3 poemas, 3 minicontos
cris zaninelli
saia de bicicleta
Hoje eu visto saia
Para que toda libido me saia.
A saia e só
me solta
Sem combinação.
Em livre sinestesia
posso misturar
vermelho e fúcsia
e voar ao vento
onde nem cor
nem corrimento
vão me prender de pedalar até...
O suor escorrer
da ponta do nariz
para a coxa
ainda moça
que desliza
ao sabor do selim
sem fim
do meu roliço
e tenso biciclo
Firme tripé em pé.
É duro!
É.
Mas ai de mim
que gosto dele assim.
um dia perfeito
O plano era ensolarar
mas na última hora enchuvou
e agora, 'bora desarrumar
a mochila quase vazia
leve e fresca de verão.
Ia me embrenhar
embalada no colo da Maria Fumaça
pelas veredas da Serra do Mar,
cultuando o santuário natural
enquanto o sol se espreguiçasse pela manhã mansa.
Mas ai, que desgosto,
descortinar nesse amanhecer de janeiro
um céu escapado de agosto.
Quando começa desse jeito,
pode contar que entra água
e azeda o passeio inteiro.
E eu, que tanto queria
luminosidade abundante
sobejando de azul, amarelo, vermelho
e suas filhas exuberantes,
como fico com esse contraste cinza, prata, gelo?
O planejado era clicar
snapshots mil
e ainda antes do fim da linha
postar, compartilhar e aguardar
curtidas massivas em meu perfil.
Chegando lá do outro lado,
Muitas selfies, posts, check-ins
era a diversão que eu tinha imaginado
mas quem ia achar graça e curtir
meu look num clima assim?
E lá fui eu contrariada,
cumprir o triste destino de "pé-frio"
causadora dos dias nublados de verão
(principalmente em fim de semana e feriado).
Arrastando minha tromba pelo chão,
sem vontade nem de olhar para o lado.
Para encerrar tanta desventura,
deixei para trás celular, câmera, smartphone,
tudo que mais importava para a aventura.
Entediada, sem saída
só me restava assistir
embrumadas cenas torpes
pela janela exibicionista,
com vistas melancólicas da vida.
E eis que o que era para ser tristonho
do nada me arrebata e extasia
não é que disfarçado sob cúmulos medonhos
desvendo uma outra luz naquele dia?
Explodindo de vitalidade
Se deleita a natureza em seu majestoso banho.
E eu ali, com privilégio desavisado
me inebrio diante de tanta maravilha
de céu, terra, fauna e flora
encenando inestimável espetáculo de vida.
Novo ânimo corre por meu coração enlevado
pela descoberta de inconcebível tesouro,
sem querer, me sinto hipnotizada
por algo mais forte atraída
a virar para o outro lado…
é quando nossos olhares se fundem
num encontro há eras pressagiado
e sinto-me nesse momento
a criatura mais abençoada,
pois de toda beleza que contemplo
é de teu sorriso que mais me encanto.
É em teu belo olhar que viajo
nesse flash que eternizo e guardo
de real colorido sem efeitos
em que teu beijo pousa
em meus lábios.
rocambole I
Juntos caminham dois como se apenas um fossem sem nunca parar e nada dizem mas que seus sonhos voem alto e livres para se encontrar no infinito e que isso dure até a eternidade do próximo amanhecer ou que não demore muito para que não se faça o tempo parar por longos segundos. Nunca se morre enquanto não se mata, com que armas? Por qualquer segundo que se possa parar e não pensar em nada, eu daria qualquer parte do próprio corpo para que eles voltem a si e se vejam parados à beira do abismo e saibam recuperar o que já perderam, mas eles já não podem ver o que se esconde atrás da névoa branca e então não está mais lá o olho divino que concede o perdão supremo. Muitos foram os buracos onde deixaram cair partes preciosas de seu caráter e escura é a noite onde se perderam para sempre, caminharam em círculo até ser abatidos pelo cansaço e dali não mais puderam se levantar. Vieram lobos para salvá-los inertes — nem vivos nem mortos — ouviram os uivos e depois caíram num sono profundo e sem sonhos, a quem pertencem agora? Desmascarados se revelaram sem mais esperança sob a chuva rala que lhes molhou os rostos e aliviou suas dores.
rocambole II
As folhas do chão eram macias e faziam um ruído tão acalentador nem sentiram medo antes do próximo passo incerto rumo ao que não conheciam, estavam novamente no caminho e nada que os pudesse deter e ninguém com coragem de segui-los pelos campos desertos, montanhas escarpadas e florestas escurecidas no mundo que não girava ao redor do sol, o alento do espírito era o irreal e a carne só podia se alimentar da aventura, nenhum sopro trazia frio e cada passo avançava sempre sempre nunca mais poderiam parar já estavam marcados em todos os tempos e escreviam sua história contada em passos e quedas, em espaços infinitos brancos como a luz que vislumbravam ao longe e não parecia tão longe conforme olhassem com temor ou alegria. Se acabava a lenda, se concretizava o mistério se desfazia em vazias impressões.
