edição 53 | abril de 2018

assassinato | circo | ontem

 

 

 

3 poemas

assionara souza

 

 

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As ruas, seus espasmos de luz em meio às sombras

Tatuagens sutis de conversas e risos

Duas realidades dispersas

Não sei se foi pra ti que confessei

Minha compaixão por Caim

Sua humanidade diante do fracasso em agradar Deus

E o peso das últimas consequências

Vejo você negociar com o destino

"Esperava mais. Não consigo sentir o suficiente.

Faça-me sentir o suficiente até adormecer e sonhar"

Estou dentro do barco e ele desliza em meio a águas confusas

Caim amou sem precedentes

Sua cegueira não lhe dava acesso à lucidez

Somente olhos para Deus

Todo ouvidos e pés correndo para junto de seu amado

O que não conseguimos tocar está prenhe de símbolo

A poesia oscilando entre sono e vigília

Por nada saber, revisar o vivido feito cego tateando o ar

Louco por converter perfume em substância

Coisa tangível ao tato e paladar

A árvore frondosa de Baudelaire

Com suas raízes e galhos violentos furando o chão e rasgando o ar

Enquanto nos vê passar

 

 

 

 

~

 

 

É tarde de segunda-feira

As palavras dançam em mil vozes

Não pode evitá-las

Quer apenas dormir e deixar o corpo esquecer

Ontem de madrugada

Chegando da festa

(Sempre depois da festa os desastres

— Como se um deus não perdoasse

O cansaço de nossa alegria)

A mão segura o calcanhar

Esquerdo e, antes que o sapato escape,

Um telefone grita

Ninguém será jamais uma ilha

Do outro lado da linha,

O gemido ensaia a frase de socorro

Recompor-se, esquecer a entrega

Do corpo ao prazer vivido na festa

O amor nos impele a obrigações vastíssimas

— Sim! Já estamos indo! Fica calmo.

Procura não se mexer...

A cidade respira uma camada tímida de brisa

Os homens mergulham

Em alienações produtivas

Quem flagra sua maquiagem gasta

E o cabelo desarrumado

Não acerta uma pista do enredo dessa trama

Então ela providencia tudo

Para que fiquem bem, para que estejam bem

Nada mais do que a impossível obrigação

Agora, na tarde densa de insônia

Conduz seu fantasma ao espelho

Mira-se longo e compreensivo

Como se arrancasse o coração

Com o machado do "sim"

 

 

 

recado

 

 

Preciso que você veja

Entre as coisas esquecidas

A louça suja na pia

O mofo pousando cruel na doçura das frutas

Observe, por favor, se não deixei

Naquele canto do quarto

Por onde os insetos entram

Na ferrugem do ferrolho da janela da cozinha

Essa que sempre te acorda

Quando eu insisto em abrir

Assim que o sol se ajeita melhor no céu

Procure na caixa de areia dos gatos

Entre os pelos dos bichanos onde correm as pulgas que não matei

No desgaste da bicicleta largada no jardim

Talvez no banco de trás do carro que estraga estraga e você conserta

Olhe também embaixo das espreguiçadeiras

Na água amarga do jarro de flores que você esquece de trocar

Na ansiedade que antecede a raiva, quando a moça do telemarketing

Não atende, não atende, não atende

Sua solicitação

Entre os livros da estante, tantos não lidos —

Em eterno estado de espera e culpa burguesa

Nas mil declarações de amor que lhe chegam in box

Vigie se por ali, no cheiro do café

No pão cortado, os farelos sobre a mesa

No silêncio entre as notas de sua música preferida

Dá uma olhada se não larguei por esses cantos

Os sete pedaços do meu coração

 

 

©diane arbus

 

 

cara de palhaço

carla luma

 

 

Acredita-se que Paula desapareceu no domingo. Na segunda-feira não apareceu para trabalhar às 7h45, como rotineiramente. Débora, a garota que no escritório ocupa a mesa vizinha, disse no inquérito policial que estranhou o atraso, mas que não pensou em telefonar para a colega. "Eu tinha muita coisa pra fazer, segunda-feira é sempre o pior dia da semana".

Marco Aurélio, o chefe, chegou às 9 horas e, informado da ausência, mandou que alguém do departamento de pessoal ligasse para saber se Paula estava doente. O telefone celular aparentemente estava desligado ou fora de área. O fixo não atendeu. Ninguém da firma sabia se ela tinha parentes morando em São Paulo. Alguém se lembrou de procurar um perfil nas redes sociais. Acharam uma página aparentemente abandonada, com poucas informações, alguns contatos masculinos, e muitas fotos da moça, sempre em frente a pontos turísticos: a Torre Eiffel em Paris, a Fontana di Trevi em Roma, a Magere Brug em Amsterdã...

