edição 52 | outubro de 2016

uma mulher de sorte | fome | placenta

 

 

 

desgraçado

bernadete reutman

 

 

Na tarde em que tudo acabou, Beto lhe dissera que confiasse mais nos parceiros de seus futuros relacionamentos. Depois bateu a porta, e ela nunca mais o veria. Dez minutos antes, ela ainda tentara argumentar:

— Eu confio em você, Beto. Aliás, além da Ana, você é a única pessoa em quem eu confio.

— Mentira, minha linda — Ele respondeu pacientemente — Ontem mesmo eu te vi xeretando o meu iPhone. Além do mais, confiar em filha não é nenhuma vantagem.

— Eu não estava xeretando seu celular... só queria pegar o telefone da Inês!

— Você sabe que não foi isso. Que me perguntasse se eu tinha o contato dela, ora.

Ela calou-se. Ele continuou:

— Sabe o que você queria? Ver se havia uma mensagem comprometedora no meu Whatsapp ou algo do gênero. Lia, eu até retirei a senha do aparelho para te provar que eu não tenho nada a esconder.

— Verdade — Ela assumiu, olhos baixos, culpada por ciúmes que não conseguia conter — Estava mesmo sem senha.

— Então?

— Mas eu precisava ver com a Inês se a gente podia se ver na quarta. Tanto tempo que não falo com ela...

— Você tem o Face da Inês. O Whatsapp também. O Instagram. Tudo.

— Mas não é a mesma coisa, Beto. Eu queria saber na hora, não esperar que ela me respondesse. A Inês é tão desligada desse negócio de tecnologia!...

— Nada! Inês compra tudo quanto que é gadget que sai no mercado — Ela se calou novamente, vencida — Outra coisa... Eu fico muito incomodado de estar com uma mulher que tem arma no criado mudo.

— Ora, que bobagem, Beto. Guardo ali para ficar à mão em qualquer eventualidade. Minhas aulas de tiro vão servir para quê, então, se eu não posso me defender? Tenho que ter minha arma. Além do mais, estou na lei: tenho porte desde que papai era vivo.

— Sei lá, me incomoda essa coisa de arma em casa. Não combina.

— Muitas coisas aparentemente não combinam, meu querido. Uma mulher como eu que atira bem, por exemplo.

— Olha só, Lia, eu cansei. Cansei.

— Como assim? — fazendo-se de desentendida.

— Não dá mais — ele responde, e depois abaixa-se para pegar a mala de mão com algumas mudas de roupa que guardara atrás do sofá — Depois passo aqui pra pegar o resto.

— Faz isso não, amor.

— Eu sei que é chato voltar ao assunto, mas você não podia ter me bisbilhotado. Precisa confiar mais nas pessoas que te rodeiam, Lia.

— Mas eu confio!

Ele parecia inflexível.

— Beleza. Da próxima vez, confia também no cara com quem você estiver. De boa. É legal de vez em quando confiar nas pessoas, sabia? Dá um beijo na Ana por mim.

Saiu e bateu a porta.

Saiu e bateu a porta.

Saiu e bateu a porta.

Aquela cena ficou se repetindo na cabeça dela mesmo depois que a filha chegou da faculdade, até madrugada alta, quando, vencida pelo cansaço, Lia mergulhou em um sono sobressaltado por um pesadelo.

Ela caminhava por um longo corredor com portas em ambos os lados. Sempre que estava em frente a uma delas e a abria, flagrava um dos seus ex-namorados na cama com uma de suas amigas de adolescência. Depois continuava pelo mesmo corredor, abrindo aquela sequência infernal de portas, e atrás de cada uma delas, via outro ex-namorado em cima de outra amiga. Caminhava pelo corredor e chorava. Então viu no fundo do corredor uma porta larga. A última porta, virada para ela. Quando a abriu, viu todos os ex-namorados e todas as amigas de adolescência reunidos. Eles usavam ternos caros e elas, lindos vestidos longos de noite. Todos sentados numa espécie de arquibancada em semicírculo, no meio do qual estava ela, Lia, de pé, nua dos pés à cabeça. O silêncio reinava na sala.

