edição 34
| abril de 2009
picolé no
final
mariinha Eles não cansam, não? Eu não tenho mais pique nem pra 3 horas dançando numa festa, como é que alguém fica dando tiro num morro sem luz, cheio de barraco e beco, por 5 horas? Não adianta a Cesária Évora se esgoelar, Mariinha, só tem um jeito, mais vinho. Eu não, você é que bebeu pouco. Ih, amanhã é dia do Chico vir com a história — temos que mudar, temos que mudar, temos que mudar pra onde, homem? Miserável dando tiro tem em qualquer lugar da cidade, do país, a essa altura em qualquer lugar do planeta, pelo menos os lugares do planeta onde nós vamos ter dinheiro pra morar. Se nem o governo faz alguma coisa... Ih, Mariinha, lá vem você de novo? Que o que, pára com essa lengalenga de sempre que eu não vou participar de ong nenhuma. Ih, é a hora da missa! Eles não escolheram, se a gente acha ruim aqui, imagina lá, favela não é problema, é solução. Viu como eu já decorei? Ora, faça-me o favor. Eu também não escolhi, ou você acha que o Brasil é o meu sonho de consumo? Tá certo, tá certo, ninguém agüenta mais os biribas com pó da Verinha, ninguém mais tem saco para os bazares beneficentes da Dora. Mas daí a subir morro. Prefiro comprar um cachorro com a filha da Su, vem com pedigree e plano de saúde, uma coisa organizada, duvido que qualquer negrinho daí de frente tenha isso. Ouve o que eu te digo, Mariinha, compra um cachorro. Esse vinho hoje não está fazendo efeito. E olha que eu sou fraca, fraca pra bebida, sempre fui assim. Vinho, então. Sabia que a minha primeira vez foi depois de uma garrafa de vinho? Lembra do Arthurzinho com h? Coitado, crente, crente, e eu ali, tímida, caindo na conversa dele como planejei por um mês. É, eu não te contei porque você era muito amiga dele. Era sim. Não sei porque eu lembrei disso, Mariinha. Do vinho não, deve ser efeito dos tiros. E você vai ter que ajudar a negrada sozinha, pra subir morro nem todas as garrafas dessa casa me convencem. Eu vou passear com o meu afgã-hound, ou seja lá que diabo de nome tenha a tal raça. Por que você não sobe lá agora e convence os carinhas a ir dormir? Meus filhos querem comprar maconha amanhã de manhã antes de ir pra escola e quem vai estar lá pra vender? Ninguém, vão estar todos dormindo porque ficaram dando tiro até de madrugada. É sério. Que urbanizar o quê. Também não, ninguém vai se unir, Mariinha. Que pode dar tudo certo nada. Tudo é tanta coisa. A gente não se une nem pra reformar a portaria do prédio, que está um lixo. Você viu que a perua do oitavo andar botou a mesa de mármore no meio da passagem outra vez? Eu vou convocar uma reunião extraordinária, ah, vou! Não sei em que mundo você vive. Já te dei tanto conselho. Mas não adianta, não é? Lá vem você de novo e de novo que não é pra pensar em mármore, que os pobres isso e aquilo, que pena!, que pena! Desde a faculdade que você é assim, com esse estoque de pena que não acaba mais. Já te falei, bicho de pena tudo toma no cu, Mariinha. Não briga comigo, desde quando eu sou rica? Olha o vinho que eu tomo. Meu calmante é lexotan, mulher! Uma pobreza. Na Europa, nos Estados Unidos, qualquer classemediazinha remediada tem o que eu tenho. Na África eu seria uma rainha? Deus me livre de ser rainha na África, e muito menos na China, onde eles falsificam tudo, ô que raiva eu tenho de produto falsificado e dessa chinesada. Eu sei que você não tá falando de chinês, mas eu tô. Eu odeio a chinesada. Eles vão acabar com o mundo, vão falsificar o planeta inteiro. Sabia que muita gente aí dessa favela vive vendendo essas tralhas? Pior, muita gente usa. Tem bolsa falsa da Luis Vuitton e não tem dinheiro pra sair de lá? Daí? Faça-me o favor, Mariinha. Já sei, já sei o que você vai dizer mas você devia era me passar o vinho em vez de bancar a