edição 39 | março de
2010
descuido
Descuidou-se momentaneamente do bordado que fazia, provocando o desencontro entre as carreiras miúdas de pequenos pontos. Eles, namorando-se à distância, clamavam por um reparo estético que os permitissem circundar juntos os globos idealizados pelos dedos delicados. Rapidamente, retirou a linha da agulha e pôs-se a desfazer os pontos. O desejo de criar suspenso no ar, pairando sobre seus olhos. A linha delicada escolhida em seus baús mais íntimos deixava seus vestígios vermelhos sobre o tecido de algodão. Na ânsia de se desfazer dos inconvenientes e horrendos pontos, arrebentava os fios, que volitavam no ar, pousando em seus cabelos, em suas vestes. Sentiu-se de repente imunda. Os pontos perfeitos, executados dia a pós dia, com disciplina e cuidado, perderam a luz diante do borrão vermelho, que aumentava a cada golpe da agulha, de repente espada vingativa sobre a linha delicada. Uma pequena distração e o desenho criado com amor perdia a beleza e se desfazia ante seus olhos atônitos, que, em todos aqueles anos de contínua criação, nunca haviam se deparado com semelhante espetáculo de horror. Acostumara-se aos belos resultados, ao tecido sempre receptivo, e à linha dócil. À procura do que causara tamanho transtorno e dor, encontrou ao fim um pequeno nó, que fizera com que a agulha se desviasse, provocando a anomalia estética. Enfiou sem mais demora a ponta de sua pequenina espada sob o repulsivo empecilho entranhado no tecido. Parecia fazer parte agora da superfície esfolada, sangrando fiapos de linha vermelhos. De nada adiantara. Forçou ainda mais a agulha, que, arrancando o câncer do tecido, levou juntou um fio de sua pele, que jorrou gotas vermelhas sobre o desenho. Decidiu ser hora de parar e idealizar um novo bordado, mas os pontos que permaneceram clamavam misericórdia, pedindo-a para que insistisse naquele que já durava anos. Sabia ser sua culpa toda a desgraça. Acreditara já dominar o trabalho diário de fecundar o tecido. Pusera-se a observar o céu pela janela entreaberta, oferecendo o rosto aos raios que adentravam a sala, deixando que seus dedos corressem livres sobre o bordado. Enganara-se ao pensar que dominava seus sentidos. Como bordar e voar ao mesmo tempo? Percebeu que nunca errara porque se entregara de corpo e alma àquele ofício de criar e de se dar. Sentiu-se de repente cansada. Percebeu que existia um nó dentro dela pedindo para ser desfeito. Nunca se preocupara em bordar seus sentimentos, em unir os pequenos pontos que se acumulavam em desordem, a cada batida do seu coração. Apenas enganara-se. O descuido no bordado refletiu o que já existia dentro dela há muito tempo. Pequenos nós formando uma grande mancha. Lançou para o alto o bordado e saiu correndo da sala. Lá fora o céu azul, sem nuvens. Abriu os braços e começou a correr sem rumo entre as árvores do campo, como à procura do sol que a beijava distante. Desenhou no ar o mais lindo bordado de sua vida.
2
contos
peregrinação
em tarde chuvosa "Ninguém se banha duas vezes
no mesmo rio". A célebre frase de
Heráclito, em meio à tempestade que insistia em fustigar o Rio de Janeiro
naquela tarde de março, soava quase irônica, mas foi a primeira coisa que
lhe veio à mente ao atolar a delicada sandália em uma poça de lama ao
atravessar a rua. Acabara de deixar a solene biblioteca onde tantas vezes
o encontrara, e seu raciocínio ainda padecia da nostalgia que dela se
apossava sempre que por lá passava. O teto abobadado e as paredes
ostentando brasões transportavam-na a outros tempos, quando não havia
engarrafamentos a detê-la. O lugar recendia a passado, e certamente cada
um daqueles livros guardava histórias e segredos muito maiores do que os
descritos em suas linhas. Olhou mais uma vez as paredes impregnadas de tempos
pregressos, antes de descer as escadas que a separavam do burburinho.