Despertou sobressaltada, lembrando-se de que a última pessoa que viu no pesadelo foi Beto, mão no ombros de Luciana, sorriso triste no rosto, balançando a cabeça de um lado a outro. Acordou pastosa por conta da noite mal dormida e decidiu tomar um banho para tirar o pesadelo da cabeça. Pôs um vestido azul de alcinha. Tudo planejado: azul é a cor que os especialistas em psicologia comportamental indicam para passar a ideia de confiança. Já as alcinhas acentuariam seu colo generoso ornado por seios firmes, desejados por dez entre dez heterossexuais da agência.

Fez café e torrou pães para ela e para Ana, que acordaria mais tarde aquela manhã. Enquanto tomava café chegou uma mensagem de Beto. Perguntava se podia pegar as roupas naquela tarde mesmo. Ele tinha a chave, ela pensou. Respondeu que sim, que não estaria em casa à tarde, pois tinha uma reunião na agência, então deixe sua chave na portaria, ok? Aliás, pensou enquanto digitava a resposta, a reunião era importante: ela apresentaria para um cliente da pesada o planejamento de marketing para aquele ano.

— Planejamento que teimei em fazer sozinha — Escutou-se falar para o espelho do elevador, enquanto digitava a senha da garagem.

Quando o carro saiu, viu que o dia estava nublado e sem chuva.

Tinha dúvidas a respeito do plano de marketing que havia bolado. Achava que não tinha acertado a mão como nas outras vezes. Não tinha ficado ruim, mas podia ter ficado melhor. Sabia que vida de publicitário era assim mesmo: prazo mínimo e exigência de criatividade máxima.

O celular tocou. Ana.

— Por que acordou cedo hoje, filha? Podia ficar até tarde, não podia?

— Podia, mãe, mas combinei com o Raul de irmos de bike pra faculdade.

— Ana, sem essa de acreditar que ciclovia é seguro, filha. Isso é loucura! Vão de ônibus.

— Vamos os dois, mãe. Fica tranquila.

— Eu não confio nesses motoristas, filha, quanto menos nos motoqueiros. Eles vivem costurando, saem voados por essa cidade, todo dia eu vejo um morto ou machucando alguém. Não quero ficar sabendo de você pelo Datena.

— Confia em mim, mãe. Eu prometo que a gente vai por ruas mais tranquilas. Vai ser da hora ir de bike. O dia está fresquinho, sem chuva.

Lia lembrou-se de Beto: precisava fazer um exercício de confiar mais nas pessoas e podia começá-lo com a própria filha.

— Bom, não me venha com telefonemas de algum hospital de emergências, ok? — A mãe brincou, forçando leveza que na realidade não sentia — Volta cedo hoje?

— Mãe, eu queria mesmo falar isso com você. Vou dormir na casa do Raul hoje — Lia silenciou — Tudo bem, mãe?

— Ana.

— Que foi?

— Vocês estão... transando?

— Mãe!!!

— Desculpe, filha — Ela respondeu, depois de se refazer — Talvez eu precise me acostumar.

— Acho legal se isso acontecer.

— É... Você é uma mulher. Isso é difícil, eu sou só uma mãe. Tão careta quanto todas as outras de quem eu sempre falei mal.

— Você prefere que eu não vá? De boa...

— Claro que não, Ana! Vai sim. O Raul é bacana, né?

— "Bacana", mãe? "Bacana" denuncia idade, viu?

— Tá bom. Bom, deixa eu desligar. Tenho uma reunião pauleira com uns clientes japas agora e preciso me concentrar.

— Beleza então.

— Só mais uma pergunta.

— Diz.

— Vocês estão se prevenindo?

Ana desligou.

Tão logo entrou na Vinte e Três, encontrou um trânsito lento. Bom: teria mais tempo para pensar. Em Beto, no que ele lhe dissera na véspera, em ter uma filha iniciando uma vida sexual e em estar percebendo, tanto nela quanto na filha, a passagem do tempo. Também lembrou-se do pesadelo, de sua compulsão em desconfiar de todos os que a cercavam, das dúvidas que tinha a respeito da excelência do projeto que iria apresentar em menos de meia hora. Sempre concentradora no trabalho, temendo delegar tarefas que considerava importantes, sempre achando que ela mesma era a única pessoa com quem poderia contar, pois os outros, ah, os outros sempre faziam as coisas de qualquer jeito, bando de irresponsáveis sem pensar nas consequências.

