edição 7 | junho de 2006
desejo

 

désir
virna teixeira
 

um ritual: séductrice. começa

pelos detalhes

dos pés, vestimenta, silêncio

 

·

 

fruits de mer, vinho fresco

salmão marinado

 

ostras

 

·

 

perfume antigo

o desenho das costas

 

lento despir-se

antes da petit mort

 

 

ela é dinorá
catarina vedruna

Na cama, abriu o livro pôs o marcador no criado mudo (quem dera fosse um criado de verdade, exclusivamente para servi-la; entretanto não passava de um espectador de puxador quebrado). Já lera esse livro mais de seis vezes e continuava a folheá-lo, a degustá-lo, comendo a carne de cada letra, roendo os ossos de cada página, há anos. Leu até que adormeceu. Fazia quase sempre o mesmo caminho. Abria o livro. Lia cinco, sete ou quinze páginas. E encontrava alguma palavra. A maçaneta. Era só girar um pouquinho e pronto. Já estava do outro lado do livro. No avesso dele. Pensando em coisas que poderiam ter acontecido há dois dias, duas horas, dois minutos. Ou há muitos anos. Quando não desacreditava tanto em tudo. Quando pensava que a vida não a engoliria sem digerir e ela não assistiria às gastrites do estômago da vida, as feridas ardentes, ao desespero de um espetáculo febril. "Os fantasmas estão valsando numa doce névoa de goma de mascar...". Foi a última frase lida. Os fantasmas. Foi à maçaneta, girou de leve, adentrou o cômodo, encontrou com os seus próprios fantasmas, dançando e rindo para Dinorá, que escorregava pelo ambiente, era volúvel e flexível como uma dançarina profissional, movendo os pés com cuidado e precisão, girando os quadris e observando os quadros pelas paredes, pessoas nuas, e feias, muito feias, rostos aterrorizantes. Quem vivia ali? Qual dos fantasmas? Numa das paredes havia uma janela, parecia com um quadro, era a única janela da peça. Sem cortinas. Pôs a cabeça para fora e pôde ver que se tratava de um apartamento, segundo andar. Lá embaixo estava ele. Blusão de lã marrom e calça bege. Sapato sabia lá qual cor. Olhou o céu. Estava coberto por um tom de azul que nunca havia visto antes. As nuvens roxas. As estrelas afixadas no azul. A Via Láctea fixa com elas traçando aquela estradinha que nos levava a lugar nenhum, a todos os lugares. Os olhos de Dinorá fixos em tudo. Olhou mais uma vez e Jorge já havia desaparecido. Desceu as escadas e correu pela rua. Sua saia enroscava-se nas pernas ágeis, pernas de dançarina, correu até encontrar um beco, ele vivia pelos becos, negociando pelos becos, suas peças sujas, seus quadros horrendos só agradavam à boemia. Dinorá desistiu ao encontrar no beco apenas um gato sarnento que quando a viu cravou nela seus olhos, duas pelotas cor-de-mel, e danou a correr, correu e saltou um muro. Ela voltou pra casa. Pensando nos palhaços do Circo do Norte que visitavam a cidade quando criança e a faziam rir tão facilmente, rir de um palhaço era como andar na chuva e se encharcar, era tão fácil. Tão fácil. Hoje não ria com tanta freqüência. Sentia-se apagada. Jorge veio e se foi. Não a deixou. Ela um dia se cansou de seus segredos. Não sabia o que ele dissimulava. Porque escondia algo. Não quis saber o quê. Não a interessava. Mas segredos próximos demais dela a amedrontavam. "Se tiver um segredo, não deixe que eu saiba que ele existe, por favor, não deixe".

 

Catarina Vedruna sempre viveu na cidade que é cercada de verde. Um verde maltratado, mas ainda assim verde. Desde criança sempre foi muito observadora, e pensar que a literatura pode ser um mar de entremeios e entrelinhas e detalhes a impulsionou à escrita. Não gostava de estudar, hoje é professora. Não gostava de falar, hoje conta histórias. Mesmo que tortas... Tem 27 anos, não provou de casamentos ou maternidade, mas espera quem sabe vamos ver sabe-se lá por que não? um dia provar desse desconhecido. Escreve bem quando está mal. E basta.

