edição 35 | junho de 2009
temas:  farpas | o outro lado | retrato

 

chegança
florbela de itamambuca

do outro lado do mar tem a calunga
lugar que nunca ouvi nunca fui lá
barco vinha ver canto de oruiá
bicho motor de ferro que resmunga

aqui voa bonito o tangará
bonito balançar saia da dunga
mexe pra cá nas onda da sununga
peixe no mar aonde chegará

tem chegança na praça tem reisado
logo mais vem divino que adivinha
onde além de onde vai o ponto riscado

cai o sol solta o mar barco não vinha
sobe a rede me some com as tainha
perde um tesouro aqui do outro lado

 

 

cristais sobre o rio
jussara salazar

Sim, lá vai o rio. Passa espesso, luminoso, profundo. Intenso vai carrega velhos cristais na procissão de homens, flores, fitas, votos, velas. Fantasmas ondulam a superfície larga. Quaram.

Óculos e vejo

as medusas, turmalinas, passos, tentáculos, o branco azul que dói, o texto monturo de ontem.

Mas hoje nenhum arbusto flutua.

Nada, nenhum fruto apodrecido, nenhuma carne em agonia, tudo é silêncio. Um sopro acalma: os ventos de Iansã circundam brisam o rio das capivaras. Respiro o aprazível de tocar os olhos até onde vão as pedras submersas dessa terra de árvores marinhas — campo, templo de deuses sem nome, querubins de muitas línguas, águas de Ofélias. Língua de casca áspera bate bigorna.

[um prego nervoso degola um halo de luz, me diz que é para escrever tocando o papel devagar, sem chispas à Lorca.] Mudo de cadeira, procuro o sol, mina vermelha de seda em ouro bruto.

Osso oco, metáfora resto.

[vinde, caminha sobre essas águas e observa, contempla as baronesas que surgem feito exércitos, as ovelhas brancas, as romãs passando, boiando como cristais delicados, sol quebradiço, umbigo esquisito da cidade.]

Cinco martírios.

A lâmina do tempo me diz outra vez: é um rio — e rápida também passa. Por isso aguardaremos a chuva o sol, aguardaremos o que nunca pára de passar. O inseto em sua nudez sobre o papel.

Mergulho.

Senhora, ai de mim ninguém viu, minha guia caiu no espelho do fundo do rio...

 

 

Recife, fevereiro de 2007.

À memória de Caio Fernando Abreu

  

 

desabrigo
lia beltrão

 

Estava sob as cobertas numa cama confortável, na penumbra de um quarto aconchegante de um apartamento amplo e seguro. Com tudo isto, sentia um enorme mal-estar. Era seu corpo que não mais servia de continente para aquilo que também sentia como si mesma. O corpo e a coisa, definitivamente, não se entendiam.

Por mais que tivesse lido e ouvido os argumentos sobre a unidade do corpo e do espírito, o que sentia agora era todo o peso da velha doutrina dualista. O que mais lhe chamava a atenção é que os filósofos e os religiosos nunca encontraram um termo que nomeasse esta suposta entidade única e indivisível. Ao fim de todos os arrazoados, o vício lingüístico se impunha: corpo e alma, corpo e espírito, corpo e psiquismo, corpo e mente.

Ali estava ela, a mais crassa expressão do velho dualismo. Alguma coisa sobrava no seu corpo. Algo espesso e frio pendia das bordas da sua matéria. Era algo invisível, impalpável, mas percebido confusamente como uma coisa fora do seu lugar. Isto ela podia perceber do ponto de vista do seu corpo. Mas se tomasse o lugar da coisa transbordante, o que sentia era uma imensa sensação de desamparo, uma necessidade enorme de contenção. Pois à medida em que pendia, ameaçava dividir-se em gotas espessas, ao mesmo tempo em que se experimentava como angústia pela deformação e o gotejamento da memória.

Não suportava mais a dupla condição em que jazia. Como corpo, sentia-se fracassar em sua função de continente. Como espírito, alma, mente, psiquismo, seja lá que nome tenha esta coisa informe e espessa, perdia a consistência da memória e da continuidade. Foi assim que desejou morrer. Se matar. Mas não sabia por qual parte começar.

 

 

 
 
 

1 conto, 1 poema
lídia

 

rosário

 

Antes que floresça em mim a névoa, confidencio, nestas linhas que traço atrás desse retrato antigo de minha mãe, o meu abismo.

 

Cedo aprendi a ler a neve.

 

Meu pai, que era açougueiro, quando não conseguia disfarçar a carniça que fedia na boca, me batia com o bife na cara. — Quando me penetrava entre as nádegas o casco de pinga eu pensava que ele tendia a esgoto.

 

Cedo me ensinou a abanar as moscas do açougue.

 

Um dia, no túmulo de sua alma, o nojo disse que a morte, esse fracasso, seria um dia o seu cárcere. Um dia antes de deixar para minha mãe 3 semanas de luto, me confidenciou o seguinte epitáfio: no escuro da tumba onde me enterraram pratico toda uma inexistência.

 

Com a morte de meu pai as moscas, enfim, tomaram o açougue.

 

Meu sonho, em particular, sempre foi desempenhar ao Essenfelder a Balada n° 1 de Chopin. Mas o que me restou, depois que minha mãe se casou com o leiteiro, foi desfiar esse rosário de farpas que, pasmem, passa pela família desde o século das torturas.

