edição 34 | abril de 2009
temas:  por quê? | a dificuldade do não | muros

 

berliner mauer

(de Memórias de Patty Flag)

patty flag 

 

— Veja, Patrícia, é Berlim! Estão derrubando o muro!

 

— Sim, amor. Desliga isso e vem jantar.

 

— Sua família estava de que lado do muro?

 

Oromar não desligou o telejornal, apenas aumentou o volume o suficiente para que pudéssemos acompanhar as notícias da cozinha. Sei que o fazia por mim, por acreditar que aquilo me interessaria. Mas as alegres imagens da Alemanha não me diziam nada.

 

Seu enorme sorriso, porém, ao cruzar a porta da cozinha, varreu o meu mau humor.

 

— Morávamos em uma pequena rua chamada Sophienstrasse, em Mitte, um bairro que seria em Berlim Oriental. Mas, querido, não havia muro naquela época. O muro só começou a ser construído bem depois de eu chegar ao Brasil. Você deve se lembrar, foi ali pelos anos 60. Já havíamos nos conhecido no Cassino da Urca e nos perdido de vista novamente. Na época do muro eu já estava na Vogue.

 

Oromar esfregou as mãos e começou a se servir, elogiando o feijão que derramava com cuidado sobre o arroz, vagarosamente misturando o preto no branco.

 

Eu fui direto para 1938. Minha mãe varrendo a sala em silêncio, meu pai transtornado. Pedras e os vidros de todas as nossas janelas estilhaçados pelo chão, "Warum?" "Warum?", "Por quê?" "Por quê?".

 

Era a manhã seguinte à Kristallnacht, a "Noite dos Cristais". Por toda a Alemanha sinagogas, estabelecimentos comercias, residências judias haviam sido atacadas. Diziam que um judeu matara um alemão em Paris e que esta era a resposta da população alemã enfurecida. Mais tarde descobriu-se que a ordem dos distúrbios havia partido de Hitler, e que a tal "população enfurecida" não passava de soldados à paisana.

 

O muro nunca me disse nada, do passado só trago a saudade. Eu sempre quis passear uma última vez na Alexanderplatz, mas não hoje na Berlim reunificada, não em 1961, quando começou a ser construído, não em 1989, quando caiu, e nem em qualquer outro dia, enquanto esteve de pé. Mas sim em 1937, uma mão segurando a mão de minha mãe e a outra mão carregando a käsetorte que íamos buscar na melhor confeitaria da cidade para a sobremesa dos jantares de sábado.

 

O muro nunca me disse nada. Construí o meu próprio Muro de Berlim ao longo de minha vida. Trago um Berliner Mauer particular dentro de mim e ele tem o tamanho de um mar.

 

O meu Muro de Berlim é o Oceano Atlântico inteiro.

 

culpado

roberta silva

 

Se a contravenção é a porta larga e a fé, a estreita, o porquê é um muro de concreto. Nada é fácil para quem é sua presa. Conheci-o aos onze anos, assistindo ao julgamento de Sócrates no colégio. Desde então, a solidão me faz companhia cada vez mais. Sinto falta de um estilo, uma tribo, uma rotina, mas é tão difícil encontrar ou criar uma que responda a todos os porquês. Perdi o direito de ser gente. Sou sempre alguma coisa demais, imperfeita demais, boa demais, inteligente demais, burra demais e quando veem que não sou tão assim, me transferem para o pólo oposto. Humana, só para poucos, só para os loucos. Reconheço que tenho culpa, não tenho fé na humanidade, não acredito no sofrimento dos coitados, não consigo chamar de ruim o meu cabelo carapinha, há anos não uso maquiagem. Tenho medo do julgamento final. O Deus em quem acredito nunca me daria o paraíso.

 

 

no fim do domingo
ro druhens

— acabou?

 

— o que você acha?

 

— se eu achasse alguma coisa, não perguntaria. Acabou?

 

— não necessariamente...

 

— sem divagações, acabou?

 

— é impossível que você não tenha uma opinião sobre isso

 

— eu tenho, claro, mas a sua importa mais, acabou?

 

— complicado jogar tudo pelo ralo,  houve tantas coisas boas...

 

— é assim com todas as histórias, acabou?

 

— tive sonhos, fiz planos...

 

— e assim com todo mundo, acabou?

 

— e se eu disser que não?

 

— e se você disser que sim? Acabou?

 

— vamos dar um tempo?

 

— ninguém se dá um tempo, o tempo é que se nos dá, acabou?

 

— não entendi.

 

— eu, sim, acabou!

 

— ... acabou???

 

 

 

2 poemas
romina conti

bombril

 

o muro

pra pichar

 

o muro

pra abaixar

 

e defecar

 

 

 

 

escuro

 

berlim teve um muro

você tem um muro:

quem pode olhar

pelo seu furo?

  

 

véus, grinaldas e grilhões

santa maria

 

 

I

 

A noiva, prometida e enamorada,
deixou todos esperando na igreja,
e fugiu com a cunhada.

 


II

 

Quando o noivo chegou ao altar,
olhou para a desconhecida ao lado
e gritou sim sem gaguejar.

 


III

 

Repletos de encantamento,
depois da lua-de-mel,
cada um voltou ao seu casamento.

 

 

gim
shânkara lis

A noite acaba feito gim. E eu tenho dificuldade de dizer não ao gim. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino.

 

Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel — mas ele é o gerente do The Bay Hotel —, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico.

 

Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. E eu tenho dificuldade de dizer não aos tímpanos da chuva. A noite acaba feito gim.

 

Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma —, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. E eu tenho dificuldade de dizer não às rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. E eu tenho dificuldade de dizer não às coxas de Joana. A noite acaba feito gim.

 

Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos.

 

Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite — o senhor K. — poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância — dessa mulher que enxágua retinas — e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. E eu tenho dificuldade de dizer não a uma piscina molhada. A noite acaba feito gim.

  

 

 

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