comunista, o comunismo acabou no mundo todo, está out, out, my dear. É impressionante como as coisas acabam cada vez mais rápido. É maquiagem, é jóia, é vestido, é sapato, é comunismo. Ah, que cansaço. E os restaurantes? Eu falo pro Chico, qual é o chef de cuisine nessa cidade que nos conhece? Não tem, não tem. Mariinha, agora eu vou citar você: ô mundinho de merda. Às vezes dá vontade de fazer como a minha filha e botar a bandeira do Brasil na janela. Mas aí você já sabe, não é? Lá vem o Chico dizendo que é perigoso, pode chamar a atenção dos bandidos aí da favela. Ai, Chico, ô homem cagão. Eu não ligo muito para o que ele fala. As crianças também estão aprendendo a dizer hã-hã, hã-hã e tomar suas próprias decisões. O Chico é um bom advogado, bom não, muito bom, dos melhores. Mas fora isso. E tão lengalenga. Já sei, Chico, os bandidos, a bandeira. O problema é que, francamente, a bandeira é muito feiosa. Mariinha, que verde-e-amarelo está fashion no mundo todo o quê?! Nunca vi nada assim em Paris nem em Londres nem em Nova York. Vi muita bandeira americana, isso sim. E quer saber? Eu não gosto de bandeiras. Não, não, você não vai pra casa nada, fica aqui comigo, vai. Quando é que eu vou tomar jeito? Você vive me perguntando isso, já reparou? Vamos tomar é vinho, vinho, vinho. Vou abrir outra garrafa. Olha aí, eles cansaram de dar tiro, foram dormir e levaram o meu sono junto. Até isso eles roubam. Vão dormir bonitinhos e eu fico aqui. Mariinha, faz uma ong pra cuidar do meu sono. Faz uma ong pra convencer o meu marido a ficar calado, outra pro meu filho abrir a boca e falar, mais uma pra minha filha voltar a estudar, uma pra minha mãe voltar a me reconhecer. Nossa, o que tem de ong pra fazer. É uma trabalheira sem fim, eu tô fora, vou ficar com o afgã-hound. Cachorros obedecem, cachorros não roubam a sua bolsa, cachorros não têm amantes, cachorros não são amantes, cachorros não choram, Mariinha, eles no máximo ganem se você espancar, mas é só parar e estalar os dedos que na mesma hora eles abanam o rabo. E não precisa de ong nenhuma pra isso. Você acha pouco? É fantástico, e eu ainda te digo mais, os cachorros não guardam fotos de acampamentos da faculdade, sabe? Eles nem fazem faculdade, eles nem se apaixonam pelas colegas de faculdade, não lêem poemas de Fernando Pessoa, não dançam de madrugada numa barraca de camping que desmonta com a chuva, não correm pra debaixo de uma árvore nem tiram a roupa nem se enxugam nem se beijam nem descobrem como é que fazem duas mulheres, Mariinha. Como nós fizemos, lembra? Você nem lembrava mais, é? Pois eu nunca me esqueço. Eu esqueci grego, latim, lingüística, tudo. Menos você, o teu corpo, os teus peitos, a tua xoxota, Mariinha. É por isso que eu quero um cachorro, só um cachorro, nada mais que um cachorro e essa taça de vinho. Se eu beber mais uma garrafa pode ser que amanhã eu esqueça.
3 contos O
mar além dos muros Não
me peça jamais, meu amor, que eu lhe preste satisfações de minha loucura.
Tenho comigo, guardados dentro da alma, labirintos que ninguém adentrará.
Em seus muros crescem os arabescos da hera numa caligrafia virtuosa de
espinhos. Pela mão do tempo, os botões desabrocham em fúria e cor. Os sons
que se ouvem nesses jardins são gemidos de amantes clandestinos.
Confissões de assassinos convictos. Preces de mães que não ousaram impedir
que seus filhos provassem a dor. Os guardiões dessas portas dormem sobre
os corpos de muitos desejos viciosos. Suas armas não travam batalhas
inglórias. A minha loucura, meu amor, é livre e assim deve permanecer. Não
queira que de minha boca sejam forjadas falsas palavras que trarão
contentamento. Minhas imperfeições incentivam a coragem dos astutos. Sou
inimigo da fraqueza dos homens. E o medo habita longe de minha morada.
