edição 35 | junho de 2009
temas:  farpas | o outro lado | retrato

©eliége jachini

chororô
alice barreira

Então, não quer mais brincar com a tia? Puxa vida, o meu príncipe não quer brincar comigo, ah, vou ficar muito triste, acho até que vou chorar, vou chorar sim, já tô até sentindo que o choro tá vindo, ele tá subindo por aqui, tá vindo mais pra cima, sente só, ó, tá sentindo bater? É o choro que tá vindo porque você não quer brincar com a tia, é, e esse choro é daquele grandão mesmo que quando chega não pára mais, é o choro-chororô, o maior de todos, sabia que o mar foi feito de choro-chororô? Foi sim, uma porção de tias que os sobrinhos não quiseram brincar com elas, daí elas tavam juntas num lugar que tinha muita mas muita areia mesmo e todas começaram a chorar o choro-chororô e três dias depois tinham feito o oceano, viu só como é? Pode acreditar na tia, você acha que a tia ia mentir pra você, logo pra você, o sobrinho que a tia mais gosta, assim, lá do fundo do fundo do fundo do coração? E olha, a tia nem ia falar nada mas tô sentindo que esse choro-chororô é dos bem grandes, deve dar pra encher esse quarto todinho, e agora? O que que a gente faz, caramba? Ah, a tia tem uma idéia, vamos pegar a sua bóia de piscina, vamos, oba! Não, não precisa ficar com medo que a tia sabe nadar e te ensina, e daí sabe o que a gente pode fazer? Pode brincar de boiar, pra ficar boiando no choro-chororô, você topa? Ah, então a tia te ensina, claro que te ensina, olha você nem imagina como é legal, você vai adorar e vai aprender rapidinho. Não, não é porque é fácil, é porque você é o meu príncipe e sabe tudo, aprende tudo, porque com os príncipes é assim que acontece, e é só com os príncipes que acontece assim, sabe? É sim, você é o garoto mais esperto que a tia conhece e como você é tão espertãozãozãozão vai logo botar a bóia pra não afundar no choro-chororô que tá vindo aqui por dentro da tia, não é? E então, onde tá a bóia, ah, dentro do armário, vamos lá achar, uma caravana até o armário, uma expedição, vamos lá, abre-te armário, olha, tá logo aqui, mas que bóia bonita que você tem hein, eu nunca tive uma bóia tão bonita assim, puxa vida, deixa que a tia bota pra você, é só esticar um braço, isso, e agora o outro, muito bem, que garotão!, garanto que você faz um sucesso danado na piscina com essa bóia, hein? E o calção de banho não vai botar?, ué, vai nadar no choro chororô com essa bermuda, eu hein, meu pai do céu!, onde já se viu nadar de bermuda, parece coisa de maluco, seu, nadar é com calção, é ou não é?, então vamos achar esse calção, é um, é dois, é três, eu acho, eu acho que ele tá aqui dentro dessa gaveta, tá frio, tá quente, eu vou encontrar, eu vou, encontrei!, olha aqui que maravilha de calção que ele vai vestir, é mais bonito que a bóia, meu deus do céu!, todo amarelo, e agora vamos tirar a bermuda e botar o calção, atenção, a tia nem tá olhando, é um, é dois, é três e saiu a bermuda, muito bem, e agora o calção vem chegando, e deixa que a tia te ajuda a botar e ele tá pelado, meu deus do céu!, mas não tem problema ficar pelado não, pode até nadar pelado no choro-chororô junto com a tia, não precisa ter vergonha, pronto, a tia fica pelada também, pronto, e eu acho até que se você ficar aqui bem pertinho da tia pode ser que o choro-chororô vá embora, vamos tentar, então chega assim bem pertinho, assim, abraça bem a tia, nossa!, eu acho que o choro-chororô tá indo embora, bota a mão aqui e vê se não parou de bater, assim, agora ajuda a tia a mandar o choro-chororô embora, ajuda, é fácil, vai empurrando assim com a mão, isso, você sabe fazer direitinho, não é que eu tô sentindo ele descer?, e eu acho que ele vai embora mesmo, caramba, não pára, meu príncipe, vai descendo e empurrando esse choro-chororô todinho que ele vai sair inteirinho, assim, mais pra baixo, não pára. Ih mas tem alguém chegando aí, não tem? Poxa, logo na horinha da nossa brincadeira? Não tem problema não, sabe o que a gente faz? A gente bota a roupa e guarda o choro-chororô pra brincar de novo amanhã. E a tia ainda vai te ensinar um monte de brincadeiras que você nem conhece e vai adorar, ah, vai sim.

