edição 34
| abril de 2009
porque
em certa tarde desenhou um corpo, na altura do coração, sobre o pulmão
comprimido Os
cadernos esquecidos na mochila preta marcada com corretivo, corrigindo o
preto da mochila; o almoço que era um sanduíche envenenava o estômago na
pressão do ar que entrava pela janela; a dor e o medo o invadiam de
assalto no grito que saía da porta ao lado; sua vida pequena mais cinza
que amarela fazia o caminho da casa à escola. Porque para sempre nas suas
costas, sua mãe nunca mais o ignora. negação
da infância negada pela inexistência do vocábulo não acarreta crime
violento Eis
a manchete de um jornal sangrento: Restos de uma mãe são encontrados
debaixo da pia de uma cozinha. Motivo: educadores alegam que não se pode
dizer não às crianças. solidão
conjunta Um
olhar preso no teto, um olhar preso no chão. O que era um se divide no
mesmo espaço entre muros de silêncio.
muros 1.
muro,
o corpo. a
vida se salva da
janela. 2. pedras
fincadas nos
búzios dizem
os muros, os
quilates de muros. todo
limite pode ser punhal.
2
contos, 1 poema a
teia de renda negra Tomava
agora mais um cálice de vinho, sabendo que já ultrapassara há muito aquele
que constituía o limite do que seria próprio ou não. Esperava, como
sempre, por ele, que não se dava ao trabalho de respeitar a etiqueta,
deixando-a frequentemente aguardando nos restaurantes, via de regra
isolados, já que não podiam ser vistos juntos. Conhecera-o
no aeroporto, terra de ninguém, onde se tem a impressão de poder mudar o
próprio destino apenas observando, nos monitores, os horários de embarque
para os diferentes lugares do mundo. Ele assobiava baixinho, num compasso
um tempo mais lento do que o arranjo original, a música de sua vida. Ela
virou a cabeça, querendo descobrir quem com ela compartilhava do mesmo
gosto e que, sem saber, invadira o mundo de seus devaneios. Descobrira-lhe
a senha e adentrara, sem cerimônia, um território cada vez mais bem
guardado, impenetrável. Tamanha ousadia não ficara impune. Trocaram
telefones, risos, prenúncio das muitas outras trocas por
vir. Impaciente,
em parte pelo atraso do amado, em parte pela melancolia trazida pelas
recordações, consultou o relógio, jurando que só esperaria mais cinco
minutos. Que viraram dez, quinze, vinte... Quando ele chegou, percebeu de
imediato o que aquele atraso lhe custaria. Ela trazia os olhos borrados,
indício claro de que tinha chorado. Tirou-a rapidamente dali, e seguiram
para o local de sempre. Deitado
enquanto ela tomava um banho, deslumbrou-se ao ver a nova lingerie que ela havia comprado.
Tudo bem, ela sempre fora lindíssima, argumento com o qual ele justificava
a fraqueza, e assim a vinha enrolando há quatro anos. Mas naquele dia ela
parecia especialmente bela. Irresistível, ele diria. Talvez se
ela lhe pedisse hoje, ele resolvesse de vez a situação. Não queria se
separar, mas também não podia mais viver sem ela. Mas
ela não lhe pediria nada. Cansara-se das promessas vãs, tão falsas quanto
o anel que ele lhe dera no Natal passado. Amaram-se
como nunca naquela tarde, com a urgência do desejo e com a calma da
derradeira vez. Sim, porque ela planejava deixá-lo. Tencionara que esta
fosse a despedida, e nem dessa vez o canalha chegara na hora. Hoje diria o
definitivo não, a partir do
qual pretendia iniciar uma nova fase em sua vida. Com
a negligé negra e com um jeito
sacana no olhar, ela dirigiu-se a ele. Parou, no meio do caminho, para se
servir de mais uma taça de vinho. Ele tentou impedi-la, argumentando que
ela já bebera demais, que ia passar mal... Ela então esbravejou, dizendo
que para ele não faria a menor diferença, que as ressacas ela costumava
curar sozinha, já que ele nunca estava mesmo por perto quando ela
precisava, como da vez em que ela abortou, por insistência dele, o filho
que esperava. E em sua revolta, tão maior porque misturada à mágoa e à
paixão, ela quebrou a garrafa de vinho e o feriu. A embriaguez não lhe
tirou a capacidade de perceber que ele morria. Ajoelhando-se, colocou-lhe
a cabeça no colo, ninando-o, como teria feito com o filho de ambos. O
sangue misturou-se à renda negra da lingerie, que parecia uma imensa
teia. Como a aranha, espécime que executa o macho após o acasalamento, ela
pusera fim à angústia de esperar que ele ligasse no dia seguinte.
