edição 39 | março de 2010
temas recomeço | platonismo | chuva

 

curto e consequente

mariza lourenço

 

 

 

Foi num domingo, dia modorrento e morno, como todos os domingos. Foi ao acaso, num zoológico, do outro lado do lago: ele, a mulher e os filhos. Felizes e lindos. E eu, deste lado, irremediavelmente sozinha, agora e para sempre. Sem volta.

 

Deixei que se fossem. Nada no mundo poderia perturbar a paisagem bonita, o canto das aves, o ronronar preguiçoso das feras. Os calmos anos de amor construído.

 

Amores e acidentes de percurso acontecem. Tempestades também, segundo minha avó.

 

"O que os olhos não veem, o coração não sente".

 

 

5 poemas e uma linha reta

nina rizzi

 

 

variação de intermezzo: impressões da aurora

 

pintar meu corpoema

azul de laranja

então quem sabe

amanheser.

 

 

 

 

architextura

 

se faz favor, da próxima

quero mais que ternura:

 

me inventa em iminência.

 

 

 

 

outra variação

 

em causa de te sonhar

minha noite se fez dia

e me calcei de nuvens.

 

 

 

 

outra variação, outra

 

em te sonhar fiquei tão santa

que agora pra me comer

só de joelhos.

 

 

 

 

ripristino, o il suo lavoro

 

não, menina,

eu não vou fazer chover.

 

as tintas estão estiradas

e meu corpo branco esparramado:

ele vai me pintar.

 

(camponesa, cheiro, estrelas, girassóis?

— como ele quiser.)

 

 

 

 

sanguidolente

 

tenho dois homens ao meu lado. um me disputa com lembranças d'uma época em que só havia por comida xapati com açafrão e nossas ânsias; promessas d'um futuro.

 

o outro me vem com canções, essa sua carne que me quer poemas pra dentes.

 

há ainda um terceiro, o que me pega e tem, essa chuva. tardia chuva-súplica que não veio em dia de são josé. a chuva que me traz saudades de tudo que não vivi, símbolo desse homem que não está e me é. chuva-choro de mim. chuva-você que me cai, dono de todos os meus ais.

 

os dois primeiros me cospem, me rasgam. vão-me embora. fica o homem que me dói e gargalha.

 

mas não me restam autopiedades. é bom também doer. as cólicas hemorrágicas e as pedras na vesícula; o pedaço de ostra que me ficou por indolência no dedão do pé esquerdo; ter uma dezena de filhos de cócoras; não tomar drogas e ter os piores pesadelos.

 

dessa vida suicida, tudo: a morte lenta e dorida, a morte boa overdose de gozo. E os poemas impossíveis, que até chão seco dá semente.

 

 

 


©sippanont samchai

 

re co me ço

(De Memórias de Patty Flag)

patty flag
 

 

"A cuba-libre da coragem / em minhas mãos", pelas madrugadas de Copacabana, cantarolava. Em 1980, treinava a mágica fácil de transformar em uísque a pensão de meu soldado morto. E o uísque retribuía com sua mágica rápida. Minha vida era um bolerão rasgado de Luiz Gonzaga Júnior.

 

Cinquenta e quatro anos e eu não havia deixado de ser desejável. Patética sim, inchada, descontrolada, emburrecida e achatada. Mas desejável.

 

Dias inteiros se apagaram nesses anos escuros. Envelheci.

 

Homens e lugares desclassificados.

 

Cada dia — essencialmente esses, os que não sei, os que não reconheço — foi uma morte. Mas, ainda que morrendo ao despertar, acordar era nascer.

 

"Ao som desse bolero / Vida, vamos nós" viajar até 1953 — difícil acreditar que esse garoto de voz rouca é filho do Rei do Baião. "Ela só quer / Só pensa em namorar" era o dístico das dançarinas de boate.

 

"Vestido bem cintado / não quer mais vestir chitão". Nesse contentamento à brasileira, deslumbrávamos nossas noites de alegoria.

 

Saudade é agridoce.

 

"A orquestra nos espera / Por favor / Mais uma vez, re-co-me-çar / re-co-me-çar / re-co-me-çar".

 

Alcançando a praia, os gritos estridentes dos travestis vindos da Avenida Atlântica, sapatos abandonados na areia e eu: "Começaria tudo outra vez / se preciso fosse / meu amor". 