rocambole III
Pensavam que tudo podiam, fortes eram mais que os gritos de dor dos que já passaram e não puderam mais voltar, vitória maior as do que nunca se aventuraram a percorrer, caminhos tão íngremes mas eles iam ainda e não sabiam o que queriam (ou temiam) encontrar por tudo o que já haviam visto não imaginavam nem euforia nem desânimo ou alívio ou decepção, o que tivera começo não encontra fim e ficava de onde nunca saíra, vultos os saúdam por seus ideais pequenos e sua coragem insignificante, significava que mais nada voltaria ao lugar, a ordem estava desfeita, as cartas embaralhadas, o caos instalado, o que viam guardavam para o próximo ato, o que não viam logo esqueciam. Parou a chuva mas não houve sol nem luz nem calor, lá estavam e já podiam se imaginar no topo olhando tudo por cima de nuvens que encobriam segredos profundos, nem tão depressa mas não muito devagar para não mudar o ritmo cronológico de seu destino incerto, eles quase nunca mais foram, como se jamais pudessem compreender o inexplicável e explicar o incompreensível do espetáculo que presenciaram ao final da grande conquista de caminhos tortuosos rumo ao impossível, o prazer de estar só os dois no centro do mundo.
Acende a chama
Desço para o escuro
desconhecido
onde só a chama
azul-violeta brilha.
E é para ela que me lanço.
Teimosa, persistente,
corro mais que todos,
chego na frente,
sou a vencedora.
Certeira, pontual,
misturo-me à chama violeta-azulada
e unindo-me a ela
formamos um.
Fecundo. Floresço
Sou. Existo. Vivo.
Aqui e agora,
na exata hora,
nem adiantada
nem atrasada.
Precisa, perfeita.
Completa, única.
Amada, desejada, querida.
Bem-vinda.
À vida.
Eu.
Cris Zaninelli. Escritora, professora de inglês, marketing, projetos e inovação. Seu poema "Velhas leis" foi agraciado com menção honrosa no Concurso de Poesia e Narrativa do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná (CEFET-PR), em 1990. Com o conto "Eutanásia", conquistou a 3ª colocação no Concurso de Contos Paulo Leminski, da Universidade Estadual do Oeste (UNIOESTE), 1993. Edita o blogue presentedefuturo.
10 poemas
érica bombardi
feliz idade
A nuvem dragão abocanha a nuvem coelho.
O cachorro pequeno e branco desce a rua em disparada.
As libélulas dão rasantes em poças.
Lá no céu surge um arco de sete cores.
Por segundos, folhas secas giram no ar animadas pelo redemoinho.
As plantas balançam suas folhas verdes dizendo oi.
A borboleta cara de coruja pousa, voa, pousa, assombra.
Olha,
Olha em volta e vê.
Quem faz isso é você.
Olha,
Olha em volta e vê.
Beleza e alegria.
Se precisar,
eu lhe empresto meus olhos de menina.
fera
e me atropela
e não para
e não para
nem se desculpa
nem olha pra trás
segue corredia
para saltar
e cair de pé
no chão de terra
tapete de flores rosas
da paineira
não tem casa
nem coleira
não se engane se
deixa que lhe afague
fera assim
com dentes e garras
não tem dono
tem leveza
graça
liberdade e alma
incomoda
olhar amarelo de desvario
e no segundo outro
com olhar doce
a me oferecer o pelo macio
pelo macio
concede a mim essa grande honra
de afundar minha mão domesticada
em sua plumagem de esfinge alada
irregular
Não seja, menina, o medo
Que se molda a seus pés
Não se firme
Em areia solta
Pois irá afundar
Não se ajuste a um tempo
Não se deixe conjugar.
Seja do verbo
O irregular.
há poesia na vida
Há poesia na vida,
Quero crer.
Há poesia na vida,
Ei de ver.
E de tanto querer vê-la,
Descubro-a nascer
De uma crisálida amarela,
No umbral de minha janela.
E depois de tê-la visto assim desnuda,
Voando em asas brilhantes pela tarde,
Amanheço com ares
Que sopram velas
A mares a serem navegados
Sem pressa.
Desbravadamente
Sem pressa.
liberdade fêmea selvagem
Apesar do medo
e da soma de minhas agonias,
apesar das angústias
e até de minhas epifanias,
além, muito aquém, das culpas,
eu te chamo.