O celular tocou novamente. No visor apareceu "Judith", o nome de sua mãe.

— Bom dia, mãe.

— Tudo bem, minha filha?

— Mais ou menos. Eu e o Beto rompemos ontem — Disse, contendo um ensaio de choro.

— Por quê? O Beto é uma graça.

— Pode ser uma graça, mas estou desconfiada de que não era tão fiel quanto parecia.

— Ah, minha filha, que pena. Você sabe com quem?

— Não.

— Sabe de uma coisa? Os homens são assim mesmo. Lembra do seu pai com aquela Dora? Homem é danado mesmo, não consegue sossegar muito tempo com uma mulher só.

— Ah, mãe... Eu pensava que o Beto era diferente. Na verdade, não tenho certeza. Ontem ele saiu de casa dizendo que eu devia confiar mais nas pessoas.

— Você deve confiar sim, mas nas pessoas certas, Lia. Vou te contar uma coisa: eu sempre achei o Beto meio atiradinho, sabe? Naquele festival de crepes, lembra, semana passada? Ele não tirava os olhos da Inês.

— Da Inês? Sei lá... A Inês não é o tipo do Beto.

— Inês é o tipo de um monte de gente, filha. Já viu as pernas da criatura? Duas esculturas! Aquilo ali é uma tentação só.

— Tá bom, mãe. Mas quer saber? Não quero falar sobre isso. Acabou. Não era pra dar certo.

— Isso, filha. Bola pra frente.

— Vou desligar. Estou no trânsito e não quero ser multada. Tenho uma reunião daqui a pouco e a Vinte e Três não anda.

Pegou a saída para a Praça João Mendes. No farol fechado, certificou-se de se manter um pouco distante do carro da frente e checou se as janelas estavam todas fechadas, pois aquele trecho era meio pedreira, já soubera de gente que tinha sido assaltada por ter deixado uma fresta aberta. Ainda bem que Ana tinha a cabeça no lugar. Não queria ser avó aos quarenta.

 

*

 

Ricardo era um homem grande e alto, já passado dos cinquenta, mas bonitão, apesar da calvície avassaladora que somava alguns anos à sua aparência. Carioca sempre queimado de sol, viúvo, era diretor-presidente da agência onde Lia trabalhava. Conhecido por não suportar tropeços de seus chefiados. Lia era uma de suas pepitas de ouro. Jamais a vira atrasar um projeto ou apresentá-lo descuidadamente. Tudo que lhe caía nas mãos virava ouro, dizia. Ela não perdia uma proposta, sempre apresentando planos criados na medida para as necessidades da clientela, por isso o chefe lhe dava as carteiras dos clientes mais exigentes, como aqueles japoneses daquela manhã.

Quando a viu entrar na agência, Ricardo soltou um de seus assovios agudíssimos, chamando a atenção da moça de vestido azul de alcinha. Acenou, apontando a sala de reuniões.

— Que bom que você chegou, Lia — Ele disse, depois de cumprimentá-la com os dois beijos cariocas e fechar a porta da sala envidraçada de onde se podia ver a sequência de baias e o trabalho frenético dos funcionários.

Ela viu a sala vazia.

— Onde estão todos? A reunião não estava marcada para as 9? Faltam 10 minutos, e os japas sempre chegam bem antes.

— Eu sei. Ontem eles ligaram pedindo pra adiarmos a reunião. Problema contábil deles. Até resolverem não podem criar despesa. Não quis te ligar porque já era tarde.

— Adiaram a reunião? — Ela perguntou desanimada.

— Não fica triste, vai. É até melhor pra termos mais tempo. Você não tinha me dito que estava insegura com esse plano de marketing?

— Estava, mas...

— Mas nada. Eles pediram para adiar para o dia treze — Ela olhou-o desanimada — Pensa positivo. Olha que beleza! Vocês terão mais duas semanas para acertar o projeto.

— Vocês quem, cara pálida? Ric, você sabe que eu gosto de trampar sozinha. Não lido bem com equipe.

— Sim, eu sei. Mas preferi designar o Turra para ajudá-la.

— Turra? Meu deuzinho, Ricardo, você sabe por que ele tem esse apelido?

