edição 5 | abril de 2006
uma cor

 

os três azuis franceses 
romina conti

azul-marinho

 

Quase Negro noite além
Perto escaras maresias
Cais, caos, faraós e faróis

 

No Egito um homem
Veste azul-marinho
E enfrenta as estrelas

 

Vasculha o céu deserto
De algum puçá
Que o Escorpião que sou

 

Galáxia impura
Inocula o veneno próprio
Do amor impróprio

 

Pela tempestade
Nas pernas do Oásis
Chovem suicidas

 

"Liberdade, Liberdade
Abre as Asas sobre Nós"

 


 

azul-turqueza

 

Todos são iguais perante a lei
Mas há os mais iguais

 

Há os mais iguais perante deus
Há os mais iguais perante a lei

 

Pior, os mais iguais perante a lei
São tão iguais quanto os iguais perante deus

 

Pelo menos no céu occipital do Ocidente
Onde se arrependendo no fim de Hordelin

 

Rimbaud cuspiu a hóstia sagrada

 


 

azul-final

 

No final todos
Os amigos e os inimigos
Se reúnem num churrasco

 

Comem a carne do Bispo
E as sardinhas

 

No céu os fogos de artifício
Entram pelos orifícios negros

 

E um dia voltam
Caindo na noite de natal
Feito um colírio no plenilúnio

 

Laranja do Pequeno John

 

 

picados e picadeiros 
santa maria

Todo amor é trágico, pensou a Morena Bailarina Gorda que sofria de amor platônico pelo Dono Do Circo Pálido que se encontrava às escondidas com o Rubro Domador Valente que era casado com A Menina que Montava o Elefante Azul que tinha namorado o Adestrador de Poodles Brancos que ainda sonhava com a Vermelha Engolidora de Fogo que nutria certo encanto pelo Loiro Atirador de Facas que trocava confidências e carinhos com sua Assistente de Palco de Maiô Grená que nutria paixão pelo Colorido Palhaço Triste que ainda tentava seduzir a Loira Malabarista Magricela que possuía dois filhos com o Jambo Rapaz da Bilheteria que desde jovem amava a Ruiva Mulher Barbada que sonhava com a Desbotada Cantora Enlutada que suspirava de amores pelo Mágico De Cartola e Capa Cinza que seduzia a Motoqueira do Globo Da Morte de Cabelo Roxo que mantinha um caso com o Anêmico Homem de Duas cabeças que também olhava com interesse para a Bronzeada Mulher Gorila que tinha esperanças de constituir uma família com o Chinês Tratador dos Animais de Uniforme Amarelo que amava escondido a Atriz de Peruca Verde que era doida pela Morena Bailarina Gorda que achava que todo amor era trágico e cuja vida lhe parecia um verdadeiro circo. Negro.

 

 

rue duphot, 8
(uma história com final aparentemente feliz)

silvana guimarães

O piano brilha no palco vazio Os músicos entram O teatro está cheio O homem e a mulher estão sentados na quarta fila central O vestido dela é vermelho Tem um corte do lado até a metade da coxa direita Ela cruza as pernas Uma delas nua se não fosse a meia Eu não devia ter vindo ela pensa Não sem avisar Eu não devia As pessoas em volta conversam O homem aperta a mão da mulher na sua As luzes do teatro piscam Os músicos preludiam O golpe do arco no cello (portato) Entram o maestro e o pianista Vai começar Silêncio O pianista senta-se no seu lugar O maestro anda até a frente do palco e cumprimenta a platéia Seu olhar de sol poente vagueia autômato sobre as pessoas Até tremer na coxa nua dela Até reconhecer os olhos dela Luas cheias Verdes O homem estranha o frio da mão da mulher na sua Eu não devia Escuro Dois focos de luz se cruzam no meio do palco Um no maestro em frente à orquestra Outro no piano Eu não Agora O maestro levantou a batuta

 

 

BACH, Johann Sebastian. Cello Suite No.1 in G, Prélude.

 

 

O homem e a mulher entram no quarto do hotel. Paris é uma festa mesmo no inverno ele diz arrependido. Ela não ouve. A sentença fica boiando no silêncio dos olhos vadios dela. Você está feliz ele pergunta desajeitado. Está gostando da viagem? A gente estava precisando, não? Gostou do concerto? Ela responde você já me traiu? Tira os sapatos o vestido as meias a calcinha os brincos deita-se de sutiã. Você tem cada uma, ele nega. Seu corpo de black tie deitando-se sobre o dela. A bunda do homem mexendo (spiccato). Mexendo. Pra dentro Pra fora Pra dentro Pra fora Pra fora

 

 

CHOPIN, Frédéric François. Prélude, Op. 28, N°.4 in E 'Suffocation'.