Paula foi o assunto principal no intervalo para o almoço e os colegas se deram conta de que quase nada sabiam a respeito dela. Sabiam que ela gostava de viajar e ela não escondia de ninguém que uma parte substancial do salário mensal se destinava a pagar antecipadamente as prestações da viagem que faria nas próximas férias. Viajar era o único assunto que a animava a conversar. Nessas ocasiões falava pelos cotovelos sobre as cidades que visitou e sobre as que pretendia visitar no futuro. Frequentava um curso de inglês três vezes por semana, após o expediente, em um estabelecimento próximo ao escritório, porque já tinha passado apertos no exterior por não dominar nenhum outro idioma além do nosso. Fátima, uma das colegas, contou que certa vez ela disse que fugiu com um circo quando era adolescente porque achava que era uma boa maneira de viajar, de conhecer o mundo. Em poucos dias foi resgatada pelo pai.

No meio da tarde, Marco Aurélio telefonou para a delegacia. O policial que atendeu informou que é praxe só considerar uma pessoa como desaparecida após dois dias de sumiço, mas recomendou que alguém da firma fosse ao prédio de Paula. Marco Aurélio foi pessoalmente. Aparentemente, o apartamento estava vazio. O porteiro disse que pega no serviço às 8 da manhã e que é substituído, por volta das 18, pelo porteiro noturno. Por isso, justificou, que só vê a moradora do 308 nos fins de semana, mas que não a viu nem no sábado nem no domingo. Talvez o porteiro da noite soubesse de algo, mas teriam que esperar, a não ser que chamassem um chaveiro para abrir a porta. Considerando a hipótese de Paula precisar de socorro, Marco Aurélio aceitou a ideia. O chaveiro concordou com o serviço, mas exigiu que, para testemunhar, se chamasse um vizinho. O casal de aposentados que mora no 306 aceitou participar da invasão do domicílio. O apartamento estava vazio e arrumado. Fecharam a porta. Marco Aurélio voltou a ligar para a delegacia para relatar o ocorrido. O policial passou a ligação para o delegado, que pediu para ser avisado na manhã de quarta-feira, caso a moça continuasse desaparecida.

Na quarta-feira, Marco Aurélio foi à delegacia registrar o desaparecimento da funcionária. O delegado prometeu designar imediatamente um investigador para o caso, mas disse que não podia prometer urgência porque a única viatura estava precisando de pneus e não havia verba para combustível. Marco Aurélio entendeu a deixa e preencheu um cheque de cinco mil reais, nominal a si mesmo, e endossado para que o valor pudesse ser sacado em dinheiro sem comprometer a autoridade policial.

Na quinta-feira, as páginas policiais dos jornais divulgaram a notícia do desaparecimento com uma foto de Paula na frente da famosa pirâmide do Louvre. Em consequência, o Disque-Denúncia recebeu milhares de telefonemas anônimos. Cruzando as informações, Jorge Luiz, o investigador, concluiu que Paula tinha o dom da ubiquidade. Um dos colegas de Paula postou no Twitter que ela tinha fugido com o circo para fugir da Operação Lava-Jato. A brincadeira viralizou na internet e logo surgiram memes, alguns engraçados, outros de cunho político, sugerindo que o sumiço da moça era uma queima de arquivo porque ela teria informações que poderiam comprometer alguns figurões da política.

Na sexta-feira, como não havia nenhuma informação cuja fonte tenha se revelado e as informações anônimas mais confundiam do que aclaravam, Jorge Luiz decidiu tirar a bunda da cadeira para interrogar os empregados e moradores do prédio onde Paula morava, além do pessoal do escritório onde ela trabalhava. Mas adiou para segunda-feira o início das diligências. Dedicou o resto do dia a pesquisar, nos sistemas de informações governamentais a que tinha acesso e na internet, se havia algum dado relevante sobre a moça. No necrotério, não havia nenhum cadáver sem identificação com as características físicas de Paula. Nenhum hospital havia reportado a entrada de uma moça não identificada. O colega que tuitou a fuga de Paula com o circo foi chamado à delegacia e explicou que foi uma brincadeira, com base no que ouvira de Fátima. Não esperava que a brincadeira tomasse a proporção que tomou porque não imaginava que alguém pudesse acreditar em tamanha bobagem.

Na segunda-feira, Jorge Luiz foi ao escritório, fez perguntas a Marco Aurélio e aos demais colegas de Paula, mas, a acreditar nos depoimentos, Paula era uma pessoa profundamente introvertida e ele não viu nada nas poucas informações colhidas que indicasse uma solução para o caso. O melhor que conseguiu foi que o departamento de pessoal fornecesse cópia de uma ficha de pedido de emprego preenchida de próprio punho, cópia do RG e cópia do CPF. Voltou para a delegacia e despachou um oficio para a polícia de Itabirito, em Minas Gerais, cidade natal de Paula, relatando o desaparecimento e solicitando informações sobre a moça e sua família.

