edição 53 | abril de 2018

assassinato | circo | ontem

 

 

 

fotograma

jane sprenger bodnar

 

 

ontem estivemos aqui colhendo flores.

é uma pena, uma pena apaixonar e ficar com o amor. só.

penas são folhas de pessegueiro atadas ao vento

e quase tão amargas quanto as de damasco

em manhã cinza de sexta-feira.

abismo para o verão, cartas podem ser sóis pastéis

em papel de seda azul: compressas em dores subterrâneas.

 

 

 

 

10 poemas

líria porto

 

 

execução

 

 

a mão do juiz é a mão do algoz

que puxa o gatilho

 

 

 

 

relâmpagos de uma noite atormentada

 

 

terremoto

maremoto

motosserra

motoboy

mato contínuo

com enxada

faca

ou machado

:

eu mato o tempo

 

 

 

 

o crime

 

 

cadê o rio que tava aqui? a samarco bebeu

cadê a samarco? foi pro mato

cadê o mato? a samarco comeu

cadê a samarco? foi ao povoado

cadê o povoado? a samarco engoliu

cadê a samarco? foi matar peixe

cadê o peixe? a samarco matou

cadê a samarco? tá na lama

cadê a lama?

:

tá por aí

por aí

por aí

 

 

 

 

marielle

 

 

morreu duplamente

(tiro e calúnia)

e haverá outras mortes

se não se punir

os assassinos

 

(muita gente na mira

muitos combatentes)

 

 

 

 

picadeiro

 

 

ando em círculo

e ao fechar-se o cerco

desse minicirco

sou palhaço e mágico

:

eu sou brasileiro

e desequilibro

sangro e sobrevivo

na própria desgraça

 

 

 

 

chamariz

 

 

o riso do palhaço

é por um triz

 

 

 

 

esquecimentos

 

 

de dentro das entranhas

direto pro cemitério

aborto sonhos

e planos

:

embora no inconsciente

tudo isso me apavora

preciso análise urgente

se não agora

pra ontem

 

 

 

 

orvalho

 

 

quem secou o céu de ontem

não tinha pano nem rodo

 

 

 

 

maríntimo

 

 

desde ontem

uma onda rebenta em meu peito

traz à tona o que vem lá de dentro

e me tinge de urgências

 

desde sempre

 

 

 

 

noturno em dó menor

 

 

mulheres oblíquas

pestanas postiças

perfume da véspera

 

 

©diane arbus

 

 

o sétimo dia

mariza lourenço

 

 

"Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse" (Isaías 58:13-14).

 

o simpático casal de professores aposentados, Durval e Marcelina, não queria saber de outra vida senão a de promover almoços familiares aos sábados. reuniam filhos, filhas, genros, noras e netos ao redor da enorme mesa de jantar, feita de madeira boa, resistente ao tempo e aos costumeiros acidentes domésticos. verdadeiras festas que começavam às sextas com a ida ao supermercado, à peixaria e à feira. Marcelina cozinhava muito bem e sabia, como sabia, alegrar olhos e estômagos.

 

foi num desses sábados que todos estranharam o jeito de Durval. contador de histórias, falante até não poder mais, ele espetou o garfo num pedaço de carne e apontou para o céu, sem dar um pio, com os olhos postos sabe-se lá onde, perdidos num ponto qualquer do teto. o diagnóstico não demorou, tampouco as desculpas: "sabe como é, mamãe, as crianças ficam assustadas, não querem ver o avô dessa forma".

 

Marcelina acostumou-se, primeiro à ausência dos netos, depois à dos filhos, um a um. insuportável mesmo era a falta que lhe fazia o Durval de sempre. agora, um fio de nada grudado à cama. Durval morreu tranquilamente, ao lado de Marcelina, às onze horas de um lindo sábado de sol. filhos, filhas, noras, genros e netos se descabelaram de tanto choro durante o velório e enterro. "papai, você era tão bom, papai". carpideiras, diga-se, não se desincumbiriam tão bem da nobre missão, ainda que remunerada, de chorar um defunto.