Corro dentro da escuridão para encontrar o sol. Seus olhos nos meus
iluminam superfícies ensombradas e úmidas. Seus olhos nos meus atraem
pássaros noturnos para o dia. Eu sou seu pássaro noturno. Aquieta-me em
seu olhar. Reconheça-me sem palavras. Para que os nossos pensamentos
alcancem o infinito. por
quê? Entre uma pedra e um número há simplicidade. Entre uma mosca e um homem há possibilidade de dor. A pedra e o número cada qual com sua mineral natureza apreendida por tato e dedução são por assim dizer de complexidade simples quando destituídos de valor poético. A mosca e o homem não. Da primeira, o par de asas não recebe mínima ênfase que a sobreleve e a restitua de sua atração por cadáveres e um cálculo infindo de coisas putrefatas. O homem, por sua vez, sente sofre e morre. E mesmo que esteja dormindo, enquanto o passar das horas subtrai sua restrita eternidade há o risco de pousar na superfície epidérmica alheia aos seus sonhos uma mal-intencionada mosca. da
dificuldade do não —
Quando foi a primeira vez? —
Aos sete. —
O que você fez? —
Menti. —
Você se arrepende? —
Sim. —
E depois? —
Continuei. —
Mentindo? —
Não. ![]() nem todo dia é domingo Naquela
quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Chegou meia hora antes do expediente
começar. O dia já ia longe. Farda passada café da manhã bolsa escolar
lancheira camisa do marido marmita e até uma oração apressada antes de
sair da cama. O dia já ia longe. Caminho da escola bolsa cheia de livros
mãos de crianças pasta executiva biscoito preferido do chefe saia de
secretária apertada e o sapato scarpin salto fino comprado na ponta de
estoque da fábrica local. O dia já ia longe. Parada de ônibus motorista
sem sexo cobradora com sono e passageiros em pé. O dia já ia
longe. Naquela
quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Chegou meia hora antes do expediente
começar. Silêncio no escritório uma voz no andar de baixo e o barulho da
CPU engrenando para a execução do Windows. Naquela
quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Acendeu um incenso e entregou-se à
cadeira giratória para acessar a caixa postal. Reconheceu o login de uma
velha amiga da escola e entre curiosa e alegre, abriu o e-mail de Evânia.
Enquanto espera o download do arquivo, deleta várias mensagens sacanas e
pensa: — Por que a Karina continua mandando esses e-mails de sexo?
(O
postcard de Evânia enche a tela de cores, paisagens longínquas, mensagens
de paz e a voz de Louis Armstrong cantando: What a wonderful world se instala
na sala. Um dois três quatro cinco slides... Quebre as amarras, esqueça os muros,
se entregue às estrelas, em algum lugar existe alguém esperando você.
Malásia Albânia China Nigéria e luzes de Paris. Letras que brilham bailam
entram e saem da tela.) —
São cinco para as oito horas e o elevador se aproxima do décimo nono
andar, carregando os trabalhadores pontuais —. Naquela
quarta-feira, Bruna cumpriu o ritual. Levantou-se, tirou o sapato e andou
para a sala contígua. No computador Louis gorjeia o último verso: Sim, eu penso comigo... que mundo
maravilhoso. A janela convida, a saia se rasga, o corpo se parte e
Bruna não houve o grito do chefe: — Está demitida. Já lhe disse várias
vezes, que aqui não é sua casa para acender incenso e deixar o sapato
rolando na sala. A vida já ia longe. ![]() —— a gente sempre pensa que é uma pessoa mas não somos. por quê? porque a gente quer que as pessoas pensem aquilo que a gente acha que é. que merda. eu tinha um cliente que dizia: ô minha loira, ô minha santinha, você é minha santinha linda, minha nossa senhora de olho azul. como podia ser nossa senhora sendo puta? uma vez um navio francês atracou e dez oficiais passaram no meu quarto numa só noite, não houve mulata rabuda que me derrubasse. aquela Bernadete Dentão era uma morena muito linda mesmo, mas me desculpe, quando eu me vestia para as matinês do Cine Moderno era de parar o trânsito também. em dois anos na pensão eu já falava toda porcaria que aqueles gringos gostavam de ouvir: oui oui suce ma chatte mon cher ooooh fuck my pussy daddy kommen! kommen! Verfluchte! —— acho que toda mulher é assim mesmo, putasanta, umas mais outras menos, quem não decide o que é enlouquece —— a enfermeira da tarde hoje elogiou minha camisola branca de fitas de cetim. disse assim: que camisola linda, a senhora tem um colo lindo! e o quadril? o quadril, minha nêga, pariu dois dois filhos mas não criei, criei filho dos outros. é um dos meus afilhados que paga esta suíte de janelões e enfermeiras que me limpam o cu e dizem que sou linda. a mãe foi pra Portugal fazer a vida e "esqueceu" Marcelo comigo. mãe é a senhora, que pagou dez anos de colégio Salesiano e a minha faculdade —— ninguém aqui ainda escutou minha voz. não quero ficar gemendo com a língua grossa, gaguejando feito uma retardada. tô mudinha e vejo TV, Ana Maria Braga é tão esquisita, fala assim meio asmática sei lá. em hospital parece que o mundo parou. eu vejo noticiário mas parece que só tenho passado, por quê? —— às vezes fico atenta esperando o apito do vendedor de alfenim. depois caralho lembro que não vem alfenim nunca, fecho os olhos, sonho, lembro das outras santasputas como eu —— ![]() a casa vazia Para Farah Diba Fernandes,
irmã. O filho da
casa não nasceu
nela, mas abre no
tempo uma clara
janela e através
dela anda entre
ruínas. O que foi
cancela agora se
inclina, não em
reverência, mas com a
disciplina do que morre com
a devida
paciência. O que foi
cerca será que ainda
circula (antes que
se perca ou de uma
vez se anula) um
imaginário
espaço de cascalho e
mata onde umbu e
estrume de rês pari passu era a inútil
prata que o filho
assume? Agora ele entra
e atravessa o
terreiro, que, meio
inclinado, (no passado
venta) é todo
gretado. Chama como de
costume (ninguém
responde), antes de
subir os
degraus, vira-se: ao longe,
cumes onde a tarde
se esconde. O primeiro
degrau foi arrancado
de lajedo. O segundo
degrau (cada passo
um certo medo) é
tronco de aroeira.
