edição 31 | outubro de 2008
temas:  água | velhice

 

casa de água
shânkara lis
   

Vento quente no jardim da Casa de Água. Más valdría no haber nacido. Balofas nuvens: no undoso céu curvas imensas de cristal emanam dos eucaliptos e, se fumo erva-cidreira, me transmudo para um filme de Fellini, no exato instante daquele take de Amacord em que uma freira anã ajuda o louco de pedra a descer da árvore. Não sei se é o efeito do capim-cidreira, que clarifica e intensifica tudo a meu redor; também não sei se essas balofas nuvens algum dia existiram. Para me distrair, enquanto Lucana se espreguiça na banheira, eu leio Arkadii Dragomoshenko na varanda da Casa de Água, sorvo ostras com limão, crustáceos com salsa e coentro. Eu lendo a ode em que Arkadii Dragomoshenko descreve o último suspiro de Oskar Kokoschka. Depois abandono as odes, contemplo na banheira a respiração daquela que, após o banho de sais, vem espraiar-se ao vento.

 

suíte correnteza
simone santana
 

falta

 

Vento açoitando os eucaliptos. Solidão rasgando as distâncias, abrindo caminho para as chuvas. Todas as tristezas volitam em seu peito, procurando abrigo na quentura de suas veias. Um arrepio... Tudo fica tão claro que machuca seus nervos. A dor se acomoda, e volta. Vai e vem constante. A chuva violenta o vácuo, o capim, fazendo as vacas mugirem de agonia. Vendo a chuva através da janela aberta, Augusta relembra o tempo, sentindo sob os dedos as rugas que ele lhe imprimira. Estava só. Nem sempre estivera. Antes se via em outro rosto, em outros gestos. Agora só ela ali. Talvez se não estivesse naquele lugarzinho escondido não se sentiria tão sozinha... Poderia se enganar, fingir felicidade, mas sabe que sua felicidade já se foi, e que nunca mais voltará. Antes de o galo rasgar a manhã com seu cocoricó estridente de macho, ela se levantava e construía o lar. Dava vida ao fogão. Dava sentido às panelas. Dava graça às flores. E tudo era tão banal que ele não percebia a importância que ela tinha. Fazia tudo com amor, com o coração a derreter de esperança. Trazia tudo sempre limpo. O terno dele tão branco que fazia ciúme aos homens da cidade quando ele folgava nos bares com seu violão. Ela sempre esperando uma canção. Uma palavra que a fizesse perceber que tinha vida. Queria sentir algo que a transformasse, que a açoitasse como a chuva açoitando as árvores. Algo que a fizesse perceber que era mais que uma mãe oferecendo leite. Que uma dona de casa preparando a sopa. Ele chegava e não falava nada. Até mesmo quando ele a amava ela se sentia só. A palavra que queria ouvir nunca era dita. Porque não a dizia a ela, branca e pálida de ternura? Porque dizia às outras, dava seu calor a elas nas tardes frias? Ela merecia ser aquecida. Não percebia que envelhecia. Não tinha tempo de se mirar no espelho das águas. Mas um dia parou e viu, percebeu. Um dia ela percebeu que suas mãos estavam enrugadas, calejadas e manchadas. Fingia não se importar, tentando mascarar sua solidão, mas no fundo o desejo permanecia. Uma chama triste sempre acesa, até mesmo assim, quando chovia. Parecia que naqueles dias chuvosos a chama crescia mais ainda, consumindo-a. Tudo permanecia igual. Ela desaparecendo cada vez mais. Mais e mais pequenina. Desistiu da tarefa árdua de construir o lar. Apenas ela não conseguia sustentar o dia! Um dia ele percebeu seu rosto triste e perguntou o que acontecia. Continuara ali parada e triste, observando aquele rosto que tanto amava odiando. Vontade de rasgá-lo com suas unhas e ao mesmo tempo beijá-lo, morrer sentindo seu peso sobre seu corpo, sua barba acariciando seu pescoço. Tudo isso a deixava fora de si. Sentia-se impotente. Natureza. Terra revolvida. Rio desviado. Lembrança esquecida. Dor, muita dor. Sentia seu cheiro. Por que não era doce e aceitava seus nãos como as mulheres normais? Por que essa estranha necessidade de ouvir o que ninguém se importava em ouvir, por que apenas ela sentia necessidade disso?

