edição 8 | julho de 2006
homem

 

cabra macho pra chuchu
romina conti

O homem era só mais um homem qualquer até o dia em que quis virar mulher. Sua mãe chegou perto dele e cortou seu pinto. Seu pai passou mertiolate e ele era alérgico a mertiolate. Ficou com assaduras pelo corpo todo. Foi neste dia que ele virou mulher que eu o conheci como mulher. Era uma mulher bonita e um homem feio. Porque mesmo sem o pinto ele era homem. Um homem comum. Uma mulher bonita porque quando usava maquiagem, ela escondia as imperfeições de seu rosto redondo como uma lua ou um prato ou uma bola de futebol ou um ovo ou um disco voador. Sua mãe cortou seu pinto porque ele pediu. Sangrou tanto, mas cicatrizou. Ele já vinha com aquela idéia há muito tempo. Era um homem que queria ser mulher. Não encontrava utilidade para seu pênis. A utilidade que os homens dão. Era uma poesia aquele pênis. Uma inutilidade. Assim como o poeta abandona a poesia, ele abandonou seu pênis. Sem tristeza e com muita animação, pensando que ia ter vida nova. Passou a ouvir das pessoas coisas horríveis: que era chato, insuportável, imaturo, burro, ignorante. Tesouras rasgavam sua auto-estima. Tudo porque sua mãe cortou sua inutilidade. Se todos cortássemos as coisas inúteis da vida, íamos acabar nos matando. E foi assim que ele acabou... Enforcado... O outro homem dessa história, o outro ser humano que sou eu, gostava do cara que se suicidou. Tínhamos muita afinidade e cumplicidade na nossa amizade. Foi impossível não ficar triste com o fato de ele ter tirado a sua vida porque perdeu o pênis. Foi a mesma coisa que aconteceu comigo quando perdi a poesia. Fiquei triste e meu tempo ocioso era dedicado a procurar uma forma de me matar sem dor. E consegui num dia desses. Num dia em que o sol foi enorme e que o céu ilustrado de estrelas anunciava mais sol para o dia seguinte. Vi um cometa passar. Fiz um pedido e me joguei num vidro de Amplictil. Deixei uma carta para que me entendessem nesta hora. Não fui uma pessoa triste e sim despreocupada e sem pretensões na vida. Tudo me iludia e a poesia me filtrava. Deixei um último poema que dizia

 

Papai do céu foi um homem

um homem como outro qualquer

por que será que um homem não pode virar mulher?

 

O infinito está sempre num outro dia

e assim a flor nasce depois de uma morte

dentro do peito onde o poeta é mais forte

 

Sei que não vou entrar apra a história com um poema como este, mas quero dizer que o poema quando deixa de nascer no poeta é como um abismo que cai. E a última coisa que cai. É o inferno que não quer mais seu fogo. Mesmo sendo eu um poetastro. É diferente de abandonar a poesia e o poema e partir para ser feirante ou motorista de táxi ou médico ou engenheiro ou advogado ou michê. Quando a poesia abandona o poeta resta a morte. Foi o que restou a mim que sou só uma mulher comum. Que amava uma mulher e um homem: o poema e a poesia. Que era uma mulher dentro de um homem e um homem dentro de uma mulher.

 

 

 

 

 

3
santa maria

o anoitecer

Não não não - gritava ela.
Sim sim sim - sussurava ele.

 

 

a madrugada


Antes, o grito silencioso.
Depois, o silêncio gritante.

 

 

o amanhecer


O ladrilho frio do chão,
a torneira da pia vazando,

as rachaduras do teto,

as paredes sujas,

a porta entreaberta,
foram suas únicas testemunhas. 

 

 

 

 

mulheres criam sapos e sonham com príncipes
(pequena crônica tipo conto de fadas)
tereza yamashita