 

a simpática aposentada — e viúva — Marcelina, não chorou, mas certas perguntas não paravam de lhe martelar a cabeça: como pude colocar no mundo esse mundo de gente horrorosa? será que o diabo ama seus filhos? por que Deus inventou o ódio? acabou convencendo-se de que não havia resposta, porque não havia resposta possível que pudesse justificar o abandono, a ausência, a falta de afeto. coisas, claro que, de tão terrenas, sempre acabam por surpreender a Deus, o Diabo ou qualquer outro nome que se queira atribuir àquilo que não esteja ao alcance de nossa mísera compreensão.

 

dois meses após o passamento de Durval, Marcelina convidou filhos, filhas, noras, genros e netos para o almoço de sábado. "como nos tempos em que seu pai estava vivo e bem", disse. "mas, mamãe, sem papai?". por fim, aceitaram, constrangidos, é bem verdade, afinal, cada um sabia de sua falta. chegaram a tempo de apreciar a mesa bem posta, a louça brilhando, o aroma espetacular da mistura de ervas e carnes, do doce de abóbora borbulhando no tacho de cobre.

 

os corpos foram encontrados no domingo, ao redor da mesa. Marcelina, no andar superior da casa, em seu quarto, descansava abraçada ao travesseiro do marido: como nos tempos Dele.

 

 

 

 

3 poemas

norma de souza lopes

 

 

continuum

 

 

uma mulher ergue um cartaz que diz: inocente

rastros de dor para ignorar

infidelidade & gravata & asfixia & alienação parental

e um séquito de atropeladas em silêncio

(talvez um assassinato de mulher possa a convencer)

 

no dia 22 de novembro saí de casa e nunca mais voltei

o desamor  nunca deveria ser mais intenso que isso

 

 

 

 

o diminutivo do seu nome

 

 

ontem observei que o diminutivo do seu nome

significa espreita, alvo, desejo

e é divertido como essas palavras dizem de você

porque, como a serpente do poema do igor

estankona, me espreita de maneira que não

se possa preparar a defesa, ou seja

até que eu esteja submissa

 

o fato de eu ir e voltar

não tem nada a ver com jogo

mas sim com um esforço de desfrutar

da fantasia sem enlouquecer

e só quem me conhece pode

saber como é grande coisa

não enlouquecer

 

escolhi você como alvo

por causa dessa sombra intangível

que vejo em seus olhos e a impossibilidade

me faz cada vez mais achar que estou certa

porque com você tudo parece dar errado

o que, em minha lógica interna é

uma bela maneira de acertar

 

que o diminutivo de seu nome também

signifique desejo não é nada estranho

pois você carrega essa voracidade

indisfarçável dos homens que não se

constrangem em desejar o sexo em

sua forma mais primitiva e ávida

 

os ponteiros da minha bússola

feminista se arrepiam porque

não me parece certo que

uma mulher esteja assim

tão entregue às lascívias masculinas

mas reconheço que seu desejo

desperta minha própria sofreguidão

 

escolhi não perder muito tempo

com seus silêncios porque

tenho meu próprio tempo perdido

para recuperar e a felicidade

não é uma coisa que se

construa da noite para o dia

 

não estou dizendo com isso

que renuncio a essa invenção de

você que criei, não é isso

respeito essa imagem como a um poema

e vou cultivá-la enquanto ela

for capaz de me acrescentar vida

 

na savana que vivemos sou a gazela

e também o tigre e sinto de longe o cheiro

do seu medo, menino índigo

entendo porque não queira lutar

fazer parte dessa geração tão

promissora que não chegou a

acontecer planta em nós fastio e tédio

com as ciladas do sucesso e da adaptação

 

quem disse que não se ganha nada com a paixão?

você já me deu quase uma dúzia de poemas

 

 

 

 

respeitável público

 

 

a malabarista

conta e costura

os rasgos da lona

e teme o dia que eles

vão parar de vir

ignora o risco

do trapézio sem rede

alisa a lantejoula solta

os paetês foscos do maiô

mira a tinta descascada do picadeiro

o mês inteiro o mesmo show

(eles vão parar de vir)

ouve o rugido em câmera

lenta dos animais

velhos e sem pelos

dias gloriosos de casa cheia

& barriga cheia se foram

nem em sonho imaginava

que fosse cair

 

 

©diane arbus

 

 

 
 
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