Destoando da maioria dos cariocas, ela sorriu ao respirar o inconfundível
aroma trazido pela chuva, que parecia querer varrer a atmosfera naquele
início de outono. Apesar
de ser litorânea, era o Centro a parte da cidade que mais lhe chamava a
atenção, com suas diferentes épocas a dialogar, com insólitas construções
pós-modernas dividindo espaços e gostos com prédios antigos. E naquela
tarde, em que a solidão tornara-se uma companheira insuportável, ela
abusara do masoquismo. Em sua saudade, cometera atos de pura insensatez:
como numa peregrinação religiosa, revisitara os lugares que juntos
frequentavam, na vã ilusão de encontrá-lo por lá. Lugares antes habitados
pelo nós, e que hoje amargavam
a solidão do singular, parecendo ainda mais tristes, lacunares, ímpares,
despedaçados, sem a parcela de vida que dele brotava. Não era diferente
com o singelo café que ficava ao lado da biblioteca, palco de tantas
conversas e devaneios. Levantou
os olhos do cardápio para, ainda uma vez, buscá-lo à rua. Sentia a
frustração de quem é deixada à espera, como se tivessem faltado ao
encontro marcado. Cada cabeça grisalha convertia-se no seu retrato, sem
que ela jamais o reencontrasse... Como o pico de um monte imponente que se
mostrasse, ao fim de tudo, mera colina, despojada de atrativos e de
plenitude. O cinza da tarde chuvosa fundia-se à lembrança de seus cabelos,
e ela quase podia sentir o calor e o perfume emanando daquela nuca, numa
silenciosa tentação, num mudo e tácito convite... Refazer
tais caminhos transformara-se numa tortura, à qual ela se lançava sem
perspectivas, como se a falta que sentia dele fosse capaz de trazê-lo de
volta, com a urgência e a intensidade do temporal que se armava lá
fora...
Com
a urgência e a intensidade da tempestade que trazia dentro de si.
Desceu
do táxi longe de casa, a fim de caminhar um pouco. A Lagoa, tão festiva em
dias ensolarados, formava um triste dueto com a neblina que prenunciava o
anoitecer. O Rio gris é,
definitivamente, mais belo, pensou. Aproveitando a trégua concedida
pela chuva, caminhou até as margens da Lagoa. O espelho d'água,
turvo
pelo céu acinzentado, mostrava-se resistente à contemplação. Tentou
mirar-se na água, muito embora soubesse que o rosto que veria não seria o
seu. Ao olhar a imagem refletida, lembrou-se da maldição de Narciso e
soube-se a amante que contempla o outro em vez de si mesmo. Como a pobre
Eco, vagava pelas fendas e rochedos do inconsciente, repetindo, à
exaustão, palavras incapazes de demovê-lo de seu estado de torpor. E assim
ele mantinha-se impassível, enquanto ela mais e mais mergulhava dentro de
si, agarrando-se aos ecos e vestígios do amor de
outrora. Chorara
tanto que o gosto das lágrimas se tornara familiar, algo mais palatável do
que qualquer outra coisa naquele
momento. As lágrimas corriam livremente, como crianças que brincam
de escorrega. As gotas desciam, seguindo seu fluxo inexorável, sem a
cadência do corpo, que de resto já achava que não valia mesmo a pena
reencenar a velha dança embalada pela tristeza. A água acariciava-lhe as
marcas faciais acentuando-as, à semelhança das pequenas gotas de chuva que
não aplacam os sulcos abertos na aridez do sertão. O coração, esse,
parecia mesmo estar habituado às sucessivas punhaladas, e resignava-se
diante de mais este sacrifício. Uma expiação sem fim, pensava ela, em que
o ritual era sempre reatualizado, sem que o ser imolado fosse jamais
substituído. A cada golpe desferido, vinha a sensação de que seria o
derradeiro, de que não suportaria mais nenhum. Mas ele parecia cada vez
mais fascinante, e ela deambulava, errante, pelos labirínticos caminhos da
paixão. Amara-o
desde a primeira vez em que o vira. Amara-o de forma ousada, intempestiva,
dionisíaca, embriagando-se do êxtase que sua imagem lhe
propiciava...