O o terceiro e
último degrau que ele
pisa dá alguma
canseira, chega à porta e
avisa e ninguém
responde. O teto está todo
no chão (avós, tias,
primos, aonde?),
as paredes se
sustentam grossas
com seu adobão.
A porta já carcomida
(as dobradiças se
desagüentam) desaba
sem uma
batida. Porém, antes de
entrar a memória
de invenção, faz
o filho da
casa tremer e
hesitar como pássaro
sem asa em
sua
iniciação. A casa é toda
mineral: o que
foi madeira se
fossilizou, o que
foi arame é mais
que ferrugem, da
telha ao contorno
do curral uma só
imagem
vigorou condensada na
ruína da
paisagem. Não esquecer que
a memória é um
riacho que desliza
como o que nas
cercanias da casa
corria e
histórias de peixes e seixos
enverniza. Envernizava.
Cai o dia. A treva
que tinge tudo faz
o filho ficar mudo
e voltar-se para
antes-antes quando
a casa era solar e
sob a sombra da
gameleira primos
e manhãs
brincantes eram o tempo sem
atuar, ignorado em
sua esteira. A infância
em cada folha,
respirava em cada
grão de gergelim,
de areia. O sol
síntese na bolha
soprada de sabão
que explode na
teia densa da
caranguejeira que é a única
alusão ao real que nos ferra.
De sofrer esta é a
maneira mais suave
de oração.
Solitário, um novilho
berra e rompe o silêncio
sagrado ao pino
do meio-dia, a infância
ouve o
chamado, pois fome não se
remedia, senta à
mesa e se sacia
com o requinte
rústico do que
lavrada dá a
terra. Ao longe o azular
das serras. Quanto
mais se vive muito
mais se recorda.
A infância percorre
a sala sem saber o
quão é livre — no
quarto o seu sonho
acorda ao pisar
num caco que estala.
O filho retorna e
adentra na casa
vazia e sem
teto, seu olhar mais se
atenta seguindo
firme e reto
— cada cômodo é
dolorosamente vasculhado e
absorvido, a cada
passo o tenso ruído
do assoalho sujo
e gemente, já foi
vermelho e
luzidio. Em cada cômodo
vazio o passado
faz-se
presente. O filho da
casa enxerga na
treva e através dela
vaza o tempo
lendário que o tempo leva: o
mundo em
miniatura, múltiplo e
vário: país, polis,
criatura lentamente e de
vez! "Filho, quem nos
fez É o Mestre dos
contrários", — diz uma voz
oracular vinda da treva
aberta. O filho dessa
incerta casa (apesar,
apesar de sua concretude no
ar) o próprio peito
oferta crendo que
delira. Pára, se apóia,
inspira e a voz precisa
retorna: "Filho, só pode
passar o que verdadeiro
nasceu, a ponte interminável
entre o início e o
acabar não é um trabalho
seu, a morte é
imensurável em sua máscara
palpável". Reduzido a ser só
filho da casa escura
e finda quer berrar
como o novilho, mas
não berra ainda.
Percebe na voz um
brilho que no trevor
se destaca, e num
crescendo
concêntrico vai alargando sua
luz, a treva
cede, não mais ataca, e
lenta a voz conduz
pro máximo amanhecer.
Continua ela a dizer:
"Filho, o vôo é frágil
e vento qualquer o
pode abater, mas é
do alto o seu intento
e retê-lo é
deformá-lo em letra, tela, pauta,
pensamento, há que
ilimitado amá-lo e
assim torná-lo o seu
centro como quem
ama o que lhe
escapa, mas sabe que o seu
mapa é o seu maior
contentamento". O volume da voz
ressoa suavemente
pelo entorno. Ele, o
filho, logo
imagina uma magra vaca
que doa no curral o
seu leite morno nas
rudes manhãs
meninas onde a infância se
fartava. O sol faz
do dia um forno e o
suor sua face
lava. O filho, não mais
disperso, volta ao
quarto verso onde
ele mesmo
abriu uma janela no vazio — clara sim como a
casa, vária sim como
a casa, fluente como
o verbo-rio, que nada
inaugura, ele
sabe, mas antes que a
casa desabe, vale a
casa porque
existiu. ![]()
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