava as unhas e um monte de coisas que ele não compreendia, mas gostava daquele movimento, daquelas pessoas que surgiam do livro. Sorriu, pensando na bunda daquele gay do supermercado.

Os olhos pesaram de sono. Pegou um pedaço de um jornal antigo, rasgou-lhe um filete e usou-o como marcador do livro. Ligou a tevê e virou-se para dormir. Antes de dormir, lembraria de ter ouvido o locutor do telejornal anunciando para dali a dois dias a tal explosão que mataria os cagalhões da baía tão cheia de graça.

Acordou com o prefeito alardeando no telejornal da manhã que no dia seguinte teríamos o que a mídia vinha apelidando de "Luz de Almaden". Em seguida, a voz do locutor explicou algo que Clarivaldo, ainda tonto de sono, não compreendeu, mas dizia por alto a respeito de um filósofo chamado Giorgio Almaden que, a respeito da explosão de neutrinos, teria dito que o evento seria marcante para a humanidade, pois inauguraria uma nova forma de relacionamento e de comunidade humana, baseada no tom azul do neutrino, que o azul passaria a marcar as relações do novo milênio, blablablá. Levantou-se para trabalhar.

Ao longo do expediente, procurou. Lembrava-se de ter lido o nome daquele filósofo em algum produto do supermercado.

Só no final da tarde, véspera da explosão, descobriu o nome num rótulo de vinho. Decidiu levá-lo para casa. Afinal, talvez aquela fosse sua última noite vivo, pelo menos pelas suposições daqueles loucos que vira na rua dia anterior.

 

***

 

Tinham comprado tudo no mercado. Queriam estar juntos na hora daquela que a mídia chamava de "Luz de Agamben". Se tivessem que morrer, que morressem tomando um bom vinho.

 

*

 

Clara acordou na véspera da explosão com medo. Desde que saíra da casa dos pais, vivia sozinha. Salvo algumas incursões que três ou quatro pênis lhe haviam feito em noites patentes por terem sido apressadas ou etílicas, ela não costumava dividir muita coisa de sua vida, mas agora, pensando naqueles milhares de neutrinos que seriam liberados no dia seguinte; nas dúvidas levantadas por metade da comunidade científica a respeito do acerto da explosão, pois havia perigo de morte; na expressão pouco certa de seu pai quando ela lhe perguntou a respeito: por tudo, teve medo. Medo. Queria passar o dia seguinte em casa, mas acompanhada.

Não sabia como. Ligou para os pais, mas o máximo que conseguiu foi escutar a voz grave do pai na gravação da secretaria eletrônica.

 

**

 

Estava marcado para as oito da manhã. Clarivaldo resolveu faltar ao trabalho, mas deixou o despertador ligado para as sete e meia, pois queria estar acordado. Pela primeira vez na vida, sentiu falta de sua ex-mulher. Na verdade, sentiria falta de qualquer coisa que pudesse representar companhia para o dia seguinte.

 

7h55m.

Hora de Brasília.

Toca a campainha de Clara. Ela abre a porta. Assoma o corpo volumoso de Vanderlei, acompanhante contratado na véspera pela moça de olhos claros e unhas multicor que, nem bem fecha a porta, atraca-se com aquele corpo masculino pago.

Robério abraça Dô, cansados de um sexo desesperado recém-cometido, pensando que o vinho comprado não valia aquilo tudo. Que os neutrinos levassem aquela maldita garrafa.

Clarivaldo acorda com o despertador, liga a tevê no noticiário, abraça-se ao primeiro objeto que encontra (o livro, deixado pela moça de unhas multicor ao casal de gays de bunda bonita) e não tira mais os olhos do monitor. Não pensa em mais nada, a não ser na bunda daquele gay do supermercado.

A luz de Agamben, como um enorme gozo azul, inunda tudo.