 

 

saudades de jack 
greta benitez

No museu de cera desta rua obscura do quase centro da cidade, me sinto faminto. Olhares parados, rostos falsamente corados, movimentos mecânicos. E o sangue, onde está? Penso no jeans que uso, na camiseta fuck you, no bebop, no Jack. Saudades de Jack. Nunca me senti tão amado como no dia em que Jack leu em voz alta para mim naquela tarde fria de chuva e conhaque. Neste museu de cera, Jack não cabe. Como me acostumei a me alimentar de sangue, aqui no museu sou macrobiótico em churrascaria. Sendo assim, a idéia: fuck you, rasgo minha camiseta, minha própria carne e sugo do meu coração sangue fresco de alta qualidade direto da fonte.

 

 

Greta Benitez (Curitiba-PR). Publicitária e pós-graduada em Marketing. Lançou, em 1999, o livro de poesia Rosas Embutidas e edita o site Poesia Insana. Já obteve diversas premiações em vários estados do Brasil e foi publicada em várias antologias.

 

 

 

 

(espaço tempo dos pumões que se respiram) 
juliana vallim

Chamava-se um*, logo após, dois* e depois enumerou-se com exatidão e totalidade zero*. Essa história poderia muito bem começar fazendo a descrição física de uma menina cuja verdade fora roubada, mas não, não vou lhe explicar as incertezas do que ela enxerga e não percebe ser mentira. Então começo categoricamente com o meu zero já habituado, zero porque dois corpos já se anularam e se tornaram um só, perdendo a materialidade, perdendo os genes, veias, ossos. Perdendo-se tudo, chega-se ao marco zero de todo o espanto de vida vivida.

 

Essa é uma história de verdade. Sim, uma história completamente verdadeira essa que tento escrever agora, deixo bem claro que isso faz parte do meu diário pessoal, e deixo mais claro ainda que esse texto está situado nas minhas páginas descoladas e que em alguns minutos a tinta falha. Espera e expansão, tudo começou errado como era pra ser errado desde que o rumo desregulado começou a criar fatos. Era pra ser, era pra desaparecer no meio dos outros, mas uma menina entrou no meio dos fios, dos teares e dos completos emaranhados. Extenso - tenho certeza que isso será doloroso - no quintal das almas, no topo dos arranha-céus; uma rede e a ponte bamba, mas o que me toma é a certeza de que há na vida coisas inexplicáveis. Fatores de importância dois*, passando para um* e tornando-se, sem perceber, zero*: raros chegaram - como eu - ao marco zero de todas as sensações, chegarão ao novo princípio retilíneo de perfeição semi-primitiva, mas outros, outros nunca entenderão, nunca chegarão ao espaço-tempo que anula os corpos, memórias e conceitos; não sei se serão de fato mutilados pela diferença, se perceberão que a exatidão lhes falta, assim como a perfeição, mas serão sim, esmagados pela gargalhada das quatro paredes que fazem acontecer a vertigem de uma transição que não se vê. No entanto existe ainda a quinta proporção. Quinta relação entre seres. Essa quinta ainda é capaz de anular o zero*, só que aí nada mais tem volta, realmente é de uma sensibilidade terrível chegar à quinta capacidade de usufruir entonações da alma. A história que eu ia contar já se perdeu da realidade e escapou da minha memória, vejo as imagens turvas e já não posso traçar fato por fato, instante por instante que se mata, que se perde e se degola na síntese dos mistérios que existem entre tudo o que circula, entre tudo o que direciona e se dobra para a direita.

 

Não sabe e não sabe que não sabe, sabe e sabe que sabe: para mim esta é a diferença nada sutil entre os seres. Digo que as demonstrações humanas que fazem gerar algo "sentido" - meramente sentido - é um simples engano, é um simples motivo para que a sua internação seja providenciada o mais rápido possível, a internação do seu corpo e o embalsamento de sua mente. As outras percepções que vagam pelos sentidos são as que realmente existem. O que não é eterno; o que é puramente liberto. O ato verdadeiro não é baixo como suas atitudes, nem sincero como as suas mentiras, o ato de poder desenhar-se entre páginas de papel de arroz e pássaros intactos é equivalente ao marco zero: marca-se. Sabe os fios que são seus, as cores que pertencem ao seu corpo, a categoria das explicações, o valor das palavras, sabe-se que tudo isso é inexistente. Mas vamos, vamos ao fundo de toda essa loucura limítrofe, olhares que se escapam, fumaças que dançam, pessoas que se perdem, passos que retroagem. Andando nessa direção pontilhada da imensidão de duas mentes no marco zero posso dizer com clareza essa coisa que penso: tomaria de você as fitas que saem do estômago, engoliria o seu mundo só pra que ele não lhe fizesse sofrer, mostraria minhas realidades, suas mentiras que não são mentiras, mostraria-lhe tudo sobre todo mundo e sobre tudo no mundo.