— Sei — Respondeu, rindo-se — Porque ele é turrão. Teimoso. Gosta de impor suas ideias — Ele olha firmemente para Lia — Alguma coincidência?

— Para de gracinha. Não vai dar certo.

— Vai sim. Porque vocês dois absolutamente opostos.

— Não precisava me dizer o que eu já sei.

— Mas iguais. Pois é: se você está travada com seu projeto, ele pode trazer ideias bacanas para ele. Pode ser que a sua concepção esteja falha. Aí entra ele.

— Ele parece carro importado, Ricardo, só funciona aditivado.

— A maconha que ele fuma não o atrapalha em nada. Talvez até ajude, vai saber.

— Pelo amor de Deus, reconsidera isso.

— Não. Vai ser bom pra vocês dois. Dois turrões. A turronice pode ser um defeito complicado pra carreira de vocês, quem sabe a convivência faça milagres e transforme vocês em pessoas mais abertas às ideias do outro. Outra coisa: ele não gosta muito de ser chamado de Turra. O nome dele é Marcelo.

— Odiei a ideia.

— Eu sei. Eu sabia que você odiaria. Até nisso vocês são iguais. Ele também detestou a ideia de trabalhar com você.

Ela saltou da cadeira.

— Como assim? Você já chamou Turra?

— Claro — Ele respondeu, acenando para alguém — Ou você acha que eu sou do tipo que pede autorização pros meus comandados?

Ela virou-se: era para Turra que ele acenava.

— Turra e Lia, acho que vocês já se conhecem.

Turra era do tipo "homem ecológico". Vinha trabalhar de bicicleta, mesa enfeitada com meia dúzia de vasos onde cultivava ervas de chá, usava roupas coloridas que pareciam ter sido compradas para alguém dois números maior que o dele.

— Tudo bom, Lia? — Disse Turra, cumprimentando-a — Desculpem se me atrasei. Atrasei?

— Um pouco. Mas chegou na hora de começar os trabalhos com Lia.

— Acredito que nem eu nem você estamos satisfeitos com a invenção do nosso chefe.

— Pela primeira vez você falou algo que preste, colega.

— Vocês podem parar com isso — Ricardo interrompeu o round — Agora, formam uma equipe.

— Sem essa, Ric — Interrompeu Lia — Equipe é demais. Tudo bem, trabalho com ele nesse projeto. Porque você me obrigou, fique claro. Mas depois vai cada um pra um lado. Fechou? — Lia encerrou, olhando para um e outro.

— Acho show, princesa — provocou Turra.

— Não me chama de princesa. Lia. Só isso. Escuta aqui: trabalhar junto é uma coisa. Ter intimidade é outra. Eu só topo a primeira. Ok?

Turra silenciou. Ricardo circundou a mesa, tirou refrigerantes do frigobar.

— Tomem — Disse, entregando um para cada — Vamos brindar e relaxar. Vocês têm que se preparar para montar um puta projeto. O cliente é bom. Peguem o que a Lia fez, vejam se dá pra melhorar. Se não, joguem tudo no lixo e comecem do zero. Só lembrem de uma coisa: vocês têm duas semanas pra terminarem essa bagaça. Entenderam?

 

*

 

A noite descia sobre uma São Paulo que via o céu passar do alaranjado para o violeta. Eles tinham passado o dia inteiro esmiuçando o projeto elaborado por Lia, vendo porque a campanha não funcionava.

— Você acha isso bom? — Turra perguntou — De verdade? Isso não está bom, Lia. Talvez o problema esteja na condução.

— Como assim? Não implica com o projeto. Nós dois estamos cansados, pendurados aqui feito doidos o dia todo e eu não estou com paciência pra aguentar um sujeito querendo desconstruir meu trabalho.

— Primeiro de tudo, não gosto que me chamem de Turra. Marcelo, por favor.

— Não te chamo de Turra se você não me chamar de princesa.

— Fechado.

— Mas pode parar. Eu ralei pra caralho pra montar esse projeto. Confesso que não ficou tão bom quanto os outros, mas querer jogar tudo no lixo é sacanagem.

— Eu não disse isso. Eu acho que a concepção tá show, o objetivo também, mas a condução tá uma merda.