 

 

De manhã ela acorda primeiro. Eu sempre quis te amar ela pensa olhando para o homem que dorme. É tarde ela diz empurrando o braço dele adormecido em torno dos seus seios. Bonjour ele suspira enfim feliz. Antes de dormir eu pensei que a gente devia ter um filho. Ela não ouve. Antes de dormir pensou nas mãos do maestro (martelé). Você já me traiu? Ela insiste em saber. O homem tira o resto da roupa que dormiu com ele. Senta-se na cama. Nu e sincero confessa o nome da melhor amiga dela. Confere datas. Conta detalhes. Tenta motivos. Alisa o suor do peito. Procura mais fôlego sob o verde valente dos olhos dela. Paris é uma festa mesmo no inverno ela diz sorrindo. E sente uma saudade esquisita de subir em árvores. O homem sente outra coisa. Um mal-estar súbito. Algo no coração que ele ainda esfrega. Até parar. Até ela se desesperar. O telefone. A mulher liga para a recepção. Mon mari mort ela avisa. Procura o casaco. Encolhe-se dentro dele agachada. Os braços envolvendo os joelhos. Num dos cantos daquele quarto azul. Azul azul azul. Insuportavelmente azul.

 

 

TCHAIKOVSKY, Pyotr Ilich. Concerto for Violin and Orchestra in D, Op.35

 

 

A mulher veio depois do almoço do maestro, eta homem mais fominha e de paladar tão exótico: além de sádico, mistura queijo-de-minas com foie gras e doce de leite, deixa poucas migalhas, tenho que me virar pelo apartamento sombrio. Quando ela chegou, ele já esperava, a porta estava aberta e ele disse "tire o casaco", ela tirou, ficou nuinha em pêlo, pelo jeito, se ele dissesse "voe", ela voaria, mas agora estavam se agarrando, se lambendo, se babando, "onde eu me acabo", ela sussurrou com pressa, ele respondeu "aqui, ó, aqui". Eu nem vi o ó, com essa fome danada, aproveitei o ensejo, corri pra dispensa, que é onde ele foi me achar, atrás de uma garrafa de vinho, azar o nosso, meu e da garrafa, que ele carregou. Ela, debaixo do braço direito, eu, suspendido pelo rabo preso na sua mão esquerda, meus olhos se arregalando dentro dos olhos dele, encarei, ele riu da minha valentia ou da sua boa idéia, vai saber que idéias agiam naquela cabeça, talvez me fazer de spalla e de bobo, e saiu andando, me balançando no ar. Entramos os três, o maestro, a garrafa e eu, no quarto onde havia uma cama de casal e, amarrada nela, peladinha da silva, a mulher, um frágil X vendado. Só deu tempo de eu ouvir a voz dele, grossa, rouca, perguntar afirmando "você me ama", levar o susto e escutar o "sim" fraquinho dela, já caído naquele corpo, tontos, o corpo e eu. E notar que melhor sorte nessa hora teve a garrafa de vinho, que ele abriu com método e implicância, sentado numa cadeira ao lado, demorando a derramar um bocado no copo em cima do criado-mudo, eu disfarçando pela pele dela afora, galgando seus cumes, melando todo nas suas águas, roçando-me nas suas marcas rosadas, tateando seus calafrios, trançando nas suas veias azuis, onde girava um mundo de vontades e medos. Pensando por que não nasci gato, os gatos usam a cauda para se equilibrar, os gatos usam 32 músculos para controlar as orelhas, os gatos conseguem ouvir as suas presas rodando as orelhas independentemente uma da outra, há mais gatos em Londres do que pessoas na Noruega. O maestro, decerto, pouco se importava com meu modo de pensar, pelo seu sorrizinho sarcástico devia estar pensando na piada que pergunta qual é a diferença entre Deus e um maestro e responde que deus sabe que não é um Maestro. De repente ele se levantou, me deixando ver, num relance, seu facho aceso e torto. E partiu pra ignorância, acertando um sustenido de direita no pé da minha orelha, que saiu comigo tropicando pelo quarto, eu disposto a voltar pra dispensa, apesar da bambeza, arriscando uma olhada a tempo apenas de perceber o corpo dele desabando sobre o X, um Y violento que invadia a mulher, os gemidos dela, a bunda do maestro mexendo (staccato spiccato), mexendo, pra dentro, pra fora, pra dentro, pra fora, pro fundo.

 

Tem três dias que eles estão nessa função.

 

 

COPLAND, Aaron. Fanfare for the Common Man, for brass orchestra & percussions.

 

 

Tudo azul?

