na boca da memória
priscila merizzio
Maria me criou saboreando polenta no tacho mexida com colher de pau no fogão a lenha; pinhão estalado na chapa e depois aberto a pedradas na calçada; quirera com carne de porco e salada de folhas com vinagre de vinho; doses de cachaça quando a melancia dava dor de barriga; mate com leite fervido no açúcar com canela; para dormir, chá de capim-limão colhido na hora, melissa e folha de maracujá — as bolachas de polvilho e os sequilhos eram guardados em latas redondas nos armários sobre a pia da cozinha —; catando butiás das duas árvores do quintal, colocando seus coquinhos para secar ao sol, depois quebrando-os como minúsculos caracóis. Com ela, aprendi a matar galinhas, naquela época, sem sentimento de culpa: nós a deixávamos de ponta cabeça, pendurada pelos pés, degoladas, com o sangue escorrendo na bacia, então fervíamos o corpo para soltar as penas; cozinhávamos canjas com os miúdos. A predileção de Maria era lambiscar os pés cozidos da ave, sugando suas unhas, mordiscando a carninha dura.
Quando algum parente vinha pousar em sua casa, ela forrava a geladeira com as comidas prediletas da visita. Nata fresca, coalhada, creme de leite caseiro, sagu de vinho branco, canjicas e marmeladas com leite de vaca. A louça da mesa era descombinada quando havia mais convivas que o normal e sob a toalha de renda e os jogos americanos bordados por Julia, sua filha mais velha, havia sempre uma modesta toalha de plástico. Na infância, para decorar o centro da mesa, cabia-me sempre a função de colher folhagens do jardim, rosas amarelas, beijinhos, flores das varas de marmelo — tantas vezes fui lanhada nas canelas e nas costas por ser uma menina enxerida e respondona. No verão, Maria, suas comadres, as parentas e eu íamos nos refrescar com os pés no chão no piso gelado e cor de ocre da área de sua casa. Entre mil folhas de samambaias, puxávamos as cadeiras e banquinhos feitos de palha para chupar picolés coloridos ou sorvetes que eu comprava a quilo na sorveteria do bairro. Em tardes normais, comíamos pipocas doces ou bolinhos de chuvas com chimarrão pelando a língua; havia sopa de biju com ovos e muito cheiro verde ou o biju preparado como cereal — ela sabia exatamente como fazê-lo do jeito que eu gostava: uma papa enjoativa de tão doce. Geralmente, tinha leite condensado e caixa de bombons para comer enquanto assistíamos juntas à novela antes de dormir. Quando sentíamos fome fora de hora ela sugeria que fritássemos ovos caipiras. Perguntava sempre se eu os queria com a gema mole ou a gema dura. O vinho tinto era muito doce e encomendado com o padre Viturino; o macarrão caseiro era feito pela vizinha, dona Ana, e Maria gostava de servi-lo ao molho de sardinhas e cebolas. À noite, o queijo endurecido na pequena geladeira era ralado sobre a sopa de agnolini caseiro.
Lembro-me de haver dezenas de cabeças de alho e de cebolas nas comidas, cortados com a faquinha favorita de Maria, que ela amolava semanalmente junto com todas os outros talheres da cozinha. Também, assistindo à televisão, descascávamos laranjas doces colhidas do pomar em vasilhas de alumínio: ela estirada no sofá de couro com o rosário nas mãos e eu sentada na poltrona mais próxima. Normalmente, havia sobre a mesa uma fruteira carregada de frutas e cachos com bananas bem maduras, pois ela gostava de comê-las mornas e moles; uma despensa cheia de compotas de chimias feitas com melado (abóbora com cravo, abacaxi, morango, figo, maçã, goiaba). Ainda na despensa, salames secando, pilhas de queijos, farináceos diversos, conservas de cebolas roxas e pequenas iscas nas ratoeiras, para pegar os ratinhos ladrões — ela não punha veneno ou cerdas mortais na ratoeira, pois não queria matá-los, apenas tirá-los e jogá-los longe, de modo que a caça aos ratos seguia perpetuamente em virtude do bom coração de Maria. Acredito que, no fundo, ela ansiava que os ratinhos corressem para a casa de vizinhos menos cândidos. Acontece que os animais se comunicam entre si.
Para as jogatinas de tranca, crôstolis com açúcar e canela e ela reclamando "cruzes do céu" a cada vez que eu ou minha mãe batíamos e gritávamos que era nossa vez de pegar o morto — nós duas o pegávamos com grande alarido e dávamos a deixa para Maria clamar as cruzes celestes e nós três ríamos como bobas dessa cena teatral bem decorada — ela fazia a cena da católica estupefata, e nós, das fanfarronas. O fogão a lenha era aceso no inverno com as toras de madeira que ela cortava com o machado e armazenava no caixote de madeiras próximo à ventarola da cozinha, onde, aos três anos, me colocou dependurada para ver um eclipse lunar. As janelas do casebre eram protegidas com telas verdes para amenizar o calor das noites quentes, driblar os pernilongos e permitir a célebre entrada da claridade das estrelas e da lua. Quando eu era atacada pelos insetos, ela vinha atrás de mim com o preparado natural de folha de bananeira, álcool e outras ervas, que acabavam com a coceira e não deixavam criar tanto caroço, por eu ser alérgica. Certa vez, tive queimaduras tomando sol no clube e ela besuntou a pele do meu corpo com creme de coco, leite, babosa e outras especiarias e me embrulhou em folhas de bananeira. Ordenou que eu dormisse daquela forma, para apressar a cicatrização. Maria conhecia pequenas simpatias e receitas caseiras para curar as moléstias do dia a dia. Era uma rezadeira fervorosa e quase imbatível. Fui criada também com as roupas lavadas por sabão artesanal, feito por ela. Rezando terços e novenas diante de velas também feitas por ela — as velas eram moldadas em tubos de encanamento, que Guilherme, o primogênito, providenciava, e o sabão era batido em velhos baldes de misturar cimento de construção. Cresci na presença de muitos santos e no espírito de respeito e afeto pela natureza. Transitavam pela casa de Maria muitos mendigos, que almoçavam em sua louça. Os gatos de rua sorviam leite embebido em pão nos pires do enxoval de seu casamento com Jango, embora tenha me contado que a grande paixão de sua vida se chamava Bernardo. Por acaso, o nome do primeiro rapaz por quem fui apaixonada. Descobri sua história de amor pelos seus olhos espantados, ao saber que a caçula de sua temporã andava sonhadora e desabrochando por um moço com o mesmo de seu bem-querer.
Sua casa era antiga, de madeira, simples, e ela recomendava que não tomássemos banho enquanto estivesse relampeando e, também, que não dormíssemos em roupas de cama "xujas".Ordenava que eu não a judiasse voltando tarde das festas, pois tinha cuidado e ciúme de mim. Dizia com um sorriso tímido: "tenho ciúme que alguma coisa de ruim aconteça com você". Todas as manhãs, antes de eu ir para a escola, o café estava servido na mesa, o pão caseiro quentinho com manteiga macia, que ela deixava amolecendo durante a noite. E as chimias transcendentais. Nos dias de chuva, pedia para que nosso vizinho taxista me levasse à aula e colocava em minha pasta uma maçã enrolada em um guardanapo de papel. No inverno, forrava meu velho par de All Star com o jornal da igreja. Acordava-me de madrugada quando eu precisava ir às consultas no postinho do bairro. Eu sentia todo o seu amor, e ele me servia de escudo contra bullying que eu sofria. Por amor, havia me autorizado a comprar guloseimas na mercearia e pendurar na conta — e eu comprava cigarros pensando ser escondido. Ela, em seu imenso carinho, sabia que eu, tão menina, já fumava e me aventurava na companhia de outros adolescentes réprobos. E se contorcia de desgosto por isso. Meu nome foi murmurado com pesar e preocupação durante muitos anos, nos confessionários, santuários e genuflexórios.
Ela levantava bem cedo, antes de o sol nascer. Ligava o rádio, acendia o fogo, preparava o mate, passava o café, esquentava o leite. Gostava da solidão, de falar ao telefone e de escrever cartas aos santos, filhos e parentes distantes. Ia à missa todas as tardes com suas amigas, outras senhoras como ela. Jamais usou calça comprida. Fazia limpeza de pele e as unhas toda semana. Recebia as mulheres do salão em sua casa, aos sábados. Não saía de casa sem sua bolsa e, dentro dela, havia sempre a chave de casa, uma garrafinha de água mineral, sua máquina fotográfica com filme de 36 poses, uma cadernetinha de telefones, água benta, o remédio de pressão, caneta, bloco de notas, os óculos de grau e folhetos de orações. Um de seus programas favoritos era colocar o chapéu de palha para varrer com a vassoura feita de galhos, pelo próprio punho. Varria o pátio da casa e a calçada, pois assim ela podia se encostar no baixo portão pintado de azul para prosear com a vizinhança e se inteirar das novidades. Quem fosse visitá-la não podia ir embora antes do almoço de domingo. Isso seria um imenso desaforo, afinal, domingo era dia de abrir as duas grandes portas da cozinha e levar a mesa para a área, onde a família se apinhava para comer frango assado do mercadinho, costela assada no fogão a lenha, beber Coca-Cola, Fanta, limonada feita de limão-rosa do quintal, e fartar-se com pudim de leite com ameixas, de sobremesa: ai de algum vizinho passar por ali e não entrar para provar alguma coisinha. Ai de algum vizinho olhar torto para os pedinches que ela permitia que se juntassem à mesa.
Havia muito chá de boldo crescendo nas floreiras para sarar as disenterias todas, e pinga que eu furtava da geladeira para as doenças imaginárias.

