edição 26 | maio de 2008
temas:  inverno | rotina

 

rotina
mariza lourenço
   

Ele me lambeu, como lambia todos os dias. Ele me chupou, como chupava todos os dias. Ele me comeu, como comia todos os dias.

E depois morreu. Do mesmo jeito que vinha me fazendo morrer:

Todos os dias.

 

 

notas de verão sobre impressões de inverno
nina rizzi

: mas que direito tenho a aspirar à poesia menor amores perros, fugidios, quando a minha saga é tão maior e bruta e o que me foge às mãos é um meio de subsistência?

 

talvez, caso fossem personagens russos, o frio tão rotineiro , lhes teria mais sentido. vivem nesse país tropical, na capital-solar, cidade quente da porra. têm o cartão-postal que qualquer rico invejaria, ah, barra do ceará, praia do futuro, ah! que não lhes serviluz.

 

vêem suas dignidades feridas, humilhados, ao pedir o terceiro quarto do peixe que voltará ao mar feito lixo, doença de turistas branquelas. mas que remédio? pense na fome, cabra.

 

também russos se fossem, melancolia que só, não ousariam ostentar esse riso despreocupado, a mendicância displicente feito cabelos levados pela maresia, a mesma que os salva de dia e provoca os tremores noturnos. de frio de fome de vício.

 

essa moça, atrevida que é, fala em primeira pessoa.


: é que, ao contrário das outras, não espera num gringo os degraus que a fará galgar os cumes da gula. pós-de-arroz. não. coloca as cinzas inteiras na lata vazia e a-guarda num bocejo. abre a boca bem larga levando as duas mãos à face cerrando os olhos, como numa oração à morte asteca, índia, nordestina.

 

: nació para morir.

 

 

2 contos
patty flag
   

você tinha que ver a neve

(de Memórias de Patty Flag)

 

Du solltest des schnees sehen!

— O quê?

— Ah, você tinha que ver a neve! Só assim aprenderia a gostar do inverno!

Falava com Oromar por falar. Sabia que meu carioca da gema, ex-músico da orquestra do Cassino da Urca, amaldiçoaria eternamente cada dia de inverno. Mas era reconfortante recordar assim, falando em voz alta, fingindo que era com ele.

"No natal de 1941 nevou como nunca em Berlim. Foi um inverno rigoroso em toda a Europa. Os alemães haviam invadido a União Soviética, o rádio cantava vitória de hora em hora... E o inverno os derrotou. Azar o deles.

Nós, como todos os judeus, já havíamos sido obrigados a nos mudar para o gueto. A casa era uma velharia e meus pais se viam às voltas com a água congelada na torneira, em encontrar mais lenha para a lareira, coisas assim.

Eu olhava as estrelas amarelas pregadas nos casacos dos que se arriscavam nas ruas e pensava, 'E se Hitler mandar meu Gustaff para a frente de batalha debaixo deste inverno?'

A neve cobria tudo. Uma surreal sensação de paz na paisagem branca".

Oromar acordou com o próprio ronco. Disse, "Sim, sim", por dizer, espiou o Flamengo, e fechou os olhos de novo.

 

Ele me pediu em casamento na época do Cassino. Eu estava no auge. Artistas e homens importantes da política me bajulavam. Nada me faria olhar para o pobre mulato.

Trinta anos depois, reencontramo-nos por acaso, ele tocando piano em um bar decadente de Copacabana. Entrei para beber um uísque e ele me reconheceu de pronto. Parou a música na metade, foi até o balcão onde eu estava, beijou minha mão e disse que eu continuava linda.

À beira dos 60, da depressão, lutando com o álcool e o medo de envelhecer? Desta vez, eu o pedi em casamento!

Procurei por suas mãos debaixo dos cobertores mas encontrei as mãos de Gustaff naquela Berlin de 1941 alisando minhas coxas.

Um arrepio percorreu toda a minha vida.

 

No Rio de Janeiro não há inverno, jamais haverá. Apenas um sopro frio.

 

 

 

pedi que ele repetisse

(de Memórias de Patty Flag)

 

Em meus primeiros anos no Rio, morei na Lapa, como prostituta de baixa categoria.

Os homens — habitués, aventureiros, passageiros do bonde. Cada um tinha sua história, todos tinham sua esposa —, iam e vinham com uma velocidade egoísta. Misturávamos os suores de nossos ventres, gemiam sobre meus cabelos, derramavam saliva em meus ouvidos.

Quando se é prostituta, a rotina é o sexo, mas eu nunca havia tido um orgasmo.

Guilherme não me chamou à janela. Passou, me viu, sorriu. Estacionou tranqüilamente no fim de tarde e veio conversar comigo. Flertou, me arrancou risadas, como se não me bastasse pagar cinqüenta cruzeiros.

No hotel, era como se nos conhecêssemos há anos. Ele acariciou meus seios, sorriu quando fiquei nua, e disse suavemente em meus ouvidos:

— Você tem pernas de Marlene Dietrich.

Filho da puta! Marlene era meu alter ego. Nunca conscientemente pensei em voltar para a Alemanha. Eu não tinha mais nada na Alemanha e a Alemanha não tinha mais nada para mim. Mas quando as luzes do cinema se apagavam, eu era Marlene Dietrich, ela era tudo o que eu poderia ter sido. Assisti ao Anjo Azul doze vezes.

Pedi que ele repetisse, eu ria. Pedi que ele repetisse, cada vez mais alto, eu ria. Pedi que ele repetisse, gritando, eu ria. Gozei pela primeira vez em minha vida enquanto ainda nos beijávamos. Pedi que ele repetisse.

Guilherme pagou e se foi como qualquer outro. Mas eu não era mais a mesma.

 

 

ausente
roberta silva
 

A poesia dorme.

Nem pesadelo nem doce sonho.

Bateu um vento

bem no meio de um porquê.

Petrifiquei bem aí.

Não teve um fator paralisante.

Só um não ter para onde ir.

 

Ninguém me acalma

ou preocupa nesse instante.

Nem é o nada quem me abraça,

ele não faria tanto por mim.

É só um não sentir.

Guardei tudo o que não consigo lidar em caixas e estoquei.

Estou bem no meio de um grande armazém.

O motivo pediu conta e foi surfar no Havaí.

Ingredientes, lenha e fogão

está tudo aqui.

Só não há fome.

 

 

rotina
ro druhens
 

Apenas acontece.

Acontece que os olhos se fecham no começo do fim de cada madrugada. Acontece que os olhos se abrem no começo do fim de cada manhã. Acontece que os olhos ficam abertos durante as luzes apagadas do dia todo e insistem em assim ficar no escuridão de todas as luzes que a noite traz.

O corpo dói porque envelhece e isto é irreversível. A alma envelhece porque dói e isto sangra em palavras. As palavras agridoces com as quais ensaio fotografar a minha vida. Salgadas fossem, talvez melhor o fizesse, pois lágrimas seriam. Sebastiana é a alma e sebastiana espera pela severina.

 

 

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