 

 

1 "A literatura é algo que não visa a nada, a não ser a si mesma, à sua ausência, que é o abismo. Silvina Rodrigues Lopes afirma ser apenas 'vulgata do pós-modernismo' essa mania de se recusar o hermetismo de que toda literatura se investe. Literatura é mergulho, não elemento de transformação da sociedade, de previsionismo mercadológico ou coisa para ser libertinamente manipulada por homens de marquetingue (dito como se escreve, dissolvendo o inglês em sílabas maternas). O próprio Paul Celan já afirmou ser a literatura uma porção de 'não' no 'sim' da vida comum, da palavra cotidiana, em oposição àquela outra palavra, a palavra literária, engendrada, segundo Blanchot, em seu próprio espaço. Por sua vez, o autor literário deve renunciar a si mesmo e dissolver-se no próprio anonimato, que é uma forma de, no limite, resistir ao comum, à comunicação e à absorção da obra pelo não-onírico, pela outra mania que temos, a de colocar identidades e etiquetas em tudo que nos aparece pela frente". [Aula magna proferida pela Professora Nícia Tavares na abertura do ano letivo de 2007 da Universidade Federal do Rio de Janeiro]

 
 
©thereza portes

 

tal bêbado onde
carla diacov


tal bêbado nas barcaças

 

 

eu e Telminha

pulávamos de

barcaça em barcaça

aproximávamos os paus do medo em épocas de tesão

 

agora havíamos de distribuir

a bebida de beber

e a de foder

 

eu e Telminha

estátuas na barcaça número onze

sal grosso e sal marinho na barcaça número dois

sociedade de rochas em rostos de pedra

como dizia o menino Fabrício Romeu

sociedade de rochas

na barcaça número treze

 

eu e Telminha

e suor e aromas ondinos

na barcaça número oito

algum medo e tanta fé

três ombros em caldo de tesão

no que alcançava minhas vistas

no que nadava minha língua

três ombros na barcaça número oito

oito do movimento do caldo do tesão

 

toda a nostalgia que salga

toda a que sonda

toda a nostalgia que derrama hoje por sobre amanhã

 

pense em caldos

hoje é um caldo

outro é amanhã

 

Telminha

seu rosto de brincar com simetria

outro caldo

 

alegro-me em me referir ao centro de seu rosto

sem esforço

inda conseguindo tingir o nariz

de céu e de mar

Telminha enquanto coisava minhas pernas

Telminha enquanto coisava meu jogo de caldos elevatórios

Telminha que engrena que engrena que demora feito albatroz que demora com as engrenagens do peixe, bicho dado a tanto de caldos

 

pulávamos de barcaça em barcaça

os paus do medo de ser motriz

pulávamos barcaças cheias

de tudo quanto é amuleto de tudo quanto é fé

 

e vai dar nó

sei que esta noite vai dar nó

 

pense em caldos

Telminha é um

outro sou eu

e tesão é película quando tudo pereceu

 

já resmunguei que pulávamos de

barcaça em barcaça?

Telminha e eu

sociedade de rochas em rostos de pedra

como dizia o menino Fabrício Romeu

como dizia o menino Fabrício Teseu

 

 

 

 

tal bêbado no trem

 

 

você não vai olhar

na minha boca

irá procurar no pescoço esmagado do dia

uma palavra entalada na goela

MEDO

também esmagada

vai olhar triste-triste pra mim

me dará um tabefe e só então temerá

 

como embalar a estátua do fantasma no trem?

 

então é mesmo uma questão de ficar

de ser o lugar

de fazer sombra grossa

 

eu não pretendo me alargar

tenho medo da menina dos olhos vidrados

coloco toda a minha fé

na capacidade de me morrer lá por dentro dos olhos vidrados

 

sua passagem, senhor Bomfim

sua passagem, dona Coisinha e sua filhotinha

 

ninguém se aproxima da estação até segunda sorte

ninguém se leva junto do trem até segunda sorte

 

abra a boca

feche os olhos

 

é a física sobre as distrações

 

eu tenho medo e eu tenho tanta fé 

a menina fará o serviço

embalará a estátua do fantasma no trem

 

pois que isso se parece tanto ao conjunto que se sente quando se sente

chamaremos

tal bêbado no trem presumindo a malvada sorte

seus dedinhos imundos

a malvada sorte

 

e uma piscadela de longe

pra menina que fica

pra menina que vai

pra menina que fica

pra menina que vai

 

quero mentir e não posso:

a falha tentativa de suicídio

nada fará aos vidros nos olhos da menina no órgão:

a estátua do fantasma será entregue com louvores

 

 

 

tal bêbado na igreja

 

 

o nome do Anjo Carcomido que ninguém nunca diz

 

a mentira simplificada no formato hóstia

 

seria a hora de acabar com os peixes do poema daquele senhor

colocar para a venda na Rua das Madalenas Malarrependidas

 

meu Pai é eterno

enquanto revogo seu fluído junto da hóstia grudada no céu da boca

 

pode um homem viver esse tamanho de tempo dentro da baleia?

pode uma mulher ter os cabelos como buchas?

pode um homem levantar-se sambando após a morte?