Entretanto, havia uma irônica diferença: nem viúva-negra ela era, já que
ele nunca fora, realmente, seu. certas
noites de abandono Certas
noites de abandono Daquelas
que roubam o sono Aquelas
que têm lua linda Noites
em que a mágoa não finda Certas
noites de abandono Verões
com cara de outono Serões
com cara de ainda Em
que aguardo tua vinda Certas
noites de abandono Pedem
colo, querem dono Mas
tua voz me melindra E
a taça já não brinda Certas
noites de abandono Convertem-se
então em motim E
eu, triste, assisto ao fim Desse
rei que ora destrono de
máscaras e sombras O
sol brilhava alto quando ela chegou à velha casa onde havia sido criada.
Passeou pelos jardins, algo que não fazia na cidade onde agora morava. De
fato, sentia-se mais forte essa manhã, a despeito da anemia diagnosticada
pelo médico. A ida à antiga casa da família, sempre adiada, surgiu de modo
quase compulsório, já que os ares do campo seriam benéficos à sua
recuperação. Suas pupilas contraíam-se em virtude da claridade inesperada
para aquela época do ano, como se o brilho da manhã pudesse incomodar.
Arrancou uma rosa do pé, e sorveu prazerosamente seu perfume, enquanto
pensava se ele viria ou não visitá-la. Pousou a mala no banco da varanda,
afastou os jornais e olhou em volta, reconhecendo o lugar, ao mesmo tempo
tão familiar e tão diferente, agora que o via com a perspectiva da mulher
adulta, no lugar da menininha que havia crescido naquela casa.
Lera
novamente as cartas enviadas por ele, como se o simples contato com elas
tivesse o poder de trazê-lo para perto de si. Alisou o papel, sentindo-lhe
a textura, pensando que, indiretamente, talvez o pudesse também acariciar.
Aproximou a carta do nariz, talvez na esperança de sentir o perfume, como
nas novelas de época, como se a vida moderna não tivesse aniquilado tal
possibilidade, fazendo com que o perfume, se um dia se tivesse derramado
naquele pedaço de papel, já não se tivesse evaporado e extinguido nas
sucessivas viagens da missiva até lhe chegar às mãos. Voltou à carta,
observando a letra irregular do remetente. Letra irregular, comportamento
instável, pensou, enquanto lia o amontoado de baboseiras que ele
insistia em escrever. Será que ele viria vê-la? Se na cidade as visitas
tornavam-se cada vez mais raras, num afastamento gradativo, numa espécie
de morte lenta, o que poderia esperar daquela estada, sem ao menos o
alento da promessa, ainda que dificilmente cumprida? Subitamente,
arrepiou-se. Aquilo urrava novamente no porão. Ainda que não tivesse
passado de um grito abafado, como uma foto que esmaece com o passar do
tempo, conservava o mesmo poder de sempre, de aterrorizá-la como se não
houvesse saída. O desespero apossou-se novamente dela. Encolheu-se como a
garotinha que anos antes jurara nunca mais pôr os pés naquela casa. Mas,
nem que fosse para vendê-la posteriormente, ao menos uma visita fazia-se
necessária. Como um avaliador que olha friamente, vislumbrando os vinténs
de sua comissão por detrás dos jardins que habitam a tela, inspecionou os
quadros, que talvez valessem mais do que a propriedade em si, imaginando o
que faria quando se livrasse deles. Mas o preço a pagar era alto, ela
sabia-o bem, pois os anos de insônia não lhe seriam ressarcidos jamais.
Tapando os ouvidos, tentando com isso abafar não apenas os gritos, mas as
lembranças, caminhou em direção à casa. Desceu vagarosamente as escadas em direção ao porão. Sua decisão era aterrorizante, porém irrevogável. Finalmente era chegado o momento de libertá-la. Tirou cuidadosamente a chave de dentro do decote, e só então soube que ela sempre estivera ali. Aproximando-se da jaula com um olhar enigmático, reminiscente, sorriu levemente e destrancou-a. A Fera olhou-a, atônita, com uma expressão que sugeria não apenas surpresa, mas a desconfiança típica de quem ficou presa por tanto tempo que a sonhada liberdade chega a amedrontar. A moça estendeu-lhe a mão, que o animal lambeu levemente antes de recomeçar a urrar. Mas, dessa vez, o grito não a apavorou. Balançando a cabeça em sinal de aprovação, confirmou-lhe que era chegada a hora de agir. Lentamente, a Fera subiu as escadas que a conduziriam à porta da casa. Lá fora havia alguém a quem precisava encontrar, pois eram muitas as contas a ajustar.
a
estante Sentiu
a mão firme em seu ombro. Voltou-se, amedrontada com o olhar agressivo do
segurança. Pediu que abrisse a bolsa, à qual se agarrava. Ela negou.
Irritado, levou-a pelo braço, com firmeza, para uma sala fechada. Apenas a
mesa, duas cadeiras e o sofá. Ordenou que lá aguardasse, enquanto chamavam
uma policial feminina.
