Foi
num domingo, dia modorrento e morno, como todos os domingos. Foi ao acaso,
num zoológico, do outro lado do lago: ele, a mulher e os filhos. Felizes e
lindos. E eu, deste lado, irremediavelmente sozinha, agora e para sempre.
Sem volta.
Deixei
que se fossem. Nada no mundo poderia perturbar a paisagem bonita, o canto
das aves, o ronronar preguiçoso das feras. Os calmos anos de amor
construído.
Amores
e acidentes de percurso acontecem. Tempestades também, segundo minha avó.
"O que os olhos não veem, o coração não sente".
variação
de intermezzo: impressões da aurora pintar
meu corpoema azul
de laranja então
quem sabe amanheser. architextura se
faz favor, da próxima quero
mais que ternura: me
inventa em iminência. outra
variação em
causa de te sonhar minha
noite se fez dia e
me calcei de nuvens. outra
variação, outra em
te sonhar fiquei tão santa que
agora pra me comer só
de joelhos. ripristino,
o il suo lavoro não,
menina, eu
não vou fazer chover. as
tintas estão estiradas e
meu corpo branco esparramado: ele
vai me pintar. (camponesa,
cheiro, estrelas, girassóis? —
como ele quiser.) sanguidolente tenho
dois homens ao meu lado. um me disputa com lembranças d'uma época em que
só havia por comida xapati com açafrão e nossas ânsias; promessas d'um
futuro. o
outro me vem com canções, essa sua carne que me quer poemas pra dentes.
há
ainda um terceiro, o que me pega e tem, essa chuva. tardia chuva-súplica
que não veio em dia de são josé. a chuva que me traz saudades de tudo que
não vivi, símbolo desse homem que não está e me é. chuva-choro de mim.
chuva-você que me cai, dono de todos os meus ais. os
dois primeiros me cospem, me rasgam. vão-me embora. fica o homem que me
dói e gargalha. mas
não me restam autopiedades. é bom também doer. as cólicas hemorrágicas e
as pedras na vesícula; o pedaço de ostra que me ficou por indolência no
dedão do pé esquerdo; ter uma dezena de filhos de cócoras; não tomar
drogas e ter os piores pesadelos.
dessa vida suicida, tudo: a morte lenta e dorida, a morte boa overdose de gozo. E os poemas impossíveis, que até chão seco dá semente.
(De
Memórias de Patty Flag)
"A
cuba-libre da coragem / em minhas mãos", pelas madrugadas de Copacabana,
cantarolava. Em 1980, treinava a mágica fácil de transformar em uísque a
pensão de meu soldado morto. E o uísque retribuía com sua mágica rápida.
Minha vida era um bolerão rasgado de Luiz Gonzaga
Júnior. Cinquenta
e quatro anos e eu não havia deixado de ser desejável. Patética sim,
inchada, descontrolada, emburrecida e achatada. Mas
desejável. Dias
inteiros se apagaram nesses anos escuros. Envelheci. Homens
e lugares desclassificados. Cada
dia — essencialmente esses, os que não sei, os que não reconheço — foi uma
morte. Mas, ainda que morrendo ao despertar, acordar era
nascer. "Ao
som desse bolero / Vida, vamos nós" viajar até 1953 — difícil acreditar
que esse garoto de voz rouca é filho do Rei do Baião. "Ela só quer / Só
pensa em namorar" era o dístico das dançarinas de
boate. "Vestido
bem cintado / não quer mais vestir chitão". Nesse contentamento à
brasileira, deslumbrávamos nossas noites de
alegoria. Saudade
é agridoce. "A
orquestra nos espera / Por favor / Mais uma vez, re-co-me-çar /
re-co-me-çar / re-co-me-çar". Alcançando a praia, os gritos estridentes dos travestis vindos da Avenida Atlântica, sapatos abandonados na areia e eu: "Começaria tudo outra vez / se preciso fosse / meu amor".