 

hoje é a tristeza da minha fé, Pai eterno

amanhã o cão

então o brio da garrafa arrematada num provérbio que sei muito e decorado nas palmas que espalmam

 

a mentira simplificada no formato hóstia

as mãos

uma sobre a outra

copulando fé

feito o triunfo sobre o altar feito da fé mais pequenina

instigante

pedinte

carniceira

maquiada e

um pouquinho cheirosa

 

cochicho de ouro com asas varridas:

a noite fica mais perto da tardinha dentro da igreja

a saia daquela moça firmou o vinco você sabe em qual intenção

a senhora Inês é viúva só de certezas e só de samambaias

faz tempo não dão um chispe de verniz nos bancos

faz tempo nem o verniz nas caraças

 

fui atingido de raspão por um dos autos prateados na entrada

não foi nada não

quero dizer que nem de raspão

mais foi o muito do susto

 

senhor

venho ajoelhar-me na tua casa para pedir um novo cachorro companheiro

já faz dez morreu Juazeiro

não fosse pedir muito

queria muito

um dos branquinhos com bolas e botas pretas

ah, meu senhor

não seja pedir muito

quanto pode custar muito pro senhor um não fosse pedir tanto?

 

pronto

estamos prontos para não colar a mentira no céu

o da boca

o da boca

o

da

boca

 

entonces

uma lesma miudinha entra na igreja bem na vez do sermão mais muito

pronto

a miudinha é manicômio de quem vê

e seu rastro faz reparar

muito profundamente

o furo furado no sapato e na cabeça do tão bêbado

agora e temporariamente

acolchoado pelos muitos do Anjo Carcomido

cujo nome

ninguém nunca sopra

ninguém nunca crê

©thereza portes
 
 
 
3 contos
carla luma
 


Navegar é possível; viver, fundamental

 

 

"La vraie civilization... n'est pas dans le gaz,

ni dans la vapeur, ni dans les tables tournantes.

Elle est dans la diminution des traces du pêché originel"

Baudelaire

 

Quando fui anunciada como candidata ao Nobel de Literatura, um pseudocritico literário, cujas resenhas são publicadas em um grande jornal de Nova York, acusou-me de fraudar a literatura "costurando pequenos episódios do cotidiano, intercalando passado e presente em um estilo sem brilho e de conteúdo banal".

 

Eu não estou me queixando. Essa foi também a minha opinião quando li F. Scott Fitzgerald, sem saber que O Grande Gatsby seria depois considerado um dos mais importantes romances da literatura norte-americana e que atualmente tem lugar assegurado em muitas centenas de listas das melhores obras literárias de todos os tempos.

 

Dito isso, eu tenho certeza de que àquela acusação agora se somará a de soberba ou, mais branda, de imodéstia. Obviamente isso não me tira o sono e, sendo assim, serei também acusada de arrogância.

 

Eu tive bons professores. Fui íntima de Jorge Luis Borges e ele me ensinou que o leitor precisa viajar na ficção como se em uma coisa plausível, por mais absurda que seja, e que a narrativa deve ser quase coloquial, sem malabarismos estilísticos que só servem para impressionar os pedantes. "O mais importante, minha querida — ele me segredou enquanto alisava a minha coxa — é que você tenha uma boa história pra contar".

 

A minha memória é extremamente seletiva. Há coisas que me esqueço rapidamente, outras ficam gravadas com uma nitidez que me faz capaz de recordar minúcias décadas depois. O meu pai nasceu em um dia 24 de agosto, Getúlio Vargas, ídolo familiar, suicidou-se em um 24 de agosto e em um 24 de agosto, que também é dia do nascimento de Borges, eu tive com ele o meu primeiro encontro.