 

Um poste. Uma cadeira. Nossas línguas esquisitas, nossas bocas saindo palavras, nossa linguagem inventada e uma verdade: a verdade é que a história da menina se perdeu e essas outras linhas se encontram nas páginas brancas escritas com tinta invisível... acordes de música, partituras soltas e o que não se sabe, eu não quero mais explicar para a outra lá, que se perdeu, achando que a vida é eterna. Desejo você. Destruo. Invento-lhe os mundos. As roupas se rasgam, os outros partem, porém as ligações frágeis de uma linha, de um tempo, de um interstício - ah, Deus, devo dizer isso? - essas ficam.

 

 

Juliana Vallim (1987, Belo Horizonte-MG). O resto é segredo.

 

cruzadas
mônica oliveira

Ele chegou e se foi com a luz da lua nos cabelos. Depois choveu, mas o cheiro ficou. Não tomei banho porque o cheiro dava tesão e então eu gozava de novo. Melhor ter partido, no entanto. Bom lembrá-lo uivando, um boi no abate, eu te suplico. A fantasia dá de dez a zero na realidade.

 

Dormi muito e acordei faminta. Nada comi para me sentir ainda mais esfomeada e só depois, ao matar a fome, poder ficar completamente feliz a ponto de explodir. Felicidade a gente provoca. Ela custa pouco. Quando é cara, não é de boa qualidade.

 

Decidi por uma gororoba na esquina. Gostei de acordar, sair por aí, minissaia e sem calcinha, rabo-de-cavalo loiro, tão livre! Tão bom ser mulher! Sair reparando na arquitetura brega e modernosa dos novos prédios, nos paralelepípedos, nos sapatos, no pichado do muro e nas coisas que ninguém repara.

 

Sentei-me ajeitando a toalha xadrez puída. Suco de melão, cruzo a direita, por favor, cara de vontade de comer. Cruzo a esquerda. Um beirute. Há uns cinco homens no boteco. Barrigudos, desolados. E capricha, que eu tô morrendo de fome.

 

Todos olhavam. Corei. Veio o suco, o prato, que vergonha, comi de cabeça baixa. Devagar, como se ritual, saboreando o tempero barato e picante. Pobres anoréxicas, quanta infelicidade. Todos olhavam. Aí lembrei daquele filme da Sharon Stone. Os homens são uns bobalhões. He he...

 

Tchau, obrigada, pode ficar com o troco. Antes de ir, porém, lembrei novamente do filme. Mais uma vez corei. E cruzei de novo as pernas, desta vez lentamente, levantando um pouco mais entre o vão. A Sharon Stone dos pobres.

 

Ouvi algumas obscenidades e saí, empinando os peitos, tão estranha é a vida sobre a Terra.

 

 

Mônica Oliveira. Paulistana, jornalista. Trabalhou para a rádio Patrulha FM, onde fazia entrevistas com políticos, e para jornais e revistas de todos os naipes, entre eles o Diário do Grande ABC e o Agora São Paulo, além de escrever para áreas técnicas e revistas femininas sobre moda, beleza, comportamento e papel da mulher na sociedade moderna. Morou também na Nova Zelândia, onde trabalhou para o Jornal The Ensign. Edita o blogue Eu Sou Maria.

 

 