 

2
dona cecy

AVC é o seguinte: a vida deixa a gente entupida e as veias se arrebentam —— daqui a pouco Marion chega. ela manda levantar e dobrar a perna, ficar apertando a bolinha, eu finjo que tô sem força pra sentir aquela mãozinha linda em cima da minha: assim dona Cecy, assim... isso, aperte —— carinho de mulher jovem e meiga é muito bom. se ela alisasse minha periquita eu ia adorar  —— depois do almoço me levaram pra caminhar no jardim soltei tanto pum meu Deus, mas mantive a cabeça erguida, feijão me deixa pesadona —— acho arrotar pior do que peidar —— mas comer só salada não é pra mim não. e eu lá sou gafanhoto? —— até os quarenta eu era seca batida e comia de tudo. no aniversário do governador no Campo das Princesas chamei Múcio Catão pra fazer minha cara e ele chega com aquela voz gasguita: fazer o quê, mulher? tu até parece irmã gêmea de Brigitte Bardot, entra em qualquer canto. puxa o olho, bota um vermelhão na boca e pronto. vão até pedir autógrafo! e o vestido, já escolheu? aquele verde de organdi. verde? tá doida? festa black-tie! vai de preto! decote, Cabochard e colar de pérolas! —— ai que saudade de Múcio! ai que saudade do meu Ruby Love da Helena Rubinstein! —— agora não posso mais. velha de boca vermelha fica parecendo uma palhaça —— Bardot tá uma sanfona de pelanca mas eu não —— se eu abrir as pernas Marion me alisa? —— 

 

 

 

 

1 poema
jane sprenger bodnar

lua

ver-se do céu

ilhada em poça

 

poço

ver do fundo

a luz do que posso

 

 

 

interpretações livres de um retrato em preto e branco
julya vasconcelos

Marília disse: sou um fardo.

Envolveu no papel de seda um fumo de cheiro atroz, sabor pesado, traços de quinino no céu da boca. Sacou do bolso um isqueiro azul transparente e fez um breve incendio entre os dedos. uma nuvem espessa dançou um bolero torto no teto.

 

Marília faz: afundo como um corpo.

Joga o olhar pra fora dos olhos, numa tigretude súbita. Guarda os dentes, molares, caninos, e busca uma indecisão qualquer pra tirar o pó das coisas, alargando uma capacidade antidesmaio qualquer.

 

Marília diz: sou um barco.

Descalça até a alma, enviesa a linha toda e nada mar adentro pra alcançar as mãos de Adriano, que olha sempre o lado oposto, como se fosse mais coisa que homem, como se fosse um vaso de antúrios bem vermelhos.

 

Marília pensa: amo as mãos de Adriano.

Cada medida, um nó. Articulado ora por cinzas de cigarro, ora sede, medo. No meio de tantos nós: uma palma: coração de couve-flor. Gosto de comê-la antes de partir, pra sentir teu gosto de oceano e as linhas macias dos continentes em trégua, embaralhadas. Marília sorriu no sofá. Adriano observa atentamente o rasgo da cortina à esquerda.

 

Marília ouviu: a faixa de gaza é uma tira fiiiina de açúcar nas tuas mãos.

 

 

 

 

 

 

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