 

Eu estava em Montevidéu e recebi um convite de Anita Malfatti para passar uns dias em Colônia do Sacramento, que atualmente é Patrimônio Histórico da Humanidade, mas naquela época atraía somente artistas, hippies e turistas mais descolados.

 

A noite estava gelada e fomos a uma pequena e acolhedora taberna na Calle de los Suspiros. Após não sei mais quantas garrafas de um tinto maravilhoso, apostei com Tarantino que o Aleph, a afamada pequena esfera furta-cor que contém todo o universo, é um objeto real, não uma mera criação de Borges. Decidimos então atravessar o Rio da Prata, não a nado, como sugeriu Pablo Neruda, mas em um pequeno barco de pesca que Chomsky havia alugado naquela tarde.

 

A travessia estava monótona até George Bernard Shaw avistar na escuridão um galeão espanhol do século XVII. Subimos a bordo. A velha nau estava abandonada, mas, surpreendentemente, em boa condição de navegabilidade. As velas de linho branco pareciam novas e os mastros não apresentavam sinais evidentes de rachaduras ou podridão. O castelo de popa, amplo e acolhedor, estava apinhado de livros, pergaminhos, documentos, cartas náuticas: um convite para ficarmos. Resolvemos rebocar o pequeno pesqueiro e continuar a viagem no imponente galeão.

 

Enquanto os meus amigos vasculhavam a embarcação inventariando toneladas de ouro e prata, preferi tentar decifrar pergaminhos. Em um encontrei a história de Tamar, que se casou com Er, primeiro filho de Judá. Devido ao seu mau comportamento Deus determinou a sua morte antes que Tamar engravidasse. Viúva, ela foi dada como esposa a Onã, o segundo filho de Judá, também de comportamento reprovável e que se recusava a dar-lhe filhos, pelo que Deus também o entregou à morte.

 

Vendo que Judá não se dispunha a casá-la com o seu terceiro filho, que era muito mais jovem que os irmãos, Tamar se disfarçou de prostituta para copular com o sogro. Quando soube que Tamar estava grávida, Judá ordenou que fosse apedrejada e queimada, mas ao saber que por meio da artimanha ela conseguiu um herdeiro que era também seu filho, Judá perdoou-a exclamando: "Ela é mais justa do que eu". No difícil parto que se seguiu, Tamar pariu os gêmeos: Perez e Zerá. A linhagem messiânica é traçada por meio de Perez até o Rei David.

 

Eu imaginei que Borges adoraria possuir aquele pergaminho e pensei que pudesse convencê-lo a trocar pelo Aleph, que, eu tinha certeza, estava, não em um porão de uma casa da rua Garay, mas em algum lugar da sua própria casa: um cofre talvez, ou escondido atrás dos livros da sua biblioteca.

 

Àquela altura já devíamos estar próximos ao porto de Buenos Aires. Fui ao convés e dei de cara com a escuridão absoluta. Voltei para procurar os meus amigos e me descobri sozinha. A minha dúvida era se eu estava morta ou se aquilo não passava de um pesadelo dantesco? O galeão encalhou. Acendi o meu último palito de fósforo e nos poucos segundos do seu lume pude ver que era seguro descer.

 

Desembarquei e subi uma colina com esperança de ver do alto alguma luz que me indicasse a presença humana. No outro lado da colina há uma grota que se alarga paulatinamente até se transformar em um imenso vale circundado por montanhas com picos nevados. Eu estava no vértice e de lá vi um vulto caminhando sem pressa na direção de uma imensa lagoa que resplandece como se tivesse luz própria. Corri ao seu encalço. O vulto era Borges. "Pensei que você não vinha", ele disse sorrindo. Eu tremia de emoção. Mais tarde, fiquei sabendo que todos os dias ele saía do seu labirinto e caminhava até a lagoa encantada que se formou das lágrimas de uma mulher que chora incessantemente a morte dos filhos que morreram congelados.

 

A mulher é mais velha que a árvore mais velha da milenar floresta que habita, mas parece uma ninfa adolescente saída de uma lenda nórdica. Ela canta um triste acalanto enquanto as lagrimas descem do seu rosto e correm para o lago cujo destino será crescer eternamente até transbordar o vale e cobrir o continente unindo os grandes oceanos da terra.