2 contos
ausência Tenho
oitenta anos, minha infância e adolescência não foram boas ou ruins o
suficiente para merecer a pouca memória que tenho, eu realmente não
lembro. Minha vida começa a partir do nascimento de meu filho, que ensinei
a andar, comer, ler, escrever... ensinei-o a sobreviver e ele me ensinou a
viver. Problema é que só sabia viver com ele ao meu lado e a ordem natural
dos fatos me passou a perna: o rapazinho que eu tanto amava foi-se embora
antes de mim. Então resolvi fingir de morta e não lembro o que aconteceu
comigo e com o mundo até ter problemas de saúde e ser obrigada a
ressuscitar cheia das dores, quase morrendo de vez. O
carnaval me devolveu a vida e levou-a embora. Não dançava até ter
reumatismo e ser obrigada por meu médico a mudar meus hábitos (leia-se:
parar de fumar, não comer gordura, parar de beber, não fazer atividade
física), e não tinha amigos até frequentar o psicanalista (que me
convenceu a parar de xingar todo mundo). Conheci pessoas e resolvi entrar
no clube da terceira idade. Nunca tive sábados melhores. Nem carnavais
melhores. Mas o que importa é o rapaz que conheci no meu primeiro baile de
carnaval. Eu forçava uma animação quando ele me puxou para dançar e eu não
pude (nem devia) negar as mãos daquele senhor vestido de rei momo, só que
era magro, de óculos escuros. Ele
era cego. Eu não sabia. Descobri no mesmo dia. Ele teve que me
dizer. Aprendi
a andar com alguém sempre apoiado em meu ombro, a ler e escrever em braile
(ele me fazia cartas e eu respondia) e aprendi a dançar. Ele sempre me
levava aos bailes de carnaval e nos dançávamos até as costas e as pernas
não aguentarem mais. Depois ganhamos um cachorro e eu não sentia mais
dores. Dores
que voltaram em outro carnaval. Lembrei do meu filho e não quis sair de
casa. Ele insistiu e eu disse que não ia, meu velho foi sozinho e tirou
outra pra dançar, nunca mais voltou. O cachorro morreu na semana
seguinte. Ainda
fui a outros carnavais na esperança de que ele me encontrasse. Não o
encontrei. Agora já cansei de fingir mortes e de aprender qualquer coisa,
devo estar velha. Vou dar pipoca aos pombos da praça, ao menos eles vão
embora e sempre voltam. platônico ele
vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por
minhas mãos. traçando labirintos, fazendo vendavais, recitando García
Lorca lá onde não faz sol, pois os olhos não alcançam. Lá de onde surgem
todos os meus delírios. não entendo como convive com a histeria da
confusão de cores e explosões por segundo que ocorrem Do Outro Lado do
Espelho da Minha Mente, acredito que nada disso faça muito barulho e que
ele seja o causador dessa desordem. enquanto ele fala sobre o mundo
inteiro em todos os tempos: presente, presente e presente, a folha branca
que era O Outro Lado do Espelho da Minha Mente vira um carnaval que pula
aqui pra fora. sem fazer muito barulho pois ele gosta de música. Por isso
suporta, por ser uma bagunça histérica que não faz muito barulho. então
pode ouvir sua música enquanto bagunça e anima a minha
vida. ele vive Do Outro Lado do Espelho da Minha Mente, no lugar mais intocável por minhas mãos. Mas um dia eu chegarei lá.
eterno retorno
Treze.
Treze em duas horas. Duas horas e treze minutos. Cento e trinta e três
minutos. Sete mil, novecentos e oitenta segundos. Um a cada dez minutos.
Cinco minutos para cada um. Cinco
minutos de intervalo entre o um e o próximo. Sobram sete. Uma hora e dez
minutos. Talvez. Mais muitos dias. Quem sabe? E quem sabe da insônia na
metade da cama vazia, do vazio, da metade vazia? Quem sabe da vida, dos
alguns dias, a mais ou a menos, quem sabe, a morte? Engasgou.
Engasgou e tossiu. Engasgou, tossiu e escarrou. Mais sete.
Vinte! Atravessou
a madrugada e a chuva até o letreiro. Vermelho. E teria comprado mais um maço, não fora o carro na contramão. Preto.
dia de finado Era um chuvoso feriado no cemiterio, quando a viúva apareceu no túmulo esquecido. Sorriu para a rachadura no mármore velho, gotejando sobre a cabeça do falecido.
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