edição 7 | junho de 2006
desejo

 

6 poemas
romina conti

*

 

à toa estão as ondas

e o seu  perfume de falésias

 

explodindo

imprimindo no verde

espumas brancas

 

brumas em que me perco

teu ventre sempre sente quando estou por perto

 

aperto

as tuas  pernas no deserto

 

no sal do sol da praia

marasmo maresia mar de dia

 

à noite saltos ornamentais

na cama d'água

 

me visto de ressaca ao fim do azul

do céu

 

seus lábios roxos de escorrega

seu principal desejo

 

sentir meu colo no teu colo e colados

feridas

 

serem sérias entidades do mar

calmaria agora que em teu rosto sardas há

 

ah yemanjá

 

 

 

 

camboja

 

o copo a noite a morte

enfim o grito de socorro

 

a britadeira ou o som

do motor no dentista

 

faz desaguar o mar que há

numa criança

 

mija

 

 

 

 

alvo de palavra

 

a boca do corpo

a borda do copo

 

a borda da mata

borda no céu do

brasil  seu modo

de  vista,  razão

ou duodenite no

portador de mim

 

ocaso concluo q

sai  muito   arfei

 

afim  do  ciclone

clonado em você

 

 

 

 

dentadura

 

só quero seu corpo

no copo

 

 

 

 

sem aviso

 

tatuagem

no ventre

vale

 

balança

a bandeira

na mão

 

bolina

o mastro

do espasmo

 

todo o corpo

é seu tremor

tsunami

 

terremoto

 

 

 

 

composição sobre o corpo

                          tudo e nada

 

como

se

não

fosse

fóssil

o corpo

físsil

explode

 

como

se

não

fosse

fácil

ofício

de corpo

oco

implode

 

como

se

não

for

flor

corpo

tudo

pode

 

 

 

a leveza do desejo 
santa maria

Conheceram-se no supermercado. A gordinha empurrava com braços roliços o carrinho abarrotado de compras. Os pequenos olhos oblíquos compenetrados. Ir às compras, para ela, tinha lá suas magias. Animava entregar-se à falácia do consumo. Os prazeres da vida gastronômica. Arrumar os produtos dentro do carrinho também lhe despertava a verve artística, organizada que era, dispondo as embalagens categoricamente. Rumava viciosa para a seção de doce. Sua selva de glicose. Chocolates, sucrilhos, biscoitos. Às vezes violava uma embalagem, com sutileza, provando a crocância de alguma nova guloseima. Depois apressava os passos miúdos em direção ao recanto da modernidade. O departamento dos enlatados. Diante das ruidosas promoções, novidades e opções, ela se divertia. Instalada em seu habitat natural. Seu sagrado santuário. Na parte dos frios, os frangos congelados pareciam cada vez mais raquíticos. Pediu ao atendente uns filés gordos e sangrentos, apontando com seus dedos anões. Enquanto o rapaz de avental fatiava a carne, ela imaginava-se estirada naquela mesa, sendo retalhada em vários bifes avermelhados e suculentos. Costelas. Lombos. Peitos. Ancas. Glúteos. Em casa, mastigaria com vontade aqueles nacos suculentos, as fibras carnais, satisfazendo o seu ímpeto canibalesco como se triturasse com seus caninos impiedosos aquelas anoréxicas modelos das revistas. E, num inesperado salivante, ela o viu. Ele, sim, ele. Parado no meio de um corredor. E ele a enxergou também. Dois olhares cruzados na solidão das pilhas de embalagens. E a gorda apaixonou-se. Pouco lhe importava quem era e de onde vinha. Apenas o queria, todinho, para sempre. Ao final das compras - que logo terminou - ele já estava em sua casa, fazendo parte da sua vida. Falava muito pouco. Mas em compensação a ouvia muito. Nunca discutia e nem a recriminava, fosse por qualquer motivo, inclusive a obesidade. Ao contrário, desconfiava que ele até a preferia mais cheinha. Sua existência parecia incentivá-la a ser. Esteve ao seu lado em todos os momentos, a partir de então. Gostava de assistir televisão na companhia dele, desfrutá-lo após as refeições e compartilhar com ele o seu mundinho doméstico. Agradecia aos céus por ele ter aparecido em seu caminho, fosse coincidência ou desígnio cósmico. Ele a fazia uma mulher completa. Não mais desejou emagrecer. Parou de sofrer com as tops etiópicas. Aprendeu a apreciar ficar em casa nos finais de semana e permanecia fiel durante os anos em que viveram juntos. Era feliz e sabia. Como sabia também que um dia tudo findaria, porque as felicidades acabam, ou não seria felicidade, se não deixasse história. E quando acontecesse, teria saudades. E sofreria muito. E tentaria substituí-lo. E sentiria falta daquele amor pitoresco, do gosto, do cheiro, do toque, de acordar de manhã radiante e sedenta, abraçados, ele em seu colo ou ao seu lado, mesmo que já estivesse derretido. Sabia - e se preparava - para o dia em que, no seu armário ou na estante do supermercado - não haveria um outro pote esperando por ela, quando encerrassem a fabricação do seu sorvete preferido.