Cativa
talvez de um desejo ancestral, embevecia-se ao mirar o furta-cor daqueles
olhos garços, que para sempre lhe haviam furtado o direito de amar.
Renunciar a ele, à representação de tudo o que ele constituía, significava
renunciar a tudo aquilo em que sempre acreditara, e uma parte de si
—
talvez a mais bela —
estava sendo mutilada nesse processo. Mas isso se fazia necessário, pois
se imaginava, num cais, há tanto tempo aguardando, que já perdera a noção
do que era encontro, do que despedida... E, sem a perspectiva da chegada,
restava a ela partir, numa renúncia que era, agora,
sobrevivência. Mas
ela era uma filha de Afrodite, movida pelo amor, e de nada adiantariam os
avisos de Pandora, que lhe acenava com sua caixa repleta de
males...
De
nada serviriam os sensatos conselhos de Atena, racional e equilibrada...
Em nada lhe inspirava a castidade de Ártemis, com seu jeito guerreiro
porém solitário...
Apenas
Perséfone, de tanto descer aos infernos, fosse talvez capaz de
entendê-la...
Como
esta, também ela constantemente descia às profundezas, com a diferença de
que não havia Hades algum a raptá-la... Ia
por vontade própria, o que tornava seu mergulho ainda mais insensato.
A chuva
reiniciara. Tomou o caminho de casa, pois a peregrinação daquela tarde a
havia exaurido. Olhando para cima, sorriu. Nem tudo estava perdido. Sempre
lhe restaria o Cristo, num alento, a ampará-la, no mais carioca dos
abraços. de olhos bem
abertos Tentara,
de todas as maneiras possíveis, sair para a luz do sol. Os habitantes da
sombria caverna julgavam que as imagens bruxuleantes, instáveis e
ilusórias, correspondiam à realidade. Viviam em um mundo de trevas, sem
ter consciência de tudo o que desconheciam. Ele, de algum modo, sabia que
a verdade o aguardava, acenando-lhe, como se ele fosse uma espécie de
eleito, um assinalado cujo destino fosse o de abrir os olhos de seus
companheiros. Num
dia, sem que se esperasse, cruzou a fronteira entre a segura e confortável
caverna e o mundo d'além-breu, de onde ninguém jamais retornara. O que
quer que o aguardasse lá fora, ele não se faria de rogado. Se houvesse
algo à espreita, ele achava-se no direito de saber o que era.
Partiu,
munido do alforje da obstinação e do cantil da ousadia. Sem olhar para
trás — não porque temesse virar estátua de sal, mas porque seus olhos
tinham a frente como objetivo —, saiu, de cabeça erguida, ignorando os
perigos do lado de fora e as proibições internas, que eram bem claras
quanto à punição para quem retornasse. Talvez por isso ninguém jamais
tivesse voltado. Seu
corpo projetou-se de forma intempestiva, traduzindo seu desejo de
liberdade. Seus olhos, contudo, habituados à escuridão da caverna,
fecharam-se, ofuscados pela luz que lhe banhava o
rosto. Passados
alguns instantes, suas pupilas dilataram-se, já acostumadas à claridade.
As cores e contornos, agora tão nítidos e cristalinos, pareciam dançar
diante de seus olhos, Salomés multicores a seduzir Herodes e a exigir o
rolar de cabeças. Extasiado diante de tanta beleza, chorou, transformando
as flores que se abriam em arco-íris e caleidoscópios. Sentiu-se um
habitante do Inferno dantesco que, anistiado, conhecera o Paraíso. O pior cego, pensou, não é aquele que não quer ver, mas
aquele que desconhece a própria cegueira. Percebeu, então, que ninguém
jamais retornara à caverna porque o conhecimento, qual um poderoso
narcótico, vicia aquele que dele se apodera. Entretanto, nem todo
narcótico entorpece, e ele sentia-se repleto de lucidez, prenhe de
sensações. Nos
anos que se seguiram, seus olhos de habitante da luz enxergaram guerra,
violência, tortura, crueldade. Vislumbrou, por um momento, o ato
desesperado daquele que, horrorizado com a infâmia, furara os próprios
olhos para não conviver com a desgraça que, sem querer, desencadeara. Mas
dessa vez seria diferente. Não furaria os olhos, até porque havia uma
criatura à espera, a cujas perguntas teria de responder. Sabia que cedo ou
tarde a encontraria. Encará-la-ia e a enfrentaria. De olhos bem
abertos.
