edição 31
| outubro de
2008
o terno e o árido Marisela lembra-se da última chuva que passou por ali. Forte o suficiente para encher os sulcos secos do deserto e apagar os vestígios de sêmem do corpo de Natalina. Sua aluna, como muitas que moravam na vila, atravessava o deserto para chegar ao centro comercial e à escola. Violada, espancada, esquartejada e deixada no deserto, vestida apenas com a túnica da impunidade. Isso, há dez anos. Na época Marisela pintou a cruz do túmulo de Natalina de cal cor-de-rosa, para diferenciá-la ou homenagear a aluna, talvez. Agora são mais de quinhentas cruzes cor-de-rosa. Já foi ameaçada por bandidos, abandonada pelo marido, um policial enfiou uma arma em sua boca e ainda continua lá. Muitas teorias e poucas providências, por um acaso o mundo ouviu falar de Marisela e sua vila infeliz no meio de um paisinho latino qualquer, por ironia a tinta das cruzes não sai, porque não chove. Mas nada além disso. O mundo continua o mesmo, os crimes continuam acontecendo, cruzes cor-de-rosa e sulcos no deserto se multiplicam e me pergunto chorar para quê? Chover para quê?
aquaviva Com as mãos em concha, recolheu a água do que chamam vida. Intenção seria lavar os olhos, talvez o rosto. Intenção disfarçada de lavar olhares, talvez, sorrisos. E a sede daquele gosto antigo de sumo de fruta madura, quase passada. Na primeira mordida, sentiu fogos iluminando o céu da boca. E vulcões explodindo na garganta. Vida de volta às entranhas. E mais vivo estava, ainda, o desvalido coração. Afagou-se e afogou-se. Aguardente. Água e fogo. Vida.
memórias da água Do corpo caído na areia recebia beijos de espuma da maré cheia.
Do mergulhador fundo que recebeu o abraço das trevas para outro mundo.
Das pegadas solitárias só restaram na margem as tristes sandálias.
Dos afogados em dores a despedida das ondas foi trazer-lhes flores.
Das noivas abandonadas flutuavam ao seu lado os véus e as grinaldas.
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