 

 

fonte

 

O sol sai de mansinho. O entardecer tinge o céu de laranja e faz com que o verde fique ainda mais verde. A lua surge no céu expulsando os últimos raios que caem sobre a terra. A natureza se move, silenciosa. O chão quente. O vento frio. Lassidão. Sono. A fumaça saindo por chaminés ao longe. O corpo cansado pedindo água e repouso. A fonte entre as bananeiras. A água pura, cristalina, fria. Sempre fora assim. A imagem gravada em seu cérebro. Circulando. Serpente assanhada. Perigosa. Sente medo. Frenética. Ela vai e volta. Vai e volta. Deposita a lata vazia no chão. O garoto ali. Não gostava dele. O que ele estava fazendo na sua fonte? Apanhava a água descaradamente. Nem se importava se ela estava ali ou não. Raiva. Sentia sempre isso quando o via. Por que será que existem animais que não respeitam porteira? Era isso que ele era: um animal. Levanta os olhos. O dorso nu inclinado sobre a fonte. A boca ainda sugando a água. As mãos apoiadas no joelho. Os olhos nela. Castanhos, úmidos, límpidos e mansos como os olhos de um boi. Ele a irrita. Assim como os bois a irritam. Olha-a como se não percebesse sua raiva. Simplesmente olha. Percorre seu corpo com seus olhos de boi manso. Balança a lata com força. Vontade de jogar a lata na cabeça dele. Levanta vagarosamente a cabeça, o corpo, e se afasta da fonte. Os olhos ainda nela. Olhos de boi. Meu Deus! Além de insuportável, tem coragem de ficar sem camisa. Falaria com seu pai sobre isso. Com certeza falaria. Uma coisa estranha se move dentro dela. Os músculos. O olhar castanho de boi manso. Sente mais raiva ainda. Caminha para a fonte e sente que caminha diferente e sente que sente diferente e sente que ele nota a diferença e sente ódio. Inclina-se para frente. Percebe seu olhar a percorrê-la enquanto enche a lata. Maldito. Se não estivesse sozinha jogava a lata de água na cara dele. Lata cheia. Parece que levou uma eternidade para que aquela lata enchesse. Sai pisando duro com a lata na cabeça. Ainda a observa. Não se atreveria a acompanhá-la. O corpo ondeando, rebolando debaixo do vestido. O cabelo preso deixando a mostra o pescoço queimado de sol. O desejo como uma fogueira de noites juninas soltando faíscas. Seu objeto de desejo ondulando como bandeirinhas impelidas pelo fogo. O olhar dele queimando as suas costas. Há dias sempre ali na fonte. Há dias o mesmo olhar de boi manso. A mesma boca cínica bebendo a água da sua fonte. Devastando seu ser. Roubando sua água. Maldição. Sentir-se assim. Ódio e um fogo queimando, incomodando. A imagem do peito nu martelando. Olhos, peito, boca na fonte. O sono chega. A imagem não sai. O dia passa. Buscar água na fonte. Ele na fonte. Boca na fonte. Olhar de boi manso. Apanhar a água. Agonia. Um desejo de não sei o quê. Desconhecido. Formiguinhas percorrendo seu corpo. A difícil tarefa de encher a lata. Carregar o peso. Ondulando. Subindo o morro com a lata na cabeça. A noite. Insônia. Calor. A água da fonte. Boca seca. A fonte. Ele sempre na fonte. Alguém a chama. Não. Quer ficar ali na fonte. Não, não vai embora. Quer ver o menino bonito na fonte queimando de desejo como uma fogueira junina soltando faíscas impelindo bandeirinhas. A menina bonita com formiguinhas passeando pelo corpo querendo algo sem saber o quê. Sorri. Quer ver. A imagem é tão real... A serpente se enroscando. Dando voltas. Não pode voltar. Uma lágrima cai. Sabe que é perigoso. Não quer voltar. Mas quer ver. Não quer voltar.  Quer sentir de novo. A lata d'água cai. O olhar de boi manso. O vestido molhado. O coração acelerado. O peito nu. O cheiro. A boca entreaberta. Nervosa. As mãos na sua cintura. Nunca sentira mãos em sua cintura. Nunca levantara os olhos e vira um olhar castanho, belo como de um boi manso, tão perto de si. A cabeça bonita. A boca macia. Nunca sentira espinhos sobre seu corpo. Nunca se sentira derreter. Nunca se sentira objeto. Nunca sentira ternura ao ser subjugada. Nunca se sentira mulher. Nunca sentira prazer em sentir dor. Seria capaz de passar pelas coisas mais tristes, pelos abismos mais profundos, sentir fome, sentir sede, parir filhos. Era mulher. Era mulher e amava tanto que sentia dor. Sente-se um nada. Um nada. Fragilidade. Frágil como uma borboleta. Bebe água em seu corpo. Fonte. Beberia para sempre. Sempre os olhos mansos. Pedindo água. Secando sua fonte. Fecha os olhos. As lágrimas caem. A serpente continua a se contorcer. Hipnotizando-a. Alguém a chama. Chora. Chora muito. Chora por que sabe que amou. Chora porque ama. Chora porque não há ninguém que beba suas lágrimas, seu homem bonito com olhos de boi manso sempre a pedir água se foi. Foi embora para sempre. Tanta água a faz morrer. A serpente dá voltas. Vai e volta. Não. Não quer voltar. Não quer voltar... Voltar significa lembrar... Quer sentir de novo... Quer que seu homem bonito com olhos de boi manso a seque de novo...

