edição 39 | março de
2010
porém A
noite está calma calma calma calma. Porém,
o trompete está nervoso. A
melancólica, porém doce lembrança de
quando acordou apenas com as pérolas no
bar dos marinheiros. A
metálica, porém fosca cobrança de
quem deixou as sandálias na
rua dos salgueiros. Tudo
está bem agora. Está
tudo certo. A
noite está calma calma calma. Porém, o escuro está inquieto.
Greta Benitez (Curitiba-PR). Publicitária e pós-graduada em Marketing. Publicou os livros de poesia Rosas Embutidas (1999) e Café Expresso Blackbird (Landy, 2006). Edita o blogue Chocolate Amargo. Já obteve diversas premiações em vários estados do Brasil e foi publicada em várias antologias.
Era
uma dor muito estranha. Aguda e lancinante, que fazia suar e ter vertigem,
por vezes, uma lágrima. Durava
o tempo que se a sentisse. Rastreados
os órgãos, fígado, baço, rins, tudo em ordem. Pele, músculos, nervos e
tendões sem avarias. E a dor lá, doendo. Tomava
todos os analgésicos inventados, tinha conta na farmácia. E a dor não
passava. Dentista,
homeopata, clínico geral e, mesmo, geriatra não detectavam a origem.
Chegou
a consultar mãe de santo. Fez trabalho no mato, jogou búzios, procurou
cartomante, bebeu poções. Não
adiantava.
Toda vez que olhava o espelho, lá estava a dor.
Lílian Maial (Rio de Janeiro-RJ). Médica, escritora e poeta. Publicou Enfim, renasci, seu primeiro livro de poemas, em 2000, e tem participação em dezenas de antologias desde 1999. Integrante ativa do MIP - Movimento Internacional Poetrix. Filiada à REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras e à APPERJ - Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. Consulesa do Rio de Janeiro para o movimento Poetas Del Mundo. Tem seus trabalhos divulgados em inúmeros sítios nacionais e internacionais, e é colaboradora de revistas eletrônicas brasileiras, portuguesas e espanholas. Mais em Lílian Maial, Poetrix, Sonetos e Poética Digital.
Não
sei de onde vem essa coisa que balança entre a inquietação e a alegria sem
rótulo toda vez que chove... Uma coisa que se derrama aqui dentro. Que
refresca e aquece... No peito e entre as pernas. Mulher-terra, é dela o
melhor cheiro, quando chove. Talvez o rio brote da Oxum que dorme em
mim... quem sabe? Talvez... Talvez a raiz esteja lá, plantada na lembrança
cristalizada da menina que saltava as poças d'água, bolsos cheios de bolas
de gude que cantavam a mais estranha canção, roçando-se umas nas outras.
A
água tépida da chuva sempre foi a coisa mais carinhosa que tocou minha
pele, escorrendo em meus cabelos, emaranhados. Menina-novelo.
Menina-meio-menino, mesmo sem cruzar o arco-íris, o canhão de luz colorida
que pintava as tardes lavadas pela tempestade no quintal da favela... e
alimentava minha esperança de dias ainda mais luminosos. A chuva enxurrava
humilhações e misérias... Que brilho tinha a chuva, desenhando perfis
medonhos na janela! E que fantásticos os diamantes que gotejavam... Antes,
o aceno... Não
sei, não, meu amor, de onde vem, quando chove, essa vontade de me aninhar,
de trepar até arder inteira e depois voar o voo das amantes saciadas...
Não sei... Não sei, meu amor, de onde vem, quando chove, a visão da vida e
da morte, subitamente, fundidas no mesmo pedestal... De repente, a visão
plena do abandono, da solidão... Mas, também, do amor — a eterna
possibilidade. Talvez tudo isso me venha da Oxum que dorme, desperta, ama,
sorri e chora no lugar mais fundo de mim mesma...
Lucia Helena Corrêa (Rio de Janeiro/RJ, 1949). Jornalista, com doutorado em Ciência da Comunicação (USP). Autora do livro de poemas Cebola Crua (São Paulo: Editora SJS, 1989), colaboradora do livro Esporte e Poder (Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1985), com o texto "Racismo no Futebol Brasileiro". Poeta e tretraneta de Joaquim Antônio Callado, o "pai" do chorinho, somente aos 55 anos também resolveu se dedicar à música, como compositora e intérprete. Clique aqui para ouvi-la.
Quando
o pianista retornou ao país, lá se iam quarenta anos desde sua primeira
apresentação. O menino era então o de calças curtas e o público formado
por meia dúzia de vizinhos. Ora pendiam dos pés um par de chinelos, gastos
na lavoura em Sergipe. Símbolos dos começos difícéis. Com efeito, tal
lembrança já ia morta no pensamento do músico. Viva estava era a memória
do mundo, cheia do pianista e suas composições, oitenta ao todo,
executadas nas mais distintas distâncias, onde os pezinhos de outrora
jamais imaginaram pisar. Para notas de ilustração, tenha consigo que o
pianista recebeu a medalha de L'ordre National de la Légion d'Honneur de
France, entre outras. Mas
já no dia de seu desembarque por aqui, pôde provar da enigmática sensação
do anonimato, algo que despontou como uma convicção de superioridade, mas
nada que o impedisse de se juntar aos seus. Tão certo é que o compositor
andou até o fim da feira, pediu almoço em um balcão, comprou chicletes das
mãos de um moleque. Revigorou-se com sentir-se apenas mais um entre
tantos. Estava deveras afastado da fama, separado da ovação; causas sem
nenhum valor aos olhos do gênio. Assim
seguiram os dias. Como também os passeios do pianista. Ao final de uma
semana, depois de cruzar a cidade sem despertar qualquer notoriedade,
tomou o trem da periferia. Subiu cada um dos degraus do morro. Desceu ao
chão no laço da menina dançarina. Caiu no pancadão com um novo refrão,
repetido em todo o baile funk. Mudou de bairro e de roupa. Fechou contrato
com uma gravadora da Zona Norte. Lotou três quadras num único final de
semana. Talento reconhecido no Brasil, autografou em igual número
calcinhas e guardanapos. Está de volta ao calor dos palcos. Mês que vem
define a data dos seus shows na Espanha, numa boate de
Barcelona.