Mulher é um bicho esquisito, disso já estamos cansadas de saber. Sabemos que príncipes não existem, mas poderiam existir. Loucura? Devaneio? Não. Simplesmente criamos sapos e nem nos damos conta disso. Somos todas responsáveis. Do que estou falando? Não somos simplesmente mães, irmãs, amigas ou amantes. Somos formadoras de seres humanos. Gestação? Um bom pré-natal resolve. Estou falando do dia-a-dia, do tête-à-tête. Acham loucura? Talvez, mas ultimamente estive matutando e descobri que as mulheres são machistas, mais do que os homens. Como? Vocês não estão entendendo nada? Século vinte e um, o machismo já foi extinto? Não. Creio que apenas disfarçado e maquiado. Mulheres criam sapos e sonham com príncipes. Quer um exemplo?! Revistas femininas, quer algo mais machista e decadente? Lá só se fala de homens, como agradar os homens, como enlouquecer um homem, como laçar um príncipe. Novela, nem se fala. Tudo gira em torno de um grande amor, a mulher gostosa, nua, seminua, e tudo isso pra agradar quem? Pra conseguir o quê? Um bom casamento! Vejam só, as mães sonham com o marido ideal pra sua filha, mas em casa tratam o filho homem como um rei. Elas esquecem que um dia ele, o seu filho queridinho, será um marido também. E coitada da nora! Creio que cheguei ao ponto principal. É pura vingança, o inconsciente age naturalmente. O filho é tratado como rei, ele ganha o tão sonhado carro aos quinze anos, ele pode perder a virgindade aos dez, ele não precisa arrumar o quarto, ele é tão inteligente, pra que aprender a cozinhar e a limpar, coisas do lar? Tarefas caseiras são pras meninas, que um dia vão se casar. A mãe ensina ao filho como enfrentar o mundo, a lutar e bater, e ensina à filha que não se bate, não se luta, que ela é a mais fraca. Uma delicadeza de flor. A filha ganha Barbies e bichinhos de pelúcia, o menino ganha videogames, Lego e jogos de estratégia. O menino vai a campeonatos de judô, de natação e de xadrez. A menina vai ao shopping, conferir a última moda e as promoções das lojas de departamento. O menino ganha revistas masculinas, de esportes, de carros, a menina ganha revistas de horóscopo, da Bruxinha e de artesanato. Alhos pra meninos e bugalhos pras meninas, mas quem instituiu isso? Como um bebê sabe a diferença? A mãe, a mulher! Ela institui a diferença já nos primeiros anos. O pai cuida do menino e a mãe cuida da menina. Se a menina é inteligente, isso é herança do pai. Se o menino é bonito, isso é herança da mãe. Conclusão: criamos sapos e sonhamos com príncipes. Agora vocês entenderam por que somos machistas? Nós, mulheres, somos as formadoras de homens, concordam? Algumas dirão que estou exagerando. Somos modernas e os tempos são outros. Tá certo, vocês são um por cento das milhares de mães-mulheres do mundo, só vocês pensam e agem assim. E os outros noventa e nove por cento das mulheres machistas? Só pra relembrar, vocês já ouviram da boca das próprias mulheres essa frase, aposto: "Prefiro homem, em mulher não dá pra confiar" (no consultório, na oficina mecânica, no trânsito). E essa outra: "Atrás de um grande homem, sempre há uma mulher de fibra". Atentou para o "atrás"? Se você faz dupla com um homem, em qualquer área, o homem é sempre mais valorizado. E sempre por outra mulher, já reparou? Medo da concorrência? Se a mulher ganha mais do que o homem, ela vai confessar que o marido ganha menos? O que as amigas dirão? Que o seu marido é sustentado por você? Que você casou com um fracassado? E o marido, então? Preciso dizer mais? Assim, lanço a tese: mulheres criam sapos e sonham com príncipes japoneses, árabes, judeus, italianos, africanos, ingleses, brasileiros.

 

 

 

4 poemas 
valéria tarelho

arte sã

 

homem é um bicho esquisito:
caça, come, joga fora a carcaça.
mulher tem outro instinto:
escolhe, leva para casa, usa...

...e com as sobras dos ossos,
faz um par de brincos.

 

 

 

 

 

*

 

meu homem madrugada
tarda
quando eu cedo

 

 

 

 

 

reverso

O homem certo
decerto não é esse
que amo a torto e a direito
com todos os seus efeitos

O homem a contento
por certo não é esse
que favoneia carícias
nos anéis de meus cabelos

Esse é o homem incerto
inserto em mim como um vício
ou um defeito genético

Esse é o homem inverso
revés do vento brando que invento
- Zéfiro ao avesso -

 

 

 

 

 

nem te conto...

conheci um homem e tanto:
charmoso, inteligente, bom de papo...
depois que o beijei
acabou o encanto:
puf!
virou sapo

ainda ouço seu coaxo
vindo do brejo em que o deixei


 

 

.

 

 

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