O que aquele babaca está dizendo, ela pensou. Não participou de nada e agora vem dando pitaco, dizendo que isso não está bom, aquilo também não. Em seguida, ela de novo lembrou-se do que Beto lhe dissera na véspera. Precisava tentar confiar nos outros. Afinal, vai que aquele ensaio de publicitário banhado em THC está certo.

— Também acho — Pensou melhor e reformulou sua frase — Ou melhor, pode ser. Diga lá: o que você propõe?

Naquela madrugada, cansados, encontraram uma saída e reformularam o planejamento. Nos dez dias seguintes trabalhariam na estrutura do novo projeto para deixá-lo redondo, como Turra gostava de dizer. A partir desse ponto, teriam três ou quatro dias para arrematar os detalhes e preparar a apresentação para os japas.

Ana se divertia vendo o esforço da mãe para trabalhar com o novo parceiro.

— Esse cara é legal? — Ela pergunta enquanto zapeia a TV em busca de uma boa série.

— Ele... é. Meio doidão. Às vezes viaja tanto que eu fico meio assim.

— Só porque ele puxa fumo, mãe? Preconceito bobo!

— Como você sabe disso?

— Tá na cara! O jeito, o olhar meio assim, peixe morto. Sempre que ele vem aqui tá daquele jeito.

Lia riu.

— Peixe morto. O pior é que é verdade. Ele tem olho de salmão.

Ana riu, elas riram.

— E Raul?

Os olhos da filha turvaram-se.

— A gente brigou. Semana passada.

— Que pena, filha. Como aconteceu? Por quê? Eu posso fazer alguma coisa?

— Não. Mas eu acho que a gente volta. Foi só uma discussão.

Lia senta-se ao lado de Ana e dá dois tapas na perna, convidando-a. Ela aceita.

— Mãe, tá rolando alguma coisa com vocês?

— Quem? Eu e o Marcelo?

— É. Você nem tá chamando ele mais de Turra.

— Ele pediu.

— Sei.

— Deixa de falar bobagem, Ana. E para de zapear. Essa série é show.

— Show?

— O que que tem?

— O Turra sempre fala isso. "Show".

 

*

 

Ana levantou-se e foi à churrasqueira.

— Quer mais um coração? — Perguntou Turra.

Ela acenou que sim. Achava engraçado. Quatro meses atrás a mãe dizia misérias do cara com quem agora dividia a cama. Aliás, que ela lembrasse, jamais tinha visto a mãe tão feliz.

— Está bonita? — Perguntou Lia, chegando com uma travessa de salada verde.

Depois do sucesso do projeto dos japas, Ricardo passou a sempre designar projetos para os dois. Eram uma dupla de sucesso. Não só profissionalmente: estavam juntos há três meses. Lia, que no início precisou se esforçar para confiar no novo parceiro e ficar longe da agenda e do celular de Turra, agora tinha relaxado. Tentava controlar os ciúmes. Confiar. Entendeu que não havia motivos para desconfiar daquele homem que, desde o mês anterior, tinha lhe proposto morarem juntos. Lia concordou com a proposta, desde que morassem em seu apartamento, pois era mais fácil ele se mudar do que ela e a filha.

— Nossa! Tá linda! — Respondeu Marcelo, beijando Lia — Combina com a mestre-cuca.

— Falando em mestre cuca, Ana, como vai Raul? Ele não está fazendo aquele curso de gastronomia?

— Está adorando. Disse que hoje traz uma sobremesa que ele aprendeu no curso. Eu quis saber, mas ele não quis contar o que seria, é para ser surpresa.

 

*

 

Uma gripe forte fez com que Lia não fosse trabalhar naquela manhã de segunda-feira. Marcelo, antes de sair, trouxe-lhe um chá bem quente na cama.

— Fica e descansa. Toma essa aspirina, que vai te fazer bem. Eu falo com o Ricardo que você vai ficar em casa hoje, tá?

Ela aquiesceu.

— Ah, a Ana chegou tarde da balada. Pediu para não ser acordada.

Depois que ele saiu, Lia adormeceu.

Acordou às onze da manhã muito melhor e resolveu ir trabalhar.

Chegou à agência e perguntou a Ric onde Marcelo estava.