 

Creiam em mim, nesse relato não há mentira alguma, nenhuma ficção, exceto a citação de Baudelaire que não tem nada a ver com essa história. O critico tem razão: não fiz mais que juntar pequenos episódios do cotidiano, intercalando passado e presente em um estilo sem brilho e de conteúdo banal.

 

 

 

annalisa

 

 

Annalisa esperava o trem para Florença quando notou um desconhecido que a olhava de um jeito tão intenso que ela se sentiu desnudada, invadida, estuprada. Baixou os olhos, mas uma força misteriosa obrigou-a a olhar novamente para o homem, que se aproximava com passos lentos, mas decididos. Ela tremeu, um fogo percorreu-lhe as entranhas. Sentiu-se úmida. Corou. Isso já havia acontecido outras vezes e ela havia criado defesas psicológicas para controlar a libido, naquele dia, porém, sentia-se indefesa. O trem se aproximava. O homem tirou um cigarro do bolso e quando perguntou se ela tinha fogo, Annalisa atirou-se nos trilhos: morreu virgem.

 

 

 

meu guru

 

 

Voltei ao jardim, cravei os pés na terra e me enchi de corajosa alegria para receber a energia cósmica. Estou pronta para desenvolver plenamente a clarividência do Anja*. Há em mim um sentimento de plenitude que emana de cada poro, produzindo uma aura prateada que é resultado da satisfação na consciência. O meu guru é um homem santo e me ensinou que quando uma pessoa tem pensamentos positivos esses pensamentos se convertem em uma radiação que se soma à luz do corpo espiritual. O mais importante, porém, para atingir o nirvana é priorizar o ser e abolir o ter renunciando aos bens materiais. Eu doaria tudo ao meu guru, se ainda tivesse algo pra chamar de meu. Ocorre que antes de encontrar o meu guru eu tive um outro encontro de fé.

 

Nasci em uma família católica, pero no mucho. Meu pai se dizia agnóstico, mas fazia o sinal da cruz cada vez que passava em frente a uma igreja, minha mãe frequentava apenas as missas festivas, mas era a rainha da promessa. Não deixava um santo desocupado. Eu, como Einstein, acreditava no Deus de Spinoza "que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos homens".

 

Reconheço que sou muito suscetível ao mundo místico e que talvez por isso eu tenha me deixado influenciar por Edir que me convenceu que eu estava possuída pelo demônio. Quando acordei do encantamento estava dura, lisa, sem um tostão na caderneta, sem joias, porra alguma.

 

Agora é diferente, o meu guru contenta-se com uma pequena parte do meu salário, mas a sensação de plenitude não tem preço e quando eu alcançar a clarividência saberei os números da loteria antes do sorteio. Não que eu queira cair na ganância e sujeitar meu corpo cósmico à energia negativa do materialismo, mas o que é uma mulher sem brincos de pérola e anéis de diamante?

  

 

*o sexto chakra, também conhecido como terceiro olho.

 

 

se já lá estive
carolina caetano 


Não me confiem nada

nada jamais me confiem

pois tenho o sono tão pesado

que tenho o sono tão vadio

e sequer do corpo é possível

das coisas saber se está vivo

— ou é mole a imagem que dança

sem passado, ininteligível

 

O direito, a lanterna, a palavra

não mos jamais confiem

pois que tem alagado os olhos

o sono, e pousa tardia

a vista inda baça à mesa

sobre todo alimento que agora

de tão outrora já concebido

— já velho, frouxo, arisco

 

A memória, pior!, não a deixem

pairar pelo indefinido

do que fala esta boca morosa

— que tanta falsia arrodeia

qualquer lembrança que crio

e saber não se pode o que imito

e o que é tempo em verdade havido

 

A infância, se não a tive,

é a mais bela bonina que crio

e dum canto da sala me acorda

prum outro sono, e se o vivo,

há só horas passadas naquilo

que outrora dizia: vivido

 

E só a idade dos velhos

(há só horas também naquilo

que se possa dizer: está vindo)

é um barco impávido abrigo

e balouça com ossos doídos

em profundas gemuras de riso

vai a cidade onde já não vivo

e que já também não existe

acordada. Se lá já estive.