 

Agora, anos depois da morte de minha mãe, me restam na frágil memória as histórias que me contava sobre esse rosário e sobre generais antigos que decretaram a queima dos livros.

 

O fato é: esse rosário, que tem a forma de um coração decepado, que aprendi a desfolhar diariamente, num rito quase doentio de um tempo pueril, pois era, não como desejo, mas sim ordem, ordem de minha amada mãezinha, me escravizou as mãos, ou melhor, corroeu uma e me decapitou a outra.

 

Nunca, mesmo em sonho, toquei uma tecla sequer ao piano.

 

No final dessas confissões me resta dizer que pressinto meu fim. Sinto que me cresce o musgo sob a língua e a neve, que cedo aprendi a ler, tem me segredado, com cochichos no ouvido, que a morte nada mais é que esse fracasso de esquecer e silenciar para sempre aquele grito que nunca tivemos a ousadia de soltar, aquele livro que sempre tivemos preguiça de escrever, aquela mulher que sempre queríamos escutar por horas o silêncio.

 

E esse rosário de farpas pontiagudas? Resta agora ao meu filho dar continuidade à tradição secular. Resta a ele a memória de seu pai, do pai de seu pai e assim por diante. Se, em algum momento, tiver o mesmo sonho de acariciar o Essenfelder ou de lamentar as noites na viola-de-gamba ou tocar com a pele suave das mãos o seio da mulher amada, desista, seu destino não foi lançado feito as garrafas que os enamorados jogam no oceano, seu destino já foi traçado antes mesmo de meu nascimento, e só a ele cabe essa dolorosa porém nobre incumbência, a de decifrar esse rosário que receberá dentro dessa caixinha-de-música.

 

— Meu filho, que seus dias sejam longos e brancos.

 

 

 

loa

 

Sonho com mulheres dentro do espelho.

 

Mulheres dentro do espelho:

lamentos para dia de chuva.

 

Apenas sonho com mulheres dentro do espelho

quando os muros e as outras coisas adormecem.

 

Sou a neve nunca fixada nos haicais de Issa.

 

Loa, uma das mulheres dentro do espelho,

É graveto que deus disfarçado de vento pisa com a primavera.

 

Possíveis descrições de Loa:

 

1. calada que o Essenfelder no abandono

 

2. fixa nas cores do maracatu parado

 

3. automóvel cansado e lenço de adeus

— nessa imagem chove no lenço —

 

Loa percebe que tem o coração decepado.

Seus olhos são lâminas de Hamlet.

 

Loa tem o sorriso triste

feito o bandoneon de Piazzolla aberto para baixo.

 

As outras mulheres

são as três mulheres do Sabonete Araxá.

 

Tenho o azinhavre no coração

que faz com que as mulheres dentro do espelho saiam em disparada.

 

Retorno ao estado de vigília

e penso que nesse estado posso,

a qualquer momento,

morrer para sempre.

 

dentro do espelho me restam esses versos

do bardo Al Berto:

 

inclino-me de novo para o pano deste século

recomeço a bordar ou a dormir

tanto faz

sempre tive dúvidas de que alguma vez me visite a felicidade

 

  

©eliége jachini

 

10 poemas
líria porto

 

 

o poema

 

não se desprende da ponta dos dedos

fica debaixo da unha — tal como farpa

ou sujeira

 

 

 

 

velouté

 

palavras cremosas

ditas à nossa porta

e abrimos a guarda

 

(malditas farpas)

 

 

 

 

dentuça

 

durante a tua ausência

deitei-me do outro lado

dormi de rosto colado

com a tua fronha

 

a saudade é uma doninha

a saudade é uma toupeira

ela rói dentro e fora

rói os ossos rói o peito

o corpo os sentimentos

a saudade rói os sonhos

 

e mostra os dentes

 

 

 

 

cara ou coroa

 

não me calarei

ao calabouço del rey

 

estou do outro lado

da moe(n)da

 

 

 

 

oblíquo

 

deitado na transversal

a cama fica melhor

 

t u d o cabe

dos dois lados

 

 

 

 

conquista

 

alisa do lado de cá

alisa do lado de lá

arruma as penas

sacode o corpo a cabeça

olha-me pisca

abre o bico

 

: oh

sabiá sabe de mim?

 

 

 

 

proprietário

 

seus bigodes

arames farpados

cercaram-me a boca

e fincaram bandeira

 

 

 

 

a fotografia

 

os filhos afirmam

foi-se para sempre

 

o velho olha o retrato

pisca-lhe e murmura

: são tolos

continuas aqui

linda como antiga-

mente

 

 

 

 

nada além

 

quando eu morrer

enterrem comigo

o retrato das filhas

um punhado de terra

o mapa de minas

e o apito do trem

 

 

 

 

 

outdoor

 

eu olho a boca de beijo

que sorte daquela moça

a que detém tua boca

e sabe dos teus segredos

aqueles que só revelas

bem debaixo das cobertas

entre suas coxas

 

eu olho os olhos negros

que sorte daquela dona

a que te olha nos olhos

e sabe dos teus anseios

aqueles que depositas

nas madrugadas de inverno

entre seus seios

 

eu olho o teu retrato

que sorte daquela zinha

a que me mata de inveja

pelos apelos do corpo

por tua alma que é dela

não minha

 

 

 

 

reme reme

 

o momento congelado

preso na fotografia

é um lance do passado

como a carta que te envio

quando a lês estou mudado

e a tristeza que havia

poderá não existir

 

o tempo é rio

  

  

 

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