Na terça-feira, o investigador foi ao prédio. Os vizinhos sabiam menos da moça do que os colegas de escritório. Era como se não morasse ninguém no 308, disse um deles. O porteiro da noite lembra-se de ter visto Paula chegando ao prédio por volta das 21 horas da noite de sábado. No domingo não foi vista.

Driblando a necessidade de uma autorização judicial para abrir o apartamento, Jorge Luiz recorreu ao chaveiro e vasculhou o imóvel, que achou estranhamente bem arrumado, como se jamais tivesse sido usado e que uma mão invisível mantivesse permanente e imaculadamente limpo. O pequeno apartamento é composto de um quarto, sala, cozinha e banheiro.

Não havia resto de comida preparada na geladeira. Havia alguns ovos, uma caixa de leite longa vida ainda lacrada, metade de uma garrafa de refrigerante, uma garrafa com água, metade de um pacote de pão de sanduíche, uma barra de queijo parcialmente consumida, nada mais. Típico de quem se alimenta fora de casa rotineiramente, foi o que pensou.

Na sala, quatro cadeiras ao redor de uma mesa coberta com uma toalha de plástico quadriculada em cujo centro repousava um jarro com plantas artificiais, um sofá de dois lugares e, na frente dele, um móvel com três gavetas com um aparelho de televisão em cima. As duas gavetas de baixo eram usadas para guardar toalhas de mesa, guardanapos, talheres e pequenos objetos de uso doméstico. A gaveta de cima era usada para guardar panfletos sobre viagens, mapas de cidades e duas dezenas de alentados guias dos destinos turísticos mais visitados do mundo. O investigador encontrou também recortes de um jornal de Itabirito, guardados em um saco plástico, relatando primeiro o desaparecimento de uma pré-adolescente, identificada pelas iniciais PNC, depois o seu resgate em um circo. Na ocasião o palhaço que era o dono do circo foi acusado de sequestro, mas o próprio pai da garota comunicou às autoridades que ela seguiu o circo por vontade própria e teria dito que não tinha família, que era sozinha no mundo, confirmando assim as alegações de inocência do palhaço.

Não encontrando pista que norteasse as investigações, Jorge Luiz disse ao delegado que não tinha como prosseguir: é mais fácil encontrar agulha em palheiro, foram as palavras que usou. E acrescentou: "Essa história de circo é uma piada, mas mesmo que não fosse, a moça é de maior e, pelo que sabemos, não cometeu nenhum crime. Isso não é um assunto de policia". O delegado telefonou para Marco Aurélio para informar que se tratava de um caso difícil que estavam em um beco sem saída e pediu a Marco Aurélio que avisasse caso a moça aparecesse ou se houvesse alguma novidade que pudesse colaborar para a reabertura da investigação.

O caso estava fadado a integrar as estatísticas dos desaparecimentos não solucionados quando chegou a resposta do oficio enviado a Itabirito informando que, coincidentemente ou não, a família de Paula que ainda morava naquela cidade mineira, família que se resumia à mãe e uma irmã, também estava desaparecida e que o desaparecimento teria ocorrido presumivelmente no mesmo dia do desaparecimento da moça. Os vizinhos informaram que o pai de Paula era funcionário da Petrobras e que morava em uma cidade da África, motivo pelo qual o delegado de Itabirito havia remetido o oficio com cópia para a força tarefa da lava-jato no Paraná.

"Não tenho provas, mas estou convicto de que o desaparecimento concomitante da família está ligado à corrupção e lavagem de dinheiro", dizia o oficio. Macaco velho não mete a mão em cumbuca, disse o investigador Jorge Luiz recomendando ao delegado que fizesse o mesmo que o delegado mineiro. Foi assim que o procurador chefe da força tarefa da lava-jato recebeu ofícios de delegacias de dois estados e instaurou um procedimento investigatório ainda em andamento.

 

 

 

 

2 poemas

daniela delias

 

 

bala

 

 

não quero mais

que a face escura da palavra

sua língua ardilosa e torpe

subindo a escada de incêndio

girando o trinco da porta

tocando o vazio da pele

que não está

 

depois,

 

sua hora de névoa e sono

sua carne amorosa e lenta

deitada num banco de parque

rindo da pressa dos homens

ouvindo o estrondo da bala

que arranha aferra explode

e nunca entrará

 

 

 

 

o invisível

 

 

era um tempo

de desaparecimentos

 

entre meus olhos e os teus

o devir de um corpo negro

no colapso de uma estrela

 

só depois saberíamos

que as coisas mais belas

permanecem invisíveis

 

não havia, ainda,

o coração.

 

 

©diane arbus

 

 

 
 
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