edição 31
| outubro de
2008
1 poema, 1 conto a velha
Eu, esquecida delirante, sou pastora da igreja invisível. Todos os dias acordo trinta minutos mais tarde do que costumava fazer Catarina da Rússia e preparo meu pão preto com café.
Sim, eu os ouço. Eles se comunicam comigo.
Hoje, sonhei que milhões de pequenas luzes se dividiam em milhões de pequenas cores, que se dividiam em milhões de pequenas almas, que rodavam em torno de milhões de pequenas naves, que invadiam milhões de corpos celestes.
Sim, eu os vejo. Eles vivem comigo.
Agora são três horas em um pequeno país da Ásia. Pássaros saem de dentro dos corpos que bóiam no rio. São três horas e alguns monges ainda dormem.
Eu, esquecida delirante, pastora da igreja invisível, tenho andado em estado alterado de consciência. Vivo entre papéis, trouxas, retalhos, restos deixados por meu irmão aqui no quartinho dos fundos onde ele tocava blues.
Sim, eu os percebo. Eles estão comigo.
Todas as noites, trinta minutos antes do que costumava fazer Catarina da Rússia, escrevo o nome dele na areia, o nome dele na areia, o nome dele na areia... Essa chuva toda enquanto a mão pesada do tempo aperta meu peito. Sei das falácias do amor e do sexo. Tudo tão velho quanto os manuscritos apócrifos enterrados no solo onde ergueram a biblioteca de Alexandria. Mas, um dia, a loucura cegou o amor e os dois se arrastaram pelo chão.
Sim, eu os amo. Eles sonham comigo
Eu, esquecida delirante, pastora da igreja invisível, capto em ondas curtas a voz dos mortos à luz do dia.
mênstruo no lençol de linho
Com uma lasca, abro as veias do pulso e um rio escorre e a lasca é pedra, seixo, cascalho do rio.
longe um som de guizos entorpece o leito vermelho e acompanha a trilha que é pedra, lasca, corrente do rio.
Com os olhos fechados, vejo luzes douradas no céu escuro que agora azul, é pedra, seixo, lasca no pulso aberto do rio.
Adriana Versiani (Ouro Preto-MG, 1963). Co-editora das publicações Dazibao. Foi co-editora da coleção Poesia Orbital e do Jornal Inferno. Pertence ao conselho editorial da revista Ato. Publicou O barquinho pelo mar, A física dos Beatles e Dentro passa.
7 poemas gatilho
Mirou o Miró na parede da sala, E era tanto azul, que choveu. Retalhou a colcha de lembranças, Cravou as unhas no couro, Arranhou fotos, rasgou cartas, E lamentou o dia seguinte de todos os ontens. Pensou em pular da varanda, Mas já havia pulado a cerca. Tentou cortar os pulsos, Mas a lâmina — de tanto raspar as pernas — estava cega. Sentiu medo. Pegou a velha Glock no armário, Acariciou o cano, a coronha, Um nervoso (detestava armas de fogo). E a chuva — finalmente — Apertou.
mulher com "h"
sou bem homem na mente e na mentira conto o que sinto e sem um pinto sou pistoleira no fundo, pioneira
medindo forças na queda de braço perdi o cabaço
nas alturas
Sempre gostara de alturas: vivia nas nuvens, o marido era alto, como era alta a sua auto-estima.
Trabalhava no 27° andar, morava no 12°, lá do alto via o mundo, imundo e baixo, embaixo, sentia empuxo.
Cresceu mais que os irmãos, era do alto escalão do governo, ficava acordada até altas horas.
No altar, confessou, casou e mudou. Nunca fora altruísta, e nem sabia de seu alter ergo.
Do alto de seus 60 anos, inalterada, como sempre, se atirou de cabeça.
loucura
teu medo em minhas entranhas meu cheiro em teus pesadelos teu gosto em minhas façanhas meu seio te lambe os cabelos
teu dedo em minha ferida meu tempo em tua salada tua voz, minha chaga parida minha vida, tua encruzilhada
meus dentes em tua paixão teu cetro vertendo meu dia meu luto em tua aspiração teu riso em minha alforria
teu nome em minha doença meu corpo em tua desdita teu hálito em minha crença minha alma sempre maldita
meus vales em teu caminho teu rio me deságua em mar minha lava te banha de cio teu pólen me faz aflorar
meu sonho e meu dia se fundem tua noite vagueia sem pejo os versos em nós se confundem e a dor se transforma em desejo
loucura é esse amor sem perdão perdido entre os tantos que somos rescaldo de entrega e explosão a cura do mal que não fomos
lacrima
Profundidades à parte, ando um tanto rasa de poentes. Há mais fog que fogo. Malditas neblinas, cataratas nos olhos da tarde! O dia vale o pensamento fosco, e o homem ainda caminha sobre as águas, que insistem em brotar pelos cantos...
custosa
Era boa de corte Cortou custos a vida toda Cortava carne com precisão Só custou muito a cortar os laços Preferiu os pulsos Errara o caminho Custou a entender Enfim, cortou relações E, pra sempre, certas ereções.
à deriva
vazia sem rumo apenas com dizeres a quem interessar possa conteúdo sorvido função cumprida resta como tarefa boiar à deriva talvez conduzir a um porto quem sabe levar mensagem ou simplesmente morrer na praia afundando afogada em talvezes.
Lílian Maial (Rio de Janeiro-RJ). Médica, escritora e poeta. Publicou Enfim, renasci, seu primeiro livro de poemas, em 2000, e tem participação em dezenas de antologias desde 1999. Integrante ativa do MIP - Movimento Internacional Poetrix. Filiada à REBRA - Rede de Escritoras Brasileiras e à APPERJ - Associação de Poetas Profissionais do Estado do Rio de Janeiro. Consulesa do Rio de Janeiro para o movimento Poetas Del Mundo. Tem seus trabalhos divulgados em inúmeros sítios nacionais e internacionais, e é colaboradora de revistas eletrônicas brasileiras, portuguesas e espanholas. Mais em Lílian Maial, Poetrix, Sonetos e Poética Digital.
Ó céus, desalinho em ti, véu Que do mar estende-se Para longes colinas, Desprende-se
Corto-me para ti, Sentires a mim. Provares de meu cálice E em mim se unir
Curvo-me para ti, Ó, rainha de mar, Compreendes-me, Pois em ti deposito meu desolo
E de minhas veias peço socorro!
Virgínia de Castro (Rio de Janeiro, 1980). Viúva aos 28 anos de idade, busca na orla de Copacabana — atual residência — a inspiração para o que lhe restou da vida. Escritora reclusa. Vive a divagar sobre o sentido da vida através de cartas, ensaios e inícios de romances que vem escrevendo em suas caminhadas diárias.
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