abricó
rosa pena

Chegará com uma hora de atraso de propósito ao encontro com Luiz Augusto Mendes Campos Carneiro de Sá. Nunca tinha saído com um cara com o sobrenome "de" e enorme. Será que o nome é proporcional, que nem número de sapato? Quer criar suspense e não quer que ele imagine que ela é do tipo que "dá" mole, do verbo transar e não o "de" do Sá. Resolve ir de forma classuda, vestido longuette sem decote, pouca maquiagem, cabelos presos num coque tradicional. Só vai falar, aliás, pronunciar como a nobreza faz, algo que cause impacto. Jules Renard, autor francês do século XIX, leu algo sobre este cara na revista de TV. Citará o Jules, a revistinha jamais. Célula-tronco também é sintoma de cultura. O cara é um industrial filósofo, um intelectual rico de esquerda, que adora pobre, mas não deve gostar de quindins, nem de guaraná. Vai pedir carpaccio com vinho. Instrumento? Violino. Tomates? Só secos, pois pega bem. Queijo? Ricota. Fruta? Figo. Profissão? Projetista de unhas, os sábios ricos vivem de projetos, manicure é de quem faz mobral. Sua casa terá varanda, quintal é coisa anticultural. Flor preferida será orquídea, rara e cara. Não falará gírias, nem palavrão. Finalmente, chegou seu momento de ascensão. Seu nome agora é Vânia Maria, Vaninha lembra cama. Ah! Bateu saudades do Ronaldo, bronco pra caramba, tronco sem célula, mas faz uma picanha como ninguém na churrasqueira e na cama também. Ela pode saborear tudo que adora, meter o dedo no rocambole, o bole-bole, o dedo, e até o ronca depois do bole! Ele nunca fica mole.

 

Só não abrirá mão do sapato vermelho cintilante com tirinhas. Naldinho goza só de olhar, e se o Luiz Carneiro de Sá Augusto Campo Mendes não gostar - será que o nome dele é esse mesmo?! - é boiola.

 

Longuette nunca lhe caiu bem, lycra que é o diabo. Lembrou novamente das compras do carrinho dele no supermercado no dia em que o conheceu. Licor de abricó é coisa de viado. Abricó!!! Vai que troca a vogal final?

 

Pegou o telefone e ligou pro Naldão.

 

- Traga a cerva e o violão. Tô só de combinação e com aquele sapato.

 

- E o conde D'Eu?

 

- Era gay, preferiu dar pro Jules Renard.

 

 

Rosa Pena (Rio de Janeiro-RJ). Professora e administradora de empresas. Especialista em recursos audiovisuais e artes cênicas. Trabalhou na Divisão de Multimeios da Educação na Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, com projetos ligados a cinema, teatro, música e literatura. Compulsiva para ler e escrever, considera a Internet a grande biblioteca contemporânea. Tem livros virtuais publicados e dois livros editados no papel: Com licença da palavra, antologia do grupo Pax Poesis Encantada (Editora Scortecci, 2003) e PreTextos, seu livro solo, onde reúne cem crônicas (Editora All Print, 2004). Mais em seu site.

 

 

 

 

teu nojo depois do sexo 
sabrina bandeira lopes

Uma emoção sufocada, dor física, cada um dos problemas respiratórios. Fugi até meu coração depois desses anos e tudo o que você fez foi dizer que se eu for amada isso contraria a sua política de identidade. Talvez nunca consiga me alongar mas um movimento do meu próprio pescoço bem poderia conduzir à morte. Sem digitais. Minhas mãos se tocam, esticam o tendão para que eu possa sentir a dor de sua inflamação perene. A pessoa que eu queria ser não sentiria dor torcendo as mãos. A pessoa que minha mãe planejou não teria cheiro de vagina nos dedos. A pessoa que meu pai quis não teria vestígios de alho e força, só o tempero chamado sal que se lava. Cheiro de vagina nas costas da mão, só com outras: tudo o que se lava. Sozinha, se percebo estar meditando, a percepção me detém.

Ontem ouvi tanto que passaria a noite com ele, aquela noite, mas a literatura não nos sustentou. Caímos de pé, como gatos, dizendo "tudo bem", mas nossos joelhos - não tínhamos nascido para ser tão gordos. Não agüentamos o peso, sabemos que estamos mentindo se nos apoiamos. Eu digo: tenho a mesma tristeza. Você não gosta, queria a exclusividade da dor, você quer ser interessante, você é a pessoa que queria ser? Você é a pessoa que sua mãe queria, mas isso porque ela é maleável, a tudo se adaptou, tudo de mais sujo passou pelo seu corpo - ela nunca te contou, não fez um diário na internet, não mostrou para ninguém o que estava nas suas veias, nem precisou baixar o olhar para se tornar indecifrável. Ninguém quer a água que permanece cristalina no copo, depois de ter lavado nosso corpo. É de mau gosto dizer "uma prisão".

