edição 31 | outubro de 2008
temas:  água | velhice

 

1 poema, 1 conto
adriana versiani

a velha

 

Eu, esquecida delirante, sou pastora da igreja invisível.

Todos os dias acordo trinta minutos mais tarde do que costumava fazer Catarina da Rússia e preparo meu pão preto com café.

 

Sim, eu os ouço. Eles se comunicam comigo.

 

Hoje, sonhei que milhões de pequenas luzes se dividiam em milhões de pequenas cores, que se dividiam em milhões de pequenas almas, que rodavam em torno de milhões de pequenas naves, que invadiam milhões de corpos celestes.

 

Sim, eu os vejo. Eles vivem comigo.

 

Agora são três horas em um pequeno país da Ásia. Pássaros saem de dentro dos corpos que bóiam no rio. São três horas e alguns monges ainda dormem.

 

Eu, esquecida delirante, pastora da igreja invisível, tenho andado em estado alterado de consciência.

Vivo entre papéis, trouxas, retalhos, restos deixados por meu irmão aqui no quartinho dos fundos onde ele tocava blues.

 

Sim, eu os percebo. Eles estão comigo.

 

Todas as noites, trinta minutos antes do que costumava fazer Catarina da Rússia, escrevo o nome dele na areia, o nome dele na areia, o nome dele na areia...

Essa chuva toda enquanto a mão pesada do tempo aperta meu peito.

Sei das falácias do amor e do sexo. Tudo tão velho quanto os manuscritos apócrifos enterrados no solo onde ergueram a biblioteca de Alexandria.

Mas, um dia, a loucura cegou o amor e os dois se arrastaram pelo chão.

 

Sim, eu os amo. Eles sonham comigo

 

Eu, esquecida delirante, pastora da igreja invisível, capto em ondas curtas a voz dos mortos à luz do dia.

 

 

 

 

mênstruo no lençol de linho

 

Com uma lasca, abro as veias do pulso e um rio escorre e a lasca é pedra, seixo,

cascalho do rio.

 

longe um som de guizos entorpece o leito vermelho e acompanha a trilha que é pedra, lasca, corrente do rio.

 

Com os olhos fechados, vejo luzes douradas no céu escuro que agora azul, é pedra, seixo, lasca no pulso aberto do rio.

 

Adriana Versiani (Ouro Preto-MG, 1963). Co-editora das publicações Dazibao. Foi co-editora da coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Pertence ao conselho editorial da revista Ato. Publicou O barquinho pelo mar, A física dos Beatles e Dentro passa.

 

 

7 poemas
lílian maial

gatilho

 

Mirou o Miró na parede da sala,

E era tanto azul, que choveu.

Retalhou a colcha de lembranças,

Cravou as unhas no couro,

Arranhou fotos, rasgou cartas,

E lamentou o dia seguinte de todos os ontens.

Pensou em pular da varanda,

Mas já havia pulado a cerca.

Tentou cortar os pulsos,

Mas a lâmina — de tanto raspar as pernas — estava cega.

Sentiu medo.

Pegou a velha Glock no armário,

Acariciou o cano, a coronha,

Um nervoso (detestava armas de fogo).

E a chuva — finalmente —

Apertou.

 

 

 

 

mulher com "h"

 

sou bem homem

na mente e na mentira

conto o que sinto

e sem um pinto

sou pistoleira

no fundo, pioneira

 

medindo forças

na queda de braço

perdi o cabaço

 

 

 

 

nas alturas

 

Sempre gostara de alturas:

vivia nas nuvens,

o marido era alto,

como era alta a sua auto-estima.

 

Trabalhava no 27° andar,

morava no 12°,

lá do alto via o mundo,

imundo e baixo,

embaixo, sentia empuxo.

 

Cresceu mais que os irmãos,

era do alto escalão do governo,

ficava acordada até altas horas.

 

No altar, confessou, casou e mudou.

Nunca fora altruísta,

e nem sabia de seu alter ergo.

 

Do alto de seus 60 anos,

inalterada,

como sempre,

se atirou de cabeça.

 

 

 

 

loucura

 

teu medo em minhas entranhas

meu cheiro em teus pesadelos

teu gosto em minhas façanhas

meu seio te lambe os cabelos

 

teu dedo em minha ferida

meu tempo em tua salada

tua voz, minha chaga parida

minha vida, tua encruzilhada

 

meus dentes em tua paixão

teu cetro vertendo meu dia

meu luto em tua aspiração

teu riso em minha alforria

 

teu nome em minha doença

meu corpo em tua desdita

teu hálito em minha crença

minha alma sempre maldita

 

meus vales em teu caminho

teu rio me deságua em mar

minha lava te banha de cio

teu pólen me faz aflorar

 

meu sonho e meu dia se fundem

tua noite vagueia sem pejo

os versos em nós se confundem

e a dor se transforma em desejo

 

loucura é esse amor sem perdão

perdido entre os tantos que somos

rescaldo de entrega e explosão

a cura do mal que não fomos

 

 

 

 

lacrima

 

Profundidades à parte,

ando um tanto rasa de poentes.

Há mais fog que fogo.

Malditas neblinas, cataratas nos olhos da tarde!

O dia vale o pensamento fosco,

e o homem ainda caminha sobre as águas,

que insistem em brotar pelos cantos...

 

 

 

 

custosa

 

Era boa de corte

Cortou custos a vida toda

Cortava carne com precisão

Só custou muito a cortar os laços

Preferiu os pulsos

Errara o caminho

Custou a entender

Enfim, cortou relações

E, pra sempre, certas ereções.

 

 

 

 

à deriva

 

vazia

sem rumo

apenas com dizeres

a quem interessar possa

conteúdo sorvido

função cumprida

resta como tarefa

boiar à deriva

talvez conduzir a um porto

quem sabe levar mensagem

ou simplesmente morrer na praia

afundando afogada em talvezes.

 

 

Lílian Maial (Rio de Janeiro-RJ). Médica, escritora e poeta. Publicou Enfim, renasci, seu primeiro livro de poemas, em 2000, e tem participação em dezenas de antologias desde 1999. Integrante ativa do MIP - Movimento Internacional Poetrix. Filiada à REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras e à APPERJ - Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. Consulesa do Rio de Janeiro para o movimento Poetas Del Mundo. Tem seus trabalhos divulgados em inúmeros sítios nacionais e internacionais, e é colaboradora de revistas eletrônicas brasileiras, portuguesas e espanholas. Mais em Lílian Maial, Poetrix, Sonetos e Poética Digital.

 

banho-me em ti, iemanjá

virgínia de castro

 

 

Ó céus, desalinho em ti, véu

Que do mar estende-se

Para longes colinas,

Desprende-se

 

Corto-me para ti,

Sentires a mim.

Provares de meu cálice

E em mim se unir

 

Curvo-me para ti,

Ó, rainha de mar,

Compreendes-me,

Pois em ti deposito meu desolo

 

E de minhas veias peço socorro!

 

 

Virgínia de Castro (Rio de Janeiro, 1980). Viúva aos 28 anos de idade, busca na orla de Copacabana — atual residência — a inspiração para o que lhe restou da vida. Escritora reclusa. Vive a divagar sobre o sentido da vida através de cartas, ensaios e inícios de romances que vem escrevendo em suas caminhadas diárias.

 

 

 

 

 

 

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