Era assim que uma vizinha de infância me perguntava se estava tudo bem. Ela me deixava irritada. Como a outra, gorducha e ofegante, que sempre respondia com bolinhas cor-de-rosa e sorria, piscando um olho só, cúmplice, que antipatia. Como mamãe, que passou a vida tentando me convencer da beleza que há no azul, sobretudo, naqueles vestidos de organdi suíço que ela mandava bordar para me amordaçar, singelas camisas-de-força. Não adiantava nada papai (staccato volante) invocar a santa paciência (dela) e o direito da menina (eu) ter gosto próprio: cresci com pouca cor, quase nenhuma coragem. O que seria dos olhos, se todos gostassem da remela? E do branco, se todos preferissem o negro? Cansei de ouvir ele dizer. Não adiantou nada. Fui domada pelo azul.

Tudo azul?

Agora sim. Ele morreu. O homem que nasceu para ser o senhor do meu destino, cercar-me de luxos e ouro, até um anel de diamante naturalmente azul e adequado a poucas mulheres no mundo, vida boa, sexo regular e sagrado nos dias ímpares, discreta intimidade com o poder, tráfego folgado no jet set e na espetacular residência com meia dúzia de salas, quartos, banheiros, piscina, sauna, ampla área de lazer e vista definitiva para a solidão. Mamãe nunca errava.

(Nada mais azul que a ausência de significado, o desamparo, o aniquilamento, o desespero. Tudo azul da cor do céu que nos desabriga, da cor do mar que nos afoga. Lindo na poesia e nos jeans. Perfeito nas receitas dos remédios suicidas.)

Precisava sair daquele quarto. Sair no rumo do meu desvario.

Mas havia a porta giratória do hotel.

 

 

MOZART, Wolfgang Amadeus. Marche Funebre del Signor Maestro Contrapunto.

 

 

Portas giratórias, daquelas cheias de vidros dividindo as partes, sempre me confundiram. Eu nunca sei se elas me levam ou me trazem. Sou capaz de gastar um tempo sem fim rodando no seu interior, a direção perdida, ou quase. A porta daquele hotel me trouxe de volta ao quarto (ricochet). Fiquei ali zanzando por um tempo, a memória vindo à tona. Ao telefone, primeiro pedi urgência com aquele corpo que eu não queria mais. Morto ele não valia nada, era só mais um traste, a bagagem inútil que se perde com prazer em qualquer aeroporto (deixaria a outra bagagem também, não seria difícil viver sem o seu peso). Depois liguei para um número há anos guardado na ponta da língua. O maestro. O arrepio gelado entre o umbigo e o coração.

Você me ama?

Muito.

Eu vou.

Minha liberdade é vermelha, descobri em seguida. Como o começo de todas as auroras. E saí nua se não fosse o casaco, cega, ao seu encalço. Com a mesma certeza que tem o chicote no ar. Antes de açoitar.

 

 

BEETHOVEN, Ludwig van. Violin Sonata No.5 in F, Op.24 'Spring', Allegro.

 

 

mulher vestida de vermelho 
tereza yamashita

1. Medo - sentimento de grande inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça, susto, pavor, temor, terror ou receio. 

Medo: de baratas, de ratazanas, de formigas, de cobras, de aranhas, de tubarões, de abelhas, de homens, de crianças, de doenças, da vida, de histórias, de fantasmas, da velhice, do diabo, da rua, da gordura, de altura, de lugares fechados, de dirigir, de galinha, de pagar mico, de falar em público, de errar, de acertar, de gato, de cachorro, de água, de mar, de rio, de escuridão, de transar, de pinto, de falhar, de amar, da crítica, do elogio, da flacidez, da solidão, do marido, da esposa, da sogra, da morte, de cirurgia, de injeção, de estupro, da aids, de sonhar, de acordar, de ser louco, de psiquiatra, de ladrão, do menino de rua, de avião, de navio, de guerra, de ódio, de bombas, de terremoto, de elevador, de gays, da crueldade, da vingança, do divórcio, da traição, da mentira, de Deus, do pecado, do álcool, do fumo, das drogas, da pedofilia, das bruxas, do nazismo, da ditadura, de dinossauro, da ignorância, da feiúra, das rugas, do dentista, do barulho, da pobreza, do dinheiro, do pai, da ilegitimidade, do roubo, da matança, da dor, do amigo, de confiar, da masturbação, do prazer.

 

 

Tenho medo de mulheres vestidas de vermelho. Engraçado? Ontem descobri que não estou sozinho. Conheci acidentalmente outra pessoa que também morre de medo delas.

 

Mulher é um bicho esquisito, todo mês sangra. Se mata por um filho e mata por um amor. Sabe ser dócil e perversa ao mesmo tempo. Sabe ser puta e ao mesmo tempo divina. Fala pelos cotovelos e diz muito mais com o olhar. Ser ignorado por uma mulher é pior que adoecer. Ela come o teu fígado, tua genitália, se você a trair.

 

Gosto estético? Tenho arrepios só de pensar em me defrontar com um ser desses: uma mulher vestida de vermelho. Medo. Como explicar?

 

 

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