Liberdade,
que eu chamo todos os dias,
cansada de esperar,
passei a lhe buscar
e descobri por que não me atendia:
você está em amarras.
Cabe, então, a mim achá-la
e devorar suas correntes
com a força de meus dentes.
Uma vez soltas,
você e eu, Liberdade fêmea selvagem,
encontraremos a porta secreta
e, lá fora, a luz que quase nos cega
não nos fará recuar.
De mãos dadas, eu e você,
encheremos nossos olhos de alma.
E será ela que fará o tambor soar
para lembrar a nosso coração
que a coragem nasce da fome de cantar.
O corpo, em sintonia, vai lembrar
de bater os pés, cavalgar,
sentir nos cabelos o vento,
cheiro de lavanda no ar,
abrir nosso caminho e caminhar.
de ternura a justiça
como tantas antes de mim
como tantas antes de mim
sylvias, elenas, virgínias, ofélias
tantas antes de mim
eu as vejo
eu as vejo
retalhadas
tantas antes de mim
para que daqui
repartida como estou
eu as visse
tantas antes de mim
para que eu fosse poupada
poupada
tantas antes de mim
para que eu fosse
enfim
repartida
retalhada
revivida
e poupada
sim
poupada
agradeço
irmãs suicidas
agradeço sua partida
assim repartida
entre tantas de nós
sinto
ressinto
pressinto
assombro
assim
meu fim
enfim
nada original
ouçam-me
suplico
irmãs suicidas
e sem respostas
que sei não haver
venham
caladas
sangradas
afogadas
despencadas
envenenadas
e me abracem
irmãs
e afastem
de mim
a flecha rumo ao futuro
— pois não quero ser
segurança infinita —
pois a vida é improviso
peguem
irmãs
retalhem com seus olhos cortantes
peguem essa viscosa tristeza
essa agonia sem porto
e as levem de mim
arrastem para o fundo
de suas águas
irmãs
agradeço
que me poupem
do destino
de toda mulher
me ajudem
então
a crescer em mim asas
a surgir em mim escamas
a me encher de patas
a insuflar em mim o desejo
de tatear a vida
em busca
em voo
em águas
em busca irmãs
de quê?
um dia apenas
para onde vão as aranhas que deixam de fiar?
eu me pergunto
gostaria de que elas, um dia, me levassem junto
e me mostrassem
o que então fazem
quando deixar de fiar
e me dissessem se duvidam de suas teias
e se elas se desfizerem?
o que será que pensam as aranhas que deixam de fiar?
se elas me levassem junto
nem precisaria ser para sempre
apenas um dia
um dia apenas
e me deixassem andar ao lado de suas oito patas e quelíceras
um dia apenas
o que fazem?
eu lhes perguntaria
e o que elas fariam?
me mostrariam
ou em um acesso de fome
me enrolariam em sua teia
e me deixariam ali
de cabeça para baixo
pendurada em algum canto
vendo pelo canto do canto algum pôr de sol
para depois me devorar?
o que fazem as aranhas
quando deixam de fiar?
será que algum dia
morno e abafado
em que em mim mesma me cozinho
elas poderiam me chamar
para as acompanhar?
em minha hora
Oxigênio escapa e se derrama
Por entre as pernas da vida.
É hora, é hora.
O que não me alimenta, me sufoca.
Rastejo por canal que cada vez mais se estreita.
Paredes comprimem.
Fendem meu casco.
Me espremo
E de meu oco, atravesso
meu avesso, escorrego
para lá do outro lado que cá eu estava.
E enfim respiro.
por vezes
me pergunto
assustada em meio a sonhos
de meia-noite em ponto
o que há de nascer
o que romperá a casca
desta era de desencanto
renascer
O que é isso de não respirar. De não dar tempo ao tempo de estar. Esse rasgo, essa ferida, essa dor que se enrola e revira na garganta e não sai, não sai, não sai.
O que é isso de olhar para longe, de querer com os dedos alcançar o horizonte. De cortar a linha e deixar o mar invadir o céu, invadir a terra, esvair o ar de dentro de mim e me completar.
Érica Bombardi (Jaú/SP). Escritora e freelancer em edição de texto. Ganhou o 1º lugar no 25° Concurso de Contos Paulo Leminski (2014) e seu poema "Asas" foi selecionado como um dos melhores no Prêmio SESC de Poesias Carlos Drummond de Andrade (2014). Publicou Além do deserto (2012), com apoio da Secretaria de Cultura de São Paulo (PROAC); Canto do Uirapuru, um dos nove finalistas do Prêmio Barco a Vapor 2015 (Escrita Fina/Zit, 2016) e Besouros, infantil, premiado no 5º Concurso Agostinho de Cultura (2015). Escreve o blogue ericabombardi. |