 

 

 

jamais perca a cabeça
tereza yamashita

Na China antiga as cabeças rolavam. Nada podia ser mais cruel para uma cabeça do que ser derrotada, decapitada e atirada aos pés dos vencedores. Nossa cabeça transformava-se em bola de futebol para o divertimento dos nossos inimigos. Era essa a triste história que minha mãe me contava. Aprendeu do seu pai, que aprendeu do seu avô, que aprendeu do seu bisavô africano, que aprendeu do seu dono português. Todos fanáticos por futebol.

Morávamos de frente para o mar, em Copacabana. Todas as manhãs nós víamos o sol nascer onde o mar parecia acabar. Praia deserta, mar tranqüilo. O sono dos justos.

 

Desde bebê minha mãe queria que eu fosse jogador de futebol. Todos os meus tios e primos já tinham tentado entrar pra algum time. Eu não poderia fugir à regra.

 

- Perna de pau! - minha mãe berrava comigo o tempo todo, não tinha jeito. - Me mato o dia inteiro: lavo, passo, esfrego, cozinho e você  não reconhece o meu esforço! Vou mandar você de volta pro morro. Seu pai vai dar um jeito. Aqui você virou um bunda-mole, um bostinha fresco, de tão mimado que foi.

 

- Não quero voltar pro morro. Quero estudar e ser doutor,  m-é-d-i-c-o.

 

Como sempre, fiquei trancado no quartinho da empregada. No mesmo dia eu fugi de lá. Não voltava  pro morro nem que me matassem. Morar com meu pai, que nem me reconheceu como filho? Um drogado, um bandido. Nem morto! Lá sim, eu ia virar defunto mesmo. Era como a história do futebol. Minha cabeça ia rolar. Então eu fugi. Passei fome, fui roubado e humilhado. Uns dias depois voltei com o rabo entre as pernas.

 

- Bunda mole! Vai morar com o seu pai, sim. Vai virar homem e tomar vergonha nessa  cara.

 

Pois é, meti os pés pelas mãos e fui direto pro morro. Estava tudo acertado. Meu pai agora é um traficante famoso, me coloca fácil no time do Alemão. O Alemão diz que conserta qualquer perna de pau. Era só deixar o garoto com ele. Depois de um mês era garantido, estaria jogando um bolaço. Até que no começo o Alemão me deixava  estudar e só dava treino no final da tarde. A primeira semana foi assim meio morna, creio que ele estava me testando. Ele logo viu que comigo a coisa não ia ser tão fácil, eu era um perna de pau.

 

- E aí,  garoto, em que posição você quer jogar?

 

Eu olhei pra cara do Alemão e respondi na lata:

 

- Em nenhuma, quero ir embora desta pocilga e quero que você se dane.

 

O Alemão começou a rir e me deu um soco direto no estômago. Meu diafragma deslocou, o pâncreas quase estourou, expeli todo o ar armazenado e fiquei um bom tempo sem fôlego.

 

- Filho da puta! -  gritei, quando o fôlego voltou.

 

Quis dar um soco na carranca pálida daquele imbecil. Mas ele foi mais rápido e desviou. Depois segurou o meu braço e me fez cair de joelhos, quase enfiando a minha cara, no seu pau duro de tesão.

 

- Moleque,  até que você  é corajoso. Puxou o pai - disse rindo e depois me soltou. - Da próxima vez eu te pego pra valer e você vai ficar de molho por uns bons dias. Tá avisado. Primeira regra, obedecer sem fazer perguntas. Segunda regra, ou você me fode ou eu te fodo. Terceira regra: nunca quebrar as regras.

 

Saí chutando o ar, com dor no estômago. Desse dia em diante o Alemão começou a pegar pesado. Me fazia correr até pôr os bofes pra fora. Fiquei com os pés em carne viva e as pernas moídas de tanto exercício, meu corpo parecia carne moída.

 

Todo dia eu chorava e pedia pra ir embora dali, implorava pra voltar pra casa. Eu odiava futebol e todos dali. Odiava a minha mãe por ela ter me enviado pro inferno.

 

O Alemão começou a me chamar de viadinho chorão e todos repetiam em coro.

 

Os dias eram intermináveis. Não pude voltar pra casa da minha mãe no final de semana, eu estava em concentração.

 

- Nada de mulheres, esse final de semana você é nosso - disse o Alemão.

 

Eu não tinha entendido o sentido da ameaça e, ingênuo, não fugi. Fiquei e fui currado ali na concentração por toda a equipe. No começo senti pavor, mas depois comecei a gostar e até senti prazer. Aqueles corpos grandes e suados depois do treino, todos querendo se servir de mim. Me senti querido, desejado, apesar de todos estarem a fim de literalmente me foder. Me chamavam de Maria, Mônica, Gigi e de tudo quanto era nome de puta. Passei a ser a vagabunda reserva deles. O Alemão tinha razão. Eu era um viado mesmo.