hell's kitchen, the new book on the table of
roberta silva
risoto de camarão
Ingredientes:
- Arroz
- Camarão
Modo de Preparo:
- Junte os ingredientes
- Sirva
Acompanhamento:
- Antes só
coc au vin
Ingredientes:
- Coc
- Vin
Modo de Preparo:
- Junte os dois
- Sirva
Acompanhamento
- Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain
macarrão ao molho de cogumelos
Ingredientes:
- Macarrão
- Molho
- Cogumelos
Modo de Preparo:
- Junte os ingredientes
- Coma
Acompanhamento:
- Lucy in the Sky With Diamonds
almôndegas recheadas
Ingredientes:
- Almôndegas
- Recheio
Modo de fazer:
- Junte os dois
- Sirva
Acompanhamento
- A Dama e o Vagabundo
sopa da vovó
- Tenha filhos
- Vá à casa de sua mãe
- Espere-a fazer a sopa
- Tome
Acompanhamento
- Eu avisei

1 poema
suzana bandeira
fome
é o que se come:
pera, sólida
rastro d'água
corpo nu.
a fome
fosse
aguardente
que te molha
a treva.

anagapesis
silvana guimarães
menos que um corpo mais que uma coisa
ser um girassol onde nunca chove
ser o que eu quiser, baby
não é a solidão é mais que a solidão
o que me livra dessa espécie de amor
que me feriu e me fez ferir
nunca mais seu esperma a trofosperma
alimentando outras vidas com a minha
pode espernear: mon coeur mis à nu
lá fora passa o carro da pamonha
e o moço grita pelo alto-falante:
os deuses estão mortos
na vitrola o disco arranhado
naquela parte em que a voz
implora let me try again |