edição 26 | maio de 2008
temas:  inverno | rotina

 

aquela canção do chico
romina conti
   

toda manhã ela acorda

move-se como uma planta aquática

invade meu mar sem espelhos

vai até meu mar profundo

200 milhas além de seu eu

 

todo dia ela me irrita

provoca-me as dores do parto

mas não sou uma muiér tranqüila

e só respiro quando o vento se apaga

e só digo as verdades de homem

 

todo manhã nos punimos

com gestos fechados de briga

descompondo o passado de amantes

recompondo o futuro e o presente

estamos ausentes de sonhos

 

todo dia sonhamos

e o pesadelo de um sonho

é estar acordado e ser parte

de deus pai e poderoso

nós dois expatriados do amor

 

toda manhã me abraça

me diz pra partir depressa

que eu sou como a lua

e sol da manhã me queima

tornando-me azul profundo

 

todo dia rezamos

pedimos a deus misericórdia

e xingamos um ao outro

pela humanidade que criamos

desde que o fogo nos congelou

 

toda manhã me toma

me pega pela mão e me leva

a lugares negros e tristes

dentro e fora de mim

dentro e fora de deus

 

todo dia me acalma

mudando a cor de minha aura

iluminando as cavernas

e construindo o pó

do pó que sou feito

 

toda manhã eu minto

porque nunca escrevo de manhã

escrevo de manhã de tarde

quando o sol arde

neste verão de 98

 

todo dia e todos na praia

e eu vendo a infelicidade

em celulite na sua face

quem me diz que envelheceu

envelhecemos lado a lado

 

toda manhã dou ponto final

a este poema

mas acordo o dia seguinte

e continuo eternamente

a tirar-lhe sons polifônicos

 

todo dia você me toca

e aquece o que se precipita

no abismo da mediocridade

eu empurro o meu entulho

o meu lixo, ah! esse lixo

 

toda manhã é igual

vem o guarda animal

e dá uma porrada num negro

ou num mendigo sem força

pra comer uma muiér

 

todo dia ignoramos

quem somos pra ser

quem somos

pois é se negando

que nós nos damos

 

toda manhã eu ouço

a mesma rádio

o mesmo disco

e alguns bebês de porre

querendo leite em pó

 

todo dia visito o hospício

dou uma volta em torno de mim

percebo o meu vício

o de querer não ter fim

o de querer sexo implícito

 

toda manhã me arrumo

ponho longas botas de chuva

e quando chego na porta

teu sorriso solar

elegeu o céu o azul

 

todo dia embrulho o tempo

desembrulho, coloco no freezer

desanco a falar mal de amigos

e tudo o que escrevo é motivo

pra reparos no carburador do passado

 

toda manhã me inoculo

dentro de você sintomas

dentro de você aromas

e fora: noves fora

nada inexorável quanto verdades

 

todo dia você me ganha

numa partida em que flores

escondem as armas

e onde beijos são lanças

e não setas cupidáceas e inofensivas

 

toda manhã pra te ter ao lado

eu peço a vela que não demore

a trazer o fogo

e a limpar as cicatrizes

ora é noite, é noite, é noite


todo dia ela faz tudo sempre igual

me perturba com a música do chico

e por estar de chico

e por querer ter filhos

e por meses eu sou silêncio

 

toda manhã eu escuto

seu coração batendo dentro de mim

só que em ritmos descompassados

um sinal de que ainda não somos um

e que temos de ficar juntos

 

todo dia recebo meu imeio

aquele que enderecei a mim

aquele que joguei na rede

e usando um puçá eletrônico

me trouxe o vírus, verbo

 

toda manhã estou às escuras

navegando um barco embriagado

que vomita na vermelhidão do mar de nossas lutas

do mar em que navegamos com tristeza

por isso eu sei que somos dor juntos

 

todo dia eu rogo

e hoje é natal

pelo menos os seus olhos me procuram

e eu estou crucificado

pingando sonho e sangue

 

toda manhã eu minto

e escondo o que sou de você

e de mim

tatuado nas vísceras

com o prazo de validade vencido

 

todo dia escovo os dentes

limpo a mente dos entes

que intermitentes questionam:

onde há existir?

onde existem motivos?

 

toda manhã é fria

toda nota de mil é falsa

não existe carinho na bíblia

existe amor nos seus lábios

ou cospe em mim veneno?