 

O Alemão chamou meu pai. O velho me espancou quase até a morte. Para ele era um desonra ter um filho bicha. Ele, o poderoso, o destemido. Já tinha transado e até estuprado várias mulheres do morro. Como poderia ter um filho viado?

 

- Foi culpa da vaca da sua mãe. Ela te criou como mulherzinha. Bem que eu achei que você não era meu filho, mas a puta me encheu tanto o saco, agora ela vai pagar.

 

Nunca tinha visto um olhar como aquele. Olhar de vingança e de morte. Tentei chamar alguém, tentei pedir socorro, mas desmaiei.

 

Depois de três dias, acordei. O Alemão me contou a tragédia. Meu pai havia matado a minha mãe, mas antes de morrer ela tinha enfiado uma faca no bucho dele. Meu pai morreu dois dias depois.

 

Herdei a casa do morro e descobri que lá havia muitos dólares escondidos. Peguei as verdinhas e resolvi doar a casa pra uma creche. Resolvi ir embora pra sempre. Passei no Alemão pra me despedir.

 

- Alemão filho da puta, tô indo embora desta merda. Vou estudar e virar doutor. Não sirvo pro futebol. Vim te agradecer.

 

- Agradecer o quê, viadinho chorão?

 

- Só agradecer.

 

- Moleque safado, agora tá rico e vai deixar o Alemão?

 

- Jamais. Vou te levar junto. Descobri que quero ter você sempre do meu lado.

 

- Do que você tá falando, seu bichinha de merda? - essas foram as últimas palavras do Alemão.

 

- Vou te levar comigo pra sempre - eu repeti.

 

Então, saquei uma moto-serra e cortei o pescoço do Alemão. A cabeça rolou feito bola. Meu troféu, mandei fazer uma bola de futebol com ela.

 

Meus pais, o Alemão e o futebol me ensinaram muito: jamais perca a sua cabeça, sempre que puder jogue com a cabeça do inimigo. A vida é feita de lances, jogue pra ganhar.

 

Hoje sou especialista em cirurgia de cabeça e pescoço e ainda adoro os garotos do morro.

 

 

 

 

 

8 poemas 
valéria tarelho

luxúria

coisa de pupila
que dilata ao vê-lo:
pele pêlo poro
corpo gosto cheiro
som de mete_
oro

tonteio tanto quanto
dedos dele tateiam
tentam tocam [traquejo]
fervo & aguo no entre_
meio

é coisa de papila
y me gusta
lambê-lo

 

 

 
 

couvert

 

puxe pelos
cabelos
todo verso
que ofereço

encoste as
verdades [nuas]
de costas
contra a parede

jogue no chão
os apelos
unhe o azedume
morda os medos
até que o poema uive

e caia sobre
e venha entre
e chegue junto

depois podemos jantar
civilizadamente

 

 

pantomima

 

prefiro o gesto, à palavra
sou mais o não dito, subentendido
no jeito mundo que ele me toca

me toca fundo
essa cena muda

me deixa úmida
in loco

 

 

 

 

umbigo

 

entremeio obscuro
furo
entre fenda e seios
senda
da sua libido
vereda
em que passeiam
língua e dedos
orifício
que permeia
o desejo
poço
a um passo
de meu sexo

 

 

 

 

*

 

caridosa

tem o maior prazer em dar

sem olhar a quem

:

cheia de bondage

venda-se

 

 

 

 

paladar

 

na ponta
da língua
o doce sabor
do beijo

no meio
sensível
ao sal

sou
u
o
r

saboroso
é o gozo
que inunda
[acres]
ao fundo

 

 

 

aimoré

 

dispense a toalha de mesa,

hoje te sirvo o jantar no chão.

talheres, não precisa:

da entrada, à sobremesa,

use dedos, boca, língua.

deixe de lado os guardanapos,

se lambuze;

quero estampado nos lábios

um sorriso, muito gozo.

luz de velas, não carece:

a fogueira do meu corpo

reluz e aquece.

e vê se esquece as boas maneiras:

seja rude, bárbaro, grosso.

urre!

como selvagens aborígines,

comamos, nus.

canibais de nós,

comamo-nos!

 
 

 

 

orgasmo

 

panorâmica

a vista

[a m p l a]

que avisto

do alto de nós,

nu

vens

.

 

planam,

enquanto olho

[alheia ao risco],

sucessivos planos

suicidas

:

bocas camicases,

línguas ícaras,

louca

v   

i

d

a

.

 

despida

do voyeurismo,

ouso um vôo rasante

rente ao ritmo

.

 

sismo e pouso,

no horizonte

do teu gozo, 

meu ocaso

:

orgasmo 

 

 

 

 

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