três toques
Escolhia
toques em meu novo celular. Ao ouvir umas poucas notas de "Singing in the
Rain", estremeci. A pele empelotou e umedeci. Ali. Férias,
a chuva torrencial aprisionando na casa de campo. Tinhamos dezenove, ela
mais alta e encorpada. Sós, nada a fazer, apostávamos quem ganharia o
Roberto e bebíamos o que íamos achando. Colocamos música na vitrola, a
todo volume. Dançamos. Soltas, leves, alegres. Camiseta e shortinho jeans.
Ela se apossou de mim com um longo beijo. Saímos
para o quintal, nuas. Me fez gozar na chuva. * Escolhia
toques em meu novo celular. Sorri ao ouvir "Blue Moon".
Noite,
jovens bebericando na varanda, pares feitos. Ímpares: eu e Alaor
"Coroinha", menino tímido mas bonitinho. —
Vem, vamos caminhar na praia, o luar está lindo —
provoquei. —
Ahn! E-eu acho que não — balbuciou. —
Acha que vou morder você? —
Não sei — esgarçou um relutante sorriso amarelo, mas veio para a rua, me
seguindo. Ao
chegarmos à praia, peguei-lhe a mão e enfurnei-me por um
coqueiral. —
O-onde você está indo? Calei-o
com um beijo na boca. Ele começou a tremer, me
empurrou. —
Não sabe que vou ser padre? — e desatou a correr. Ontem
vi Alaor na mídia, suspeito de pedofilia. * Escolhia
toques em meu novo celular. Um deles era aquele do telefone antigo de
casa: Tri-i-i-i-i-i-m. A recordação veio numa torrente de melancolia.
Vi
Ofélia cozinheira chorando, o bebê ali perto, num caixotinho de papelão,
cagado, fedendo. O sujeito havia se largado pelo mundo, levando junto a
promessa de casamento com casa e carinho, era bem pago, sub-gerente da
loja de ferragens. Mas ferrada foi ela, Ofélia. Tentaram lhe jogar nas
costas dívidas de jogo do evaporado, contaram casos, descontaram falação
na pobre que, de lucro, havia tido aquele entojo cagão na caixa de
papelão. O telefone era preto, de discar, dependurado na parede. Dizia
Ofélia que o safado era como aquele aparelho: preto, pendurado e duro.
Quando tocava, ela corria esperançosa e voltava às lágrimas. Da última vez
que vi Ofélia atender, foi como seus olhos tivessem sido comidos e dali
esquichasse sangue. Numa tarde chuvosa, foi lavar o bebê fedorento na banheira. Afogou-o e sumiu do mapa.
3
poemas
são
as mágoas de março [ou
qualquer fossa assim] eu
te chamo de
sol a cio tu
me evitas luas
a f[r]io recordo
o início quando
tu eras
apenas [pó] promessa
de
tempo bom —
aguou — chove
a cântaros desde
então [
é pau pedra fim caminho esto
oco ouco inho aco
idro ida ol oite
orte aço
anzol —
só para
não sair do
tom ] i
luv you
[d
ilúvio] intitulo arca
de noé o
típico amor que
salva amor
em que se
afoga [e
nada] é
do tipo barca
furada platônico é
o amor em que um
só dá com
os burros n'água platônico por
te amar tanto
assim revolvo
céus revolto
mares movo
placas tectônicas niña
— louca — reviro
tudo à
tua volta teu
mundo vira um
haiti aquele
rumor de
tsunami no
hawaii [que
não houve] era
você nem
aí
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