Bastou
um olhar para que aquela estante despertasse a atenção de Maristela.
Frequentadora eventual da livraria, não a havia notado antes. Com
naturalidade, foi até lá e pegou um livro. Uma capa simples, porém com
design elegante. Não conhecia o autor, Cantos e Desencantos era o título.
Passou o olhar pelas orelhas e pela contracapa. Abriu ao acaso, deu com
uma página em branco. Virou-a. A seguinte, também em branco. Intrigada,
constatou que todas estavam em branco. "Um defeito imperdoável da
editora", pensou, devolvendo o livro à estante. Pegou outro exemplar. A
mesma coisa, só páginas em branco. "A
polícia vai demorar um pouco, não prefere mudar de idéia, senhora?". O
segurança, visivelmente impaciente, não continha a ansiedade em realizar o
flagrante. Maristela, agarrada à bolsa, não disfarçou o temor com a
situação, mas negou com um gesto. Frente
à estante, sensações contraditórias lhe brotaram num arrepio: a intuição
ordenando distância, a curiosidade urgindo investigação. Pensou em chamar
o atendente. Conteve-se. Pegou novamente o primeiro exemplar e examinou-o
mais detidamente. Na contracapa, uma das críticas ressaltava ser "a mais
romântica coleção de contos publicada em 2034". Sorriu, intrigada,
enquanto devolvia mais uma vez o livro à estante. "Por
que essas coisas acontecem comigo?", reclamou com seus botões. "Só por que
me chamo Maristela Campos"?, riu-se por dentro. Escolheu, então, um livro
diferente. Nem olhou o título, foi direto ao miolo. Dito e feito, também
em branco. Decidiu,
então, examinar outro livro mais, este bem volumoso, intitulado As Quimeras de Milena. Só páginas
em branco, como parecia acontecer com todos daquela estante. Na
contracapa, uma crítica referia-se ao texto como estando "dentre os mais
aguardados lançamentos de 2036". Numa orelha, o autor tecia agradecimentos
e homenagens, uma delas em caráter especial e em tom emotivo para a sua
recém-falecida avó Maristela Campos, "de quem herdara talento e recebera
estímulo para escrever". Um choro súbito tomou conta dela. Chocada,
soluçando, abraçou o livro, colocou-o na bolsa e, apertando-a contra os
seios, saiu. "A
senhora permite, por gentileza, que eu abra para verificar o conteúdo?",
solicitou a policial. Abatida, Maristela deu de ombros. A policial abriu a
bolsa e olhou, inquisitiva, para o segurança. Não havia nenhum livro
lá.
4
poemas epílogo
podia,
com treino ter
êxito no pulo podia,
com tempo ter
arquitetado um túnel como
tática, podia ter mudado
o rumo em
tese podia tudo que
não pôs em prática encarou
mero muro —
abstrato — como
concreto fim
do mundo filha
da pauta a
cabeça cheia de por quês a
mente porca [por
causa daquela coisa que
me dá quando me dou e
me dôo e me dão por aí] não
escrevo palavrão porque papai
me obsta mamãe
tem todas as
respostas [mamãe
é culta] para ouvir, clique aqui. música, violão e voz: Tony "Pituco"
Freitas silêncio a
não palavra o
tudo — mudo — reticência
que trava todo
acesso obstrui
o trato texto
tácito que
flui e não cessa em
si inviolável se
sua boca silencia a
minha grita louca
pelo sopro de
seu sim ou
o soco de
seu não [serve
até o som de
seu nem aí] um
saco esta
seca — intrínseca — e
seu lábio ao lado selado
a vácuo
Isadora, recorde a glória luminosa de Jó: melhor pobre, ao modo dos apóstolos, do que nas joias e filós.
Melhor porta afora, do que vaidosa, em odes e prosas de lençóis.
Melhor oratório do que óculos novos e broche pop de bisavó.
Melhor solo inóspito do que foz copiosa, toró.
Melhor na ordem do que rosa caprichosa.
Melhor o módico do que pródiga de dotes óbvios.
Melhor imóvel do que mole, nas modas.
Melhor se chove, e melhor se encolhe.
Melhor devota de Nossa Senhora, do que bossa nova e orgulhosa.
Melhor sem dó.
Isadora, acorde, concorde e se dobre: Melhor só. Só, melhor torta do que morta. Morta, melhor o pó.
Isadora devolve, manhosa: — Vó, olha só. Volte o Jó ao purgatório. Católica despretensiosa ora votos ao pior.
N. A.: Exercício de assonância em ó, em aula de Gilson Rampazzo (2004)
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1 poema é
real esta ansiedade. aposta, cavalos, dois corcéis negros tão perto da
colisão, nistagmo. vertigem em espiral, pré-síncope. antes de perder os
sentidos. tentativa de controlar o caos. depois há nuvens,
clorofórmio, torpor,
repetição que acalma
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