 

 

3 contos
célia musilli


Uma mulher de passagem

 

 

Não sou mais a mesma pessoa. Disse mentiras, encarei certas verdades, nunca me fingi de morta, dei a cara a tapa, abri os ouvidos, perdi o juízo, amei de verdade, apaixonei-me três vezes por dia, bebi veneno e coca-cola. On the rocks só quando há frio no peito e um gelo duro de romper em pleno verão de 38 graus à sombra.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Escolhi outros caminhos, subverti a ordem bruta, soprei delicadezas, ofereci a intimidade do hímen complacente, deixando a todos a experiência de quem brinca de bonecas e faz castelos de areia.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Rasguei os planos, inventei o desdém de me considerar superior e mal compreendida, tornei-me refém da ilusão, como um polvo dos mares do sul, criatura que não vi, mas dizem que existe, como existe a angústia que me rouba o sono enquanto busco as plantas  no herbário das bruxas nas quais não acredito, pero que las hay, las hay.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Já andei milhas correndo atrás do próprio rabo, perguntando e respondendo a mim mesma o irrespondível do baralho cigano, tarô de folhas de ouro, incenso queimando no tapete das adivinhações e as lágrimas rolando como profecias mal interpretadas.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Um dia adverso decerto não será o mesmo amanhã, quando o sol romper com minhas dúvidas e meu sorriso amarelo, diante da estupefação de perder o bom senso e escrever o que não se diz nem mesmo aos mais íntimos, quem dirá aos desconhecidos que põem os olhos em mim, mas não me veem.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Quem me encontrar saberá que experimento  as delícias da falta de recato, vou ao sétimo céu do meu corpo e me lanço às estrelas, com a cabeleira da Via Láctea solta no meu travesseiro, entre as sutilezas do meu  sonho inacabado, com este ar blasé de quem levemente desacredita de tudo e — nos desfechos — não mando flores nem velas, apenas pego outra estrada como se essa odisseia nunca tivesse existido.

 

Não sou mais a mesma pessoa. Mulher é sempre um recomeço.

 

 

 

 

De volta ao mar

 

 

Ela era feita de água e sal. E aquele mar nem sempre era triste, era apenas o mar inscrito no corpo, ondas que transbordavam para invadir a terra. Havia ilhas de ternura e ilhas de derrota, conchas secretas e peixes inquietos que pulavam para fora da linha d'água.

 

Assim marítima, ela às vezes se deitava sobre ele e o lambia, usando as palmas das mãos como ondas que convergiam para as linhas equatoriais. As linhas nasciam e sumiam antes dos dedos, longos e acabando em unhas perfeitas. Então, o que mesmo ela tocava? As suas mãos ou as dele? No movimento, elas se confundiam como conchas e lá dentro, no vácuo das palmas, o barulho parecia canto de sereia. Então, ela pegava uma das conchas e colocava o mar sobre seu ouvido.

 

Como um gato que massageia as patas com a almofada, num gesto contínuo ela deslizava mãos e braços em ternuras longilíneas. Percorria o corpo dele de norte a sul, de leste a oeste. Em todo trajeto pequenas veias corriam como rios até o coração.. Descobriam assim as rotas da pele, da musculatura, do prazer sob a sola dos pés.

 

O corpo dele era um continente estendido sobre a cama, uma viagem em que se encontram pequenos portos. Sob os olhos, de cílios espessos, os sonhos escondiam-se da luz e tremiam levemente a cada toque, porque eram olhos intocados. Serviam para ver o mundo, mas estavam desacostumados a ficar assim fechados para os  movimentos desconhecidos que brotavam dos dedos dela. Pressões levíssimas, giros suaves os mantinham cerrados como persianas, com o olhar guardado para um quarto íntimo.

 

O que ele pensava, enquanto tensionava a garganta ou soltava um ai que poderia ser de prazer ou de angústia? Todos os sentimentos são possíveis quando despertados por toques da longa noite dos silêncios. Óleos mágicos gotejavam feito água, pingos de ouro escorriam dos vidros como paisagens de aromas. Haveria por ali um campo de lavanda?  

