edição 34 | abril de 2009
temas:  por quê? | a dificuldade do não | muros

 

destino

sarah forte

 

 

Sutilmente, pedira ao médico que fizesse a operação. Sim, aquela. Qual? Ora, qual... Certas coisas a gente não sai falando por aí, nem em letra digitada. Se ela, que era ELA, ficava meio sem jeito! Imagine eu, que conto o que me disseram. Nem sei se é verdade. O que garanto é que foi por amor. Mas acontece que agora ninguém mais acredita que existam pessoas que mudem por amor. Pois vejam bem, ela mudou!

Chamava-se Tildes, ou Tildinha, para os mais íntimos. Era dona de um gabinete de beleza amarelo, que ficava na esquina, de frente para o sol. Às três e trinta da tarde, o sol entrava e as clientes todas odiavam aquele calorão. Tildes não. Tildinha arrulhava-se toda. Parecia uma pombinha de praça. Era baixinha, gordinha e loirinha. Tudo naquela pequenina mulher lembrava diminutivo. 1,55 m, pés 34, manequim 40. Na rua, uns sem-vergonha, às vezes, diziam: "As pequenas são as melhores!". Tildes enraivecia-se, mas também fazer o quê? Seu passado a denunciava. Fora concubina de um velho nos idos de mil novecentos etc. O velho morrera e deixara tudo para ela. Com o dinheiro, a Tildes comprou o gabinete, isso há uns trinta anos, e passou a residir lá. Mas era tanto escândalo...

A Tildes ganhou fama por ser mulher de muitos, excessivos, desordenados amores.

Qualquer paixão e pronto, lá estava a Tildes a dizer: "Finalmente! O homem da minha vida!". Que nada, daí a uma semana a Tildes aparecia chorando, a gritar com o sujeito que há um mês fora seu grande amor. E aí eram jarros que voavam, roupas no meio da rua. Polícia para acalmar a baderna. A Tildes, Deus me livre, quando gostava de um homem, grudava no coitado feito carrapato e só saía chutada. Era uma via-crúcis. Então, bebia pelo amor perdido e chorava no bar e subia em cima da mesa e tirava a roupa e gritava: "Eu sou é livre, que macho não manda em mim!".

Louca, aquela Tildes.

Há tempos que ela estava sozinha, a pobre. Parara de beber e vivia indo à missa. As pessoas estranhavam. Mas verdade seja dita: Tildes era outra! Atribuíram essa mudança ao moço que chegara no bairro: o Jeremias Gervásio. Negro reluzente, alto e maciço. Enorme.

E-N-O-R-M-E.

A Tildes nem pensou um minuto: foi lá e abordou o rapaz. Que tristeza... o Jeremias Gervásio era noivo de uma fulaninha do interior de não se sabe das quantas. Noivíssimo. Tildes chorou um pouquinho e passou a ignorá-lo. Chega uma época em que homem para de divertir e passa a atormentar. Tildes estava nessa época. Vivia nessa época. Mas o Jeremias. Ai... ai... o Jeremias, quando voltava do futebol, sem camisa e com aquele calção azul que não continha as expansões do seu corpo... Ai... ai... O peitoral à mostra. Aquelas pernas. Um cavalo. Rígido rigoroso o Jeremias Gervásio. A Tildes baixava os olhos e ia rezar o responsório de Santo Antônio. Mas um dia, eis que Jeremias vai procurar Tildes.

Pois é. Há dois meses fora ao médico e pedira, sutilmente, que lhe fizesse a operação. O doutor ainda argumentou, mas não tinha conversa! "Veja bem, quando a estética fala mais alto que a responsabilidade. E ainda mais na sua idade, minha senhora". Ela queria e ponto final. Que não era senhora de ninguém. Era a Tildes do Jeremias Gervásio. E idade para essas coisas não importava... "Desejo não tem idade, Doutor! Quando que a gente faz? E isso não é só pela estética, é pelo destino do amor da gente". Afirmou, filosófica, poética, firme como os braços musculosos de Jeremias. Marcaram a cirurgia. Jeremias acompanhou-a. No caso da Tildes, a coisa doeu muito, mas doeu uma dor safada e sem-vergonha, que ela chorando pediu: "Me anestesia, Doutor!". O Doutor foi lá e anestesiou. Desgraça. A Tildes, coitada, tinha alergia à substância da injeção e morreu de choque anafilático. O Jeremias chorou e sentiu-se culpado o resto da vida, pois fora ele que dissera: "Só deixo a minha noiva se tu ficar que nem ela: virgem!". A Tildes se desesperou. Na iminência de perder aquele possante rapaz, cuja firmeza ela já experimentara em todas as modalidades contorcionistas que o corpo humano permite, e nas que não permite também, foi incapaz de recusar o pedido, de indeferir a solicitação e disse, resolutamente, com a paixão dos que se mordem enquanto amam: "Pois eu fico que nem sua noiva, Meu Amor". E fez a operação. Morrera virgem. Reconstituída.

Na certidão de óbito, constava o seguinte nome: Francisca Bucetildes Silva.

Tildes, ou Tildinha, para os íntimos.

 

 

Sarah Forte (Fortaleza/CE). Estudante de Literatura Brasileira. Gosta de escrever contos. Uma iniciante.

 

 

 

 

 

 

 

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