 

 

ele

 

Fora há algum tempo atrás, quando as dálias brilhavam, esbanjando as indecentes cores, o céu limpo, e tudo tão quente como um forno. Fora nesse tempo que deixara seus braços enlaçarem seu pescoço, refrescando-se sob as abas de seu chapéu. Corriam pelos campos procurando um lugar onde se tocarem. Borboleta. Ele a chamava borboleta. Entregara sua alma a ele. Transformara-se em uma borboleta. Delicada. Colorida. Seu coração se expandia, parecia não caber em seu peito delicado. O trabalho no campo, antes árduo, era suave. O sol queimava menos. Que bom sentir seus braços enlaçando sua cintura, deixando-a tonta, girando-a no ar! E a agonia gostosa da espera, contando as horas, esperando-o chegar à noite. E ficava ali, no cantinho mal iluminado pela lamparina, observando os movimentos que ele fazia, conversando com seu pai. Falava bem, gesticulava muito, e, às vezes, soltava uma gargalhada gostosa, mostrando os dentes brancos e alinhados. Ele era diferente. Ela o amava. Morreria por ele. Sabia disso e chorava à noite de agonia. Que ele a amasse! Que a amasse como ela o amava! Nessas visitas ele levava o violão. Dedilhava as cordas, cantando com sua voz forte canções que falavam de amores proibidos. Tudo isso a fazia viver e morrer cada vez mais. Misto de dor e alegria. Amor. Seus olhos se voltavam para ela, cheios de ternura. Sua agonia teve fim no dia em que ele a pediu ao seu pai. As estrelas trocaram de lugar, o que era norte virou sul, e as flores desabrocharam mesmo sendo inverno.

 

 

sonho

 

Pétalas de rosa. Rosa. Cor-de-rosa claro. Meus lábios nas pétalas da rosa. Pálidos. Meu olhar escuro cheio de rosa. Meu rosto mergulhado na rosa. Tanta rosa me faz chorar.  O perfume da rosa. Solta rosas. As rosas me fazem amar. Meu olhar cheio de rosa. Fitando sua boca rosa. Um pouco torta. Suas mãos cheias de rosa. Tenta me hipnotizar? O pôr-do-sol é rosa. Esse rosa da rosa cor-de-rosa. Essa rosa a me guiar. Rosa. Seu convite rosa na tarde rosa como a rosa cor-de-rosa a cativar. Seu peito rosa. Feito de rosa. Cheio de rosa. Meu lábio na rosa da sua boca rosa. Na rosa musculosa. Na rosa dura. Na rosa quente, que palpita. Os espinhos da rosa a me torturar, arrepiar. A rosa. Muito leve. Na pele. Escorre devagar...

 

 

dor

 

Eram apenas um na noite que não tinha fim. Amava tanto que sentia dor. Tudo ficava mais lindo e mais difícil a cada dia. A necessidade de estar sempre ao seu lado aumentava, queria prendê-lo para sempre dentro de si. Mas, quanto mais tentava agradá-lo, mais ele se afastava. Quanto mais regava seu amor, mais ele parecia distante.  Até que, de repente, se viu sozinha. A sombra negra começou a surgir aos poucos, devagarzinho. A solidão machucava como um punhal afiado adentrando a carne do coração. Aos poucos, foi ficando esquecida. Matara, outrora, a sede em seus lábios. Vontade de matar todos os seus desejos agora. Arrancar toda a água que existia em seu corpo. Arrancar água de seus olhos. Olhos sempre tão secos! Os dela constantemente úmidos. Recolheu o pouco que tinha e saiu porta afora. Os olhos surpresos a seguiam. Não entendia nada. Ficou parado, sem ação. Caminhara por muito tempo. O sol se foi. As nuvens se abraçavam, prenunciando chuvas.