 

Nas viagens aromáticas a que ilhas chegariam seus pensamentos? Em que continentes desembarcariam? Sem saber o destino da aventura, ela o lambia outra vez como onda, depois se deitava bem quieta na areia. Seu corpo era quente como se o dia tivesse mil sóis e as horas concentrassem a luz. Então, era ele quem se deitava sobre ela, não como um homem, mas como um oceano que se levanta e engole as ternuras. Era como se todas as dádivas reunidas os fizessem esquecer que há desertos no planeta.

 

 

 

 

O sonho vão da imortalidade

 

 

Se fosse para continuar meu Deus...

 

eu tomaria cada gota de felicidade como o mel que pacientemente a abelha cria, voando do pólen à colmeia, na disciplina dos dias que chegam com o cheiro da manhã recolhida em orvalho recôndito, onde só os insetos pisam com patinhas de veludo. Com essa delicadeza, mandaria dizer a cada ser da Terra que é preciso pisar leve para que não se acorde em vão os passarinhos que guardam sob as asas os filhotes e a esperança de que há vida, meu amor, há vida, ainda que o Vale da Morte circunde a montanha em cujo cume as nuvens anunciam que há um Criador, depois do céu, com sua face misteriosa que ninguém nunca viu, mas respeita sem conhecer...

 

 

Se fosse para continuar meu Deus...

 

eu tomaria cada gota de felicidade levando-a pela mão, como a mãe que atravessa o filho, cuidando para que não lhe fuja a única verdade possível do amor sobre a Terra, onde mãe e filho celebram a vida enquanto é cedo e as tempestades ainda não se anunciam como um fim em si mesmas, descarregando nuvens grossas em gotículas frias que recebem o sopro do Pai secando o ferimento que sangrou sem querer ao pousar sobre espinhos. Porque as crianças não sabem, meu Deus, não sabem onde espreita o perigo e, na sua inocência, a sombra da morte é só um sonho ruim do qual acordam gritando para ter a certeza de que sua voz é mais forte do que os desígnios...

 

 

Se fosse para continuar meu Deus...

 

eu tomaria cada gota de felicidade oferecida em vida a esses dias santificados em que estamos todos juntos, sob a proteção do triunfo onde não chega a infelicidade, nem a dor, nem a angústia. Aqui todos nos olhamos entre sorrisos, abençoando cada segundo em que a comunhão de nossas almas e de nossos corpos paira sobre a Terra, sem pensar que a separação um dia nos recolherá como uma loba repentina que não ama, não pergunta, não perdoa e nos transforma em ovelhas que vão para o sacrifício, cujo motivo não compreendemos.

 

Afinal, Senhor, nascemos, crescemos e nos multiplicamos e, quando enfim nos separamos, essa paisagem interior cria uma névoa de isolamento e nossos espíritos se apartam mergulhando no vazio. Ali, cada gota de felicidade não pode ser retomada porque cada um de nós já teve sua dose de embriaguez no cálice da vida, que não pode ser preenchido mais de uma vez por alegrias porque dele também escorrem lágrimas, como o cristal do pensamento que se redime das culpas e dos medos.

 

E assim, transbordamos para a morte como almas líquidas e embarcações de saudades perenes e consoladas. Quem nos atravessa é o barqueiro, do qual não me atrevo a dizer nem o nome.

 

 

3 poemas
daniela delias 


das coisas que não existem

 

 

as flores dentro do livro, eu sei

elas não existem

 

nem a fotografia: mulher nua, de joelhos

a cor dos olhos como uma ideia

e bastava — você a tinha inteira

 

ríamos do copo e da maçaneta

do peso da louça sobre a superfície

as coisas quebram, você dizia

 

eu ria, eu também inexistia

quando caminhava entre seus pelos

repetindo aquelas doces mentiras

 

 

 

 

a medida das chuvas

 

 

molha a boca, os dedos

as sedes que te rondam o lábio

 

depois, à sombra

úmida, farta

estende-se

 

abrasa equívocos

digere contrários

 

 

 

 

a linha

 

 

a outra no espelho

vive come limpa veste

não sangra, costura

 

pensa na reta que liga

o olho à linha

na linha que espera

o buraco da agulha

 

do alto de seu deserto

cantaria a um deus

se falasse a sua língua

 

 

 

compartilhar:

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>