Milena de Almeida (Nepomuceno/MG, 1980). Jornalista e editora da Mininas, publicação de bolso — 10 x 10cm — de literatura e artes visuais. Publicou na web Da gastrite e da ira, seu livro de estreia. Clique aqui e leia.
Sentada.
Ela
navega em sessenta metros quadrados, desde a hora que pulou da cama, às
dez da manhã, com leve ressaca; sábado. "Vinho com cerveja é uma merda! Se
ao menos fosse vinho bom e caro, dava pra suportar a porcaria da dorzinha
de cabeça!". Volta
para o notebook. Bate-papo, sexo, com imagens — "Loucas e loucos, as fotos
nunca mudam! — e sem imagens — "Só tem viado aqui!". Migra para um blogue
político. "Como fodem com o governo, que jornalimozinho foda esse do Rio e
de Sampa!". E termina no Orkut, em uma comunidade literária, após ler
alguns recados. Lê "Ode Marítima", do Álvaro de Campos, e esboça um
sorriso. A
poesia. Como alguns versos conseguem ser escritos assim de forma tão
linda, cuidadosa? Nada aqui é demais. O poema é mais um instrumento, o
lugar onde o filósofo-poeta revela o mar, o vento, o tempo, toda a
Criação. Larga
o caudaloso poema, espreguiça-se e, após mirar a piscina do condomínio
vizinho, pela janela — "Meninas lindas!" — regressa para a caverna, para o
quarto, que a recebe, na cama. Sussura algo para si mesma, aparentemente
enfadada. Arfa.
Depois,
a reiterada solidão. O calor estúpido. E
eis que ribombam trovões! As vidraças estremecem, pássaros escapolem do
sossego em copas de árvores lá embaixo. II. Ela,
como descobrindo o mundo, corre até a janela. Chuva. O céu prepara uma
tempestade, é quase certo, já que nuvens espessas formam-se, escurecendo o
antes claríssimo dia. Fita a orla, além: um navio, solitário, ondas
enlouquecidas e, em alto-mar, tormenta, certamente rumando velozmente para
terra firme. Chuva,
ventos, trovões, relâmpagos, reitere-se. A
cidade de meio milhão de habitantes estaria preparada para uma
precipitação nunca antes vista? III. Chuva
pesada, volumosa.
Raios. Motoristas
assustados dão meia-volta — "Melhor esperar". E o compromisso imperioso?
"Deus me livre de acontecer aqui aquela loucura de São Paulo". Pessoas no
parque, perto do lago — "Coisa estranha: é o mesmo há vinte anos, e ainda
tem gente que fica ali, contemplando", ela pensa, enquanto, mais adiante,
vê uma mulher cujo vestido vermelho é agitado pela ventania, revelando
para o mundo a ausência de veste íntima. IV. E
a tempestade avança até o começo do fim da tarde, quando, enfim, após
ventos impiedosos, a paz retorna. Ela
ainda na janela; dezessete horas e trinta. "O
que faço aqui?". E, dando um pulo rápido até o outro quarto, livra-se da
roupa, põe um short curto, camiseta, havaianas e foge do apartamento.
Minutos
depois, o carro fica largado no acostamento da rodovia que margeia alguns
quilômetros de praia. Ela
mete os pés na areia, respira fundo; e o mar, o cheiro dele molhado pela
chuva demorada. Ela caminha, aperta o passo, os cabelos soltos, o corpo
ágil de quem divide pequena sala com uma dúzia de outras mulheres em duas
aulas semanais de Muay Thai. Queria
andar indefinidamente, com chuva, como fazia aos dez anos, de bicicleta,
braços soltos, voando... Queria
não parar, andar, não pensar, sentir, respirar, imaginar borboletas no voo, beija-flores na
investigação dos néctares, bem-te-vis, pássaros, nuvens,
chuva! E
continuar, até além da meia-noite, varar a madrugada, até que viesse
novamente o sol, o calor, e nova chuva desesperasse o mundo, bulisse com
todos e com ela, que continuaria caminhando, sempre, adiante, por horas e
dias, e dias, e dias....
Sim, era o que mais queria: chuva dentro dela, molhando, tocando, acarinhando, chovendo no coração dela, na face dela, na frente, no olho, no lábio, e por trás a densa chuva... Que na alma dela a chuva entrasse...
Monika Woolf é fotógrafa e artista plástica. Quer ainda escrever um romance, "mas só depois de ler tudo do Flaubert, do Mann, do Calvino, da Yourcenar etc.". Atua em uma ONG de combate à corrupção. Nasceu em Santa Catarina. Casada, vive no interior de São Paulo.
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