 

 

2 contos
priscila lira

 

ausência

 

Tenho oitenta anos, minha infância e adolescência não foram boas ou ruins o suficiente para merecer a pouca memória que tenho, eu realmente não lembro. Minha vida começa a partir do nascimento de meu filho, que ensinei a andar, comer, ler, escrever... ensinei-o a sobreviver e ele me ensinou a viver. Problema é que só sabia viver com ele ao meu lado e a ordem natural dos fatos me passou a perna: o rapazinho que eu tanto amava foi-se embora antes de mim. Então resolvi fingir de morta e não lembro o que aconteceu comigo e com o mundo até ter problemas de saúde e ser obrigada a ressuscitar cheia das dores, quase morrendo de vez.

 

O carnaval me devolveu a vida e levou-a embora. Não dançava até ter reumatismo e ser obrigada por meu médico a mudar meus hábitos (leia-se: parar de fumar, não comer gordura, parar de beber, não fazer atividade física), e não tinha amigos até frequentar o psicanalista (que me convenceu a parar de xingar todo mundo). Conheci pessoas e resolvi entrar no clube da terceira idade. Nunca tive sábados melhores. Nem carnavais melhores. Mas o que importa é o rapaz que conheci no meu primeiro baile de carnaval. Eu forçava uma animação quando ele me puxou para dançar e eu não pude (nem devia) negar as mãos daquele senhor vestido de rei momo, só que era magro, de óculos escuros.

 

Ele era cego. Eu não sabia. Descobri no mesmo dia. Ele teve que me dizer.

 

Aprendi a andar com alguém sempre apoiado em meu ombro, a ler e escrever em braile (ele me fazia cartas e eu respondia) e aprendi a dançar. Ele sempre me levava aos bailes de carnaval e nos dançávamos até as costas e as pernas não aguentarem mais. Depois ganhamos um cachorro e eu não sentia mais dores.

 

Dores que voltaram em outro carnaval. Lembrei do meu filho e não quis sair de casa. Ele insistiu e eu disse que não ia, meu velho foi sozinho e tirou outra pra dançar, nunca mais voltou. O cachorro morreu na semana seguinte.

 

Ainda fui a outros carnavais na esperança de que ele me encontrasse. Não o encontrei. Agora já cansei de fingir mortes e de aprender qualquer coisa, devo estar velha. Vou dar pipoca aos pombos da praça, ao menos eles vão embora e sempre voltam.

 

 

 

 

platônico

 

ele vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por minhas mãos. traçando labirintos, fazendo vendavais, recitando García Lorca lá onde não faz sol, pois os olhos não alcançam. Lá de onde surgem todos os meus delírios. não entendo como convive com a histeria da confusão de cores e explosões por segundo que ocorrem Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, acredito que nada disso faça muito barulho e que ele seja o causador dessa desordem. enquanto ele fala sobre o mundo inteiro em todos os tempos: presente, presente e presente, a folha branca que era O Outro Lado do Espelho da Minha Mente vira um carnaval que pula aqui pra fora. sem fazer muito barulho pois ele gosta de música. Por isso suporta, por ser uma bagunça histérica que não faz muito barulho. então pode ouvir sua música enquanto bagunça e anima a minha vida.

 

ele vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por minhas mãos. Mas um dia eu chegarei lá.

 

 

eterno retorno
ro druhens

 

Treze. Treze em duas horas. Duas horas e treze minutos. Cento e trinta e três minutos. Sete mil, novecentos e oitenta segundos. Um a cada dez minutos. Cinco minutos para cada um.

 

Cinco minutos de intervalo entre o um e o próximo. Sobram sete. Uma hora e dez minutos. Talvez. Mais muitos dias. Quem sabe? E quem sabe da insônia na metade da cama vazia, do vazio, da metade vazia? Quem sabe da vida, dos alguns dias, a mais ou a menos, quem sabe, a morte?

 

Engasgou. Engasgou e tossiu. Engasgou, tossiu e escarrou. Mais sete. Vinte!

 

Atravessou a madrugada e a chuva até o letreiro. Vermelho.

 

E teria comprado mais um maço, não fora o carro na contramão. Preto.

 

 


©sippanont samchai

 

 

dia de finado
santa maria

Era um chuvoso feriado no cemiterio,

quando a viúva apareceu no túmulo esquecido.

Sorriu para a rachadura no mármore velho,

gotejando sobre a cabeça do falecido.

 

 

 

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