 

todo dia, todo dia

eu dou de comer a rodrigo

como consigo?

alimentar este animal imbecil

sem sujar suas mãos de pilatos

toda manhã te beijo

longamente por um segundo

e não consigo te olhar de frente

seus olhos parecem tanques de guerra

me têm em mira, mísseis

 

todo dia eu me lavo

lambo o rabo

tiro as pulgas

mas as palavras que importam

ficam guardadas

 

toda manhã tiro um coelho

e a cartola fica mais pobre

porque é domingo

e eu não posso comer

e eu não devo comer animais

 

todo dia me oferecem uma droga

eu rejeito por prudência

porque não posso

porque num quero ficar um segundo longe

longe de mim mesmo

 

toda manhã me engana

me engana que eu gosto

de ser um ritual pra seus olhos

mais coloridos que os de capitu

naquela infinidade de cinza ressaca

 

todo dia me lambuza

com o mel de uma boca impura

em que a peçonha — veneno olfático —

me levará a ouvir as canções

da maré e dos mares do brasil

 

toda manhã eu cuspo

cuspo no chão

e os sonhos de pitialina

lembram jogadores de futebol

sujando o gramado chão — tela em branco

 

todo dia eu penso em voz alta

eu falo em voz alta

eu te xingo em voz alta

mas peço perdão feito brisa (que ninguém

nos escute) peço perdão ventando baixinho

 

toda manhã ignoro

um pouco pra não doer

ignoro a dor dos outros

o que não diminui minha dor

esta que é intransferível

 

todo dia acendo um cigarro

e num fumo e num bebo

o álcool é incendiário

e o tabaco e a tabacaria

é um poema do ricardo reis

 

toda manhã ouço

"pamonha, pamonha"

penso que te chamam

mas é a mim que as palavras querem

"pamonha, pamonha"

 

todo dia eu abuso do sonho

eu vejo andrajos nos seus olhos

eu olho no microscópio

sua lágrima é seu sangue

seu sangue é a sua lágrima

 

toda manhã penso

num nome pra você

que tal se chamar poesia

ou poema ou poética

ou nuvens de leite condensado

 

todo dia

o dia inteiro, me inspiro

devolvo ao mundo o que quero

penero me esmero em ser

poeta todos os dias

 

invernos & infernos
santa maria

Naquela noite invernal em que a neblina embaçava as vidraças dos meus olhos, reaparecia. Regressava com o vento da consciência enfurecida, trazido pela chuva das lágrimas. A mesma raiva ensangüentada como da última vez em que saiu batendo a porta, com uma raiva tão descomunal que me fazia ter certeza que voltaria. E voltava.  Senhor, dono, parado ilidido à minha frente. O sorriso retorcido e desprezível na boca suja de palavras. O olhar fundo de caçador dançando nas órbitas. Trazia o mesmo terror que carreguei sobre os guindastes de meus acuados ombros. Era ele. Cabelos desalinhados numa chama de loucura. As mãos grossas e engraxadas de vingança. O corpanzil empedernido de carnes, músculos e ossos. A pele viçosa e castigada de nenhum perdão. Para mim, o seu lado mais assustador. Para ele, a sua fatia menos humana. Nunca o esperava, embora fingisse saudade. Não queria ouvir suas verdades achadas na vida perdida. Não precisava mastigar seus xingamentos vomitados. Nem necessitava engolir os nacos secos das suas perguntas acusadoras. Inalar o odor daquelas queixas vazias. Triturar em meus ouvidos os seus gritos mais retorcidos. Nenhuma sede de beber o escuro das cobranças malditas. E toda a sua existência nojenta do que havia de mais limpo em mim. Sim, nas noites frias, ele resolvia aparecer. Não era uma visita. Era uma cobrança. E não lhe oferecia chá quente. Nem um cobertor. Nem uma tapa na cara. Só ele que me ofertava sua viva podridão decomposta. Descortinava minhas miudezas tristes. Desfiava seu cordão de desgraças velhas. Tudo o que eu evitada, ou preferia não saber, ele me presenteava. Minha alma dura saudando seus socos macios, como se abrisse as portas do que havia de mais particular dentro de mim. Afinal, era assim todas as vezes em que brotava do cárcere das minhas profundezas o meu lado mais monstruoso. O meu eu mais secreto. Naquelas noites de inverno, quando as árvores dançavam uma ciranda diabólica lá fora, o pior de mim batia na porta e resolvia me visitar.

 

 

 

rotina de gueisha
shânkara lis
  

Ao bater do meio-dia, a gueixa Yuki entrava na tina de Ofurô, a nudez dentro da tina, onde os perfumes derramados davam à água um tom cristalino de nada: depois uma carpa a penetrava, gozoza, de escamas macias, a carpa ia e vinha e friccionava as fendas da gueixa com o cerimonial de quem celebra um culto noturno; e embrulhada num céu que não tinha fim, a alma de Yuki — céu de seda — e, num dos recantos de seu mistério, a gueixa ondulava suavemente os quadris, dando aqui e além certo olhar ao jardim lá fora, entre árvores silenciosas - o jardim de pedra.

 

O resto da tarde, se havia luz que salpicasse as profundezas do horto, a gueixa Yuki passava lendo na Sala de Chá, e ali a mobília era de vime e os pequenos vasos de flores de cerejeira calavam cada mágoa, cada ira.

 

Um jardim de pedra; aí, quando nele estava, Yuki saboreava os escritos de O Livro do Vento, do poeta Syn Li. Enquanto iam sendo lidas as pequenas odes a música na vitrola refrescava o ar , e a gueixa agitava o leque e pensava na carpa, no céu, na seda.

 

 

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