edição 31 | outubro de 2008
temas:  água | velhice

 

eu te espero junto à janela
lucélia majistral

Ele se lembrou e ligou e ela estava parada, à janela, tentando enxergar a calçada lá embaixo (já estava escuro), quando o telefone tocou. Atravessou a sala com dificuldade, arrastando uma perna, sentou-se no sofá, colocou os óculos e checou o número. Sim, era ele. Ele se lembrou. Ele ligou. Recostou-se no sofá, tirou os óculos, fechou os olhos e, sorrindo, saboreou a campainha do telefone até que ela não existisse mais.

 

 

2 poemas, 1 conto
márcia maia

envelhecer

 

se já me chega a estação das folhas

mortas e dos parcos grãos

guardo em mim um resto de verão

talvez uma perdida primavera

— revivida —

antes que definitivamente

se instale o inverno

em minha vida

 

 

 

 

maremoto

 

Naqueles dias, deu de achar que o mar avançava. Mais e mais. Não que houvesse um motivo real para isso. Apenas acontecia. E por vezes, sentia como se não pudesse respirar. Como se os pulmões se enchessem de líquido. Salgado e amargo. Grosso. Mas, não fora sempre assim.

Vivera desde sempre, naquela ilha. Desde antes de propriamente nascer. Toda a sua família ali nascia e ali morria. Ano após ano. A vida seguia seu rumo. Previsível. Plácida. Quase feliz.

Até aquele dia. De chuva e mar revolto. Quando ele apareceu. Um ano atrás. E nada fora igual desde então. Nem ao menos era belo. Tinha uns olhos de noite e frio. De mar profundo. Cavernas. E mãos. Jamais esqueceria aquelas mãos!

Pouco ficou. Partiu como chegara. Sem palavras. Pleno de olhares. Na hora misteriosa que divide o amanhecer da madrugada. Maré alta. Mar calmo de partida. Corpo doendo de saudade. Do amor. De outras mãos. As suas.

Desde então, o mar avança a cada dia. Nos seus olhos de espera. Olhos dela, que ficou. Ninguém notou a mudança. Ninguém percebeu o azul mais pálido no céu e um quê de verde-cinza se espalhando mar afora. Nem a fase minguante da areia. Na praia. Ninguém. Exceto a avó. Velha como a mais alta palmeira. Que a viu perder-se meio às ondas. Um instante antes de o mar invadir a ilha. Cobri-la. Um segundo antes de tudo tornar-se passado.

 

 

 

 

pormenor

 

nem água

 

só uma canção

e a sensação de afogamento

 

 

1 poemas, 1 conto
nina rizzi

1º ano B

 

eles são tão desincronizados.

que bagunça

que juventude;

que cansaço,

que saudade...

dos tempos de meninice.

 

por que dancei tão pouco

se a mãe não me via?

qual era minha parte

no pardieiro do mundo?

 

estava distraída

de olhos tão fechados

a esperar a velhice.

 

 

 

 

recordações do quarto de ismália

 

estou naquele quarto de novo. a janela é pequena e me falta o ar. penso em me jogar por ela, mas certamente isso seria arranjar um problema maior. chamar alguém. alguém que não conheço ou mais um inimigo. a janela está aberta. não há bichos voadores e não estou na lapa. não tenho medo, mas sei não poder me evadir.

 

a moça no quadro me olha. pensa que não posso vê-la. que é invisível como eu nesse quarto a olhar através da janela o mar metafísico a correr lá embaixo. a metafísica do afogamento, desaparecimento. água-benta. penso que ela deve estar morta. pela fenda de seu casaco verde vejo seu eu que se funde com o vazio da moldura e minha perspectiva. não obstante, ela existe e permanece imutável a me olhar. não adianta me esconder por debaixo do fino colchão cheio de pulgas. os olhos me seguem a apontar a janela que de tão pequena não existe. então percebo que não é janela, mas um buraco que ela fez pra me espiar no banho. na banheira de cacos de louça quebrada que por tantos anos tento inutilmente juntar. os cacos estilhaços de mim. o eco do esgoto que desagua no atlântico. merda!

 

ela está presa bem alto pra que eu não possa acertá-la com minhas enormes mãos sujas. as mãos que se esqueceram de esculpir os quadris. seriam largos como os eus que se perdem em mim? estreitos como a fenda que dá no vazio?

 

e tudo isso por causa dessas marcas roxas que me apareceram nas coxas brancas. como ela pode achar que é melhor eu estar aqui, privada de mim, isolada dos altos prédios de onde poderia me jogar? eu fecho os olhos, mas ela continua a me espreitar. resiste insuportável dentro de mim. soul. fora de mim. blues. lembrei que já tenho seiscentos anos. ou se-riam seis. como já não posso pintar, re-corro aos meus cacos. mosaico de caos dela que descubro ser eu para além-janela.

 

 

 

quelle-wasser

(de Memórias de Patty Flag)

patty flag

 

O navio golpeava águas que eram lama, carregava meus pensamentos sem que esses questionassem para onde. Levava o meu corpo sem que ele se desse conta, seco, em coma.

 

A raiva dos corpos dos oficiais sobre o meu, os cuspes, os dentes: nada; por enquanto, apenas o peso, o peso de cada um, o peso de todos.

 

O navio dissolvia o mar e minha mente fazia silêncio. O sussurro em protesto das ondas, mais nada. As lágrimas fervendo, as águas levaram dias para clarear.

 

O Quelle-Wasser ia para Florianópolis, fez uma parada na Baía da Guanabara, apenas para abastecer, mas quando eu vi o Rio de Janeiro recortado ao fundo, precisei ficar.

 

Vim no último navio a trazer imigrantes alemães para o Brasil até 1952. Pouco depois, em resposta aos quase 600 brasileiros mortos em ataques dos submarinos alemães contra embarcações brasileiras, o país declararia guerra ao eixo. A imigração alemã foi proibida. Alemães, italianos e japoneses passaram a ser hostilizados nas ruas, seus comércios, depredados. Nossas línguas, proibidas em todo território brasileiro.

 

Mas no Rio de Janeiro, o Atlântico era o avesso. As ondas eram altas como aves. As espumas, diáfanas feito pensamentos. As águas, transparentes qual minha pele. Meu corpo, fonte, amanheceu nascente. Jorrava meu inferno fora, inteiro, feito um parto: a bolsa estourou sobre o mar.

 

 

 

 

 

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