 

 

busca

 

A chuva caíra há pouco e o chão estava molhado. As gotas caíam do mato que brilhava formando cintilações multicoloridas no fim do dia. O rosto pálido ornamentado pela barba negra irregular. Todo ele negro e pálido sobre um alazão que de tão negro era azul naquele fim de tarde. Procurava sua amada naquelas plagas esquecidas. Não era dali a criatura tímida. Via-se pelo modo como segurava a rédea do magnífico animal negro. Desconfiado. Avançava pela trilha lentamente, como que desanimado de continuar naquele infinito que se perdia entre curvas. De repente muda a direção. Gira as rédeas fazendo o animal sair da trilha e adentrar a mata fechada. Estaria procurando um atalho? Pobre homem! Com certeza nunca ouvira falar dos perigos que ali existiam. O que procurava? Algum tesouro escondido? Viera talvez com a esperança de enriquecer-se? Não havia riqueza ali, apenas perigos. O cavalo sabe. Pára e seus olhos se expandem de horror na escuridão inexplicável. Não via nada. Estavam no ar seus inimigos. Seu dono o esporeia, dominando-o pelas rédeas. Galopam na escuridão macabra. Dentro de seu peito existe um sol inclemente, queimando. Cavalga como se fugisse da morte, mas o que é a ausência de quem se ama senão a morte? A ausência daquela alma que nos abre os lábios, fazendo-nos sorver a vida, que agita o corpo fazendo o pulmão se abrir em espasmos de alegria?

 

 

delírios

 

Venha, ainda há tempo. Venha enquanto as águas escorrem calmamente, respeitando as margens do rio. A natureza se move, silenciosa, harmoniosamente. Respeita as palpitações de nossos corações, entende a nossa música. Nada impede a sua vinda. Ou será que se perdeu em alguma parte da floresta fria? O vento sussurrou às árvores, que segredaram à cotovia. Ela me anunciou que é dia. O sol brilha sobre as dálias multicoloridas. Já feri meus pés a procurar você na mata escura. Não encontrei. Sabe onde estou, por que me manter em constante espera? O que é amor pode se transformar em dor a qualquer momento. As águas podem se desviar de seu curso natural, provocando inundações. Onde você está? Já disse: é dia! Ainda há tempo. Mate minha agonia. Preparei uma cama com flores, mel, frutas, água fresca... Roubei o perfume da rosa, sou a mais perfumada criatura. Sacrifiquei-me procurando os mais sábios dos sábios. Estudei as artes da magia. A cotovia canta. A cada amanhecer meu coração se expande, mais e mais acelerado. Penso morrer de amor, desse amor doce. Ele se agita em minha garganta. Grito-o ao vento todos os dias. Você não ouve! A cada anoitecer evoco os deuses para que surja logo o dia. Estou com medo. Onde você está? Procurarei no abismo se preciso for. Sim. Atravessarei a mata escura, entrarei no terrível câncer da terra. Aqui é escuro e frio. Por favor, ouça as batidas do meu coração! Ele chama por você. Meu amor continua forte, mesmo na escuridão. Terríveis criaturas tentam barrar meu caminho. Nada vejo. Sou guiada pelo instinto. Você está em perigo. Trarei você para mim. Está preso. Ela te pega pela mão e te abraça. Não, você é triste. Não vê que é tudo uma armadilha? Vem, enquanto ainda há tempo! Meu coração sussura em agonia. Lá fora o dia claro, o sol brilha. A natureza nos presenteia com a vida. Por que abraçar a morte? Ficarei aqui até que escute meu coração. Até que veja meus olhos amorosos. Minhas lágrimas lavarão as feridas de seu rosto. Quero lhe dar vida! Se eu não lha der morrerei, meu coração não suportará tanta ternura. Não quer que eu fique? Olhe em meus olhos, por favor, veja que o amor que sinto é maior que eu mesma. Sou escrava dele, assim como a terra é escrava da chuva. Ela só dá frutos se banhada pelas águas. Preciso ser banhada pelo seu amor. Entenda, escute-me, por favor! Fomos predestinados. Somos um só. Em minha cabana existem ervas que sararão suas feridas. Venha, ampare-se em meus ombros. Levarei você daqui. Cuidarei de você. Beijarei seus olhos para que não se firam com a claridade. Rápido se acostumará com os sorrisos do sol, com o canto das cotovias. As noites agora também serão belas. Nelas, estarei em seus braços, sempre aquecida. Não tenha mais medo. Aqui não existe dor. É constante calmaria. A natureza é nossa madrinha. Cuidará de nós dois, nos alimentará. Estamos amparados por mãos divinas. Vê o que preparei para você durante toda aminha vida! Refresquece-se na água apanhada na mais pura fonte. Alimente-se das frutas cultivadas por minhas mãos delicadas, nascidas da terra que revolvi com carinho. Fiz tudo isso para você. Escute! Canta o rouxinol! Abrace-me e aqueça-me junto ao seu coração. Seu sorriso é luz a iluminar a noite escura. Juntos, somos fortes, mesmo que existam os perigos dos abismos. Estarei sempre a te buscar te volta... Sempre haverá o canto das cotovias...