Para eles o mais importante era saber dançar, para ela o mais importante era dançar. Hoje ela te viu saindo das aulas, com seus sapatos de brilhante. De rapaz que sapateia. Você não quis saber o que o silêncio diria. E quer dor única para aumentar teu valor de mercado, apenas. Repete o que leu, eu te envergonharia porque reconheço cada palavra e todas elas estão no meu quarto de criança. A criança morava no seu coração, que dizia: ninguém. Mais ninguém. Um poço para se ocupar de sua obsessão, para esperar o cheiro ruim do alimento escolhido, que criança eu era? Onde está a carta que te dei? Impossivelmente na pasta "poemas". Dizia apenas: não me encontre, vá nesse lugar que combinamos e me trate como a pessoa que eu queria ser. Então você me esticou pelos braços e eu tive força. Disse: não sou bem-resolvida; se fosse, agiria como a pessoa que eu queria ser, então acreditaria estar carregando com a força dos meus braços o peso que você apóia atrás de mim. Precisamos dos outros? Cada dia mais gostoso, você me conta: faz exames semanalmente. Tudo o que acontece dentro do seu corpo é relatado a médicos. Você é bem-resolvido, lida bem com isso. Esqueça uma vez a pessoa que quer ser e cairá doente no meu colo, dizendo: "me toque". Lembro de já ter ouvido a frase e não saberei sorrir. Perguntarei antes se foi por isso meu apetite.

 

Sabrina Bandeira Lopes (1978, Curitiba-PR). Tem publicado textos literários esporadicamente e atualmente escreve uma peça de teatro. Estudou teoria feminista na faculdade de sociologia (UFPR). Vive no Rio de Janeiro.

 

 

desalinho 
siria grei

Quer almoçar comigo amanhã? Preciso contar o que eu sinto quando saio sem você e no que estou pensando quando olho sem piedade para todas as mulheres que cruzam o meu caminho. Entenda, de você eu não espero mais do que estar ao meu lado até o fim. Acordarmos todos os dias juntos. Você ignorar insistentemente as minhas tentativas de arrancar da sua boca qualquer frase que revele a posição que ocupo numa hipotética escala de grandes amores da sua vida. Mas sei que você é incapaz de dedicar seu corpo só a mim.

 

Invejo seu cinismo. O modo prolixo como nega sua dependência e reafirma com a ladainha das seis horas seu credo inabalável no amor livre. Nesta altura da vida o que me faltava eram ideais libertários! Saiba, eu prefiro a caretice das declarações de amor, as mãos dadas, o presente no dia dos namorados.

 

E vou me desculpando pela ingenuidade descrita sem vergonha nesta folha branca, enquanto ouço aquela fita k7 que você gravou pra mim quando ainda não estavam domesticados os gravadores de cd e acabáramos de fazer a primeira comunhão.

 

Foi tão logo você me deixou. Saí procurando o que abraçar. Pensei há quanto tempo eu só sentia o gosto da sua pele e só sabia da textura engraçada do seu cabelo. Meus braços cruzados tinham a forma do seu corpo, nada mais se encaixava. Pensei em todos os xingamentos da língua e queria que estivesse ao meu lado para não precisar recitá-los em voz alta no meio da rua. Eu nunca falei palavrões pra você.

 

Também não conjuguei o verbo amar. Mas isso não demorou você percebeu. Tanto que foi embora. Sei que espera que eu esteja no mesmo lugar, com o mesmo vento sul levantando meu cabelo, quando você chegar. E eu vou estar. A vida foi suspensa quando seu ônibus partiu. Confesso que procurei um lenço para balançar, um chapéu de feltro cinza para acenar, mas você não olhou pela janela. Gosto de imaginar que o ônibus quebrou na estrada e você ainda não chegou ao seu destino. É por isso que demora tanto a voltar.

 

Depois andei a tarde toda pelas ruas asfaltadas do meu bairro juntando galhos secos de árvores escassas. Arranquei duas ou três folhas do mês de dezembro da minha agenda. Pedi emprestado ao porteiro do prédio seu isqueiro bic amarelo. Abri a porta do meu guarda-roupa e escolhi a blusa de malha branca com estampa do Belle and Sebastian. Aquela que você usava para dormir quando já era tarde demais para ir embora. Depois de jogar da varanda as cinzas do que me lembrava você, decidi que era hora de apagar minha memória.

 

 

Siria Grei (na vida real, Vitor Graize) passa seus dias em Vitória. É revisora de qualquer texto que cruze o caminho dos seus olhos e pode ser vista em mais detalhes no blogue Por Meio de Palavras.

 

 

 

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