 

 

reencontro

 

Adormecera ao lado da cachoeira, descoberta, coberta de lágrimas. Sentira mais falta ainda. Vontade de mascar o mundo. Olhos duros a lhe observar! Ali estava ele, velando seu sono. Sentira medo, sentira alegria, desespero. O que ele queria? De seus olhos, de repente, começou a escorrer água. Ela nunca o vira chorar. Sim, lembra-se bem. Continuara sentada, o coração pulando, acelerado. Ele veio até ela, e seus olhos eram dois espelhos refletindo seu coração. Ela lhe fazia falta, ele a amava. Do seu jeito, mas a amava. A amava tanto que não suportava viver sem a sua presença. Abraçou-a forte, e foi como se todas as palavras não ditas desaparecerem, não existia mais a falta. E foi tão grande a alegria desse dia! Ele a levou de volta, amparada em seu peito, protegida pela sombra de seu chapéu. Como no princípio de tudo. E tudo foi como um princípio. Sempre um princípio sem fim... Os dias tristes de desencontro foram esquecidos no abismo de suas memórias, e creram que a felicidade seria eterna. Tudo parecia contribuir para a felicidade deles. Até os campos se tornaram mais férteis. A canção que ela esperara por tanto tempo, ela a ouvia todos os dias.

 

 

fim

 

De repente tudo ficou cinza, as nuvens se juntaram invejosas, e encetaram planos para fazê-los tristes. Decidiram invadir a terra com seus raios e trovões despejando suas águas sobre o fogo sagrado que os consumia. Jorraram toda a sua fúria. As horas se passavam. A música macabra continuava. Ele não voltou. Encontrou-o em sono eterno debaixo de uma árvore. Seu coração secou. Chegou o momento de se separarem. Esse momento foi breve, breve como o princípio eterno. Não lhes foi permitido dizerem adeus. Mas eles nunca diriam! Ela nunca diria adeus a ele. Nunca. A chuva continua caindo lá fora e de repente Augusta sente uma vontade enorme de sair. Sentir o frio insuportável em sua pele. Corre sob a chuva e crê vê-lo ao longe. Corre durante muito tempo, tempo indeterminado. Sua imagem lhe acena e ela corre. Corre até não mais poder. Cai desfalecida no chão. Sente que algo a envolve. É ele. Ele a toma em seus braços e a leva de volta, amparada em seu peito, protegida pela sombra de seu chapéu... Até mesmo assim, quando chovia.

 

 

 

5 poemas
 

in petto ímpeto

o choque súbito
da onda afoita
contra a sólita
rocha aflita
:
press sinta

frente ao front
[horiz
ontem]
impeta-se
o conflito
água versus pedra

arma líquida
nem tanto tenta
que penetra
árdua espera
[dura quem dera
na queda]

branca espuma quebra
a resistência concreta
pós "hora tanta
larga e lenta"

ataque enfático
cônsono ao nosso
encontroimpacto
estroe x p l o s ã o

inquieto como gozo
e seus senãos

N. A.: "hora tanta larga e lenta" ~> trecho furtado do poema "noite branca", de Frederico Barbosa

 

 

 

 

clímax

 

fina e tímida:

a chuva,

quando garo(t)a.

 

até que cresce,

perde a pose:

engrossa,

goza aos montes

 

 

 

 

precipitado

 

no banco dos réus

o reles destino

em vestes de culpado

:

aquele e_

terno acaso

que lhe cai

como uma chuva

 

 

 

 

o~n~d~u~l~a~n~d~o

 

ando em ondas

ando às tontas

tanto (desa)mar

me circundando

 

ando ilha

ando istmo

ando intro-

"insularando"

 

ando mar~e~sia

ando mar~e~ando

ando mar~e~moto

"maritimando"

 

ando ártica

ando índica

ando atlântica

"oceanando"

 

ando

ilhada em mágoa

marinando em lágrima

"sorando"

 

 

 

 

reciclagem

 

que se lixem
os velhos moldes

causam-me incômodas
náuseas

como a estante
— estorvo patente —
na sala de estar
sustentando "parnasopáginas"

modelos arcaicos
[ móvel mausoléu nobel ]
precisam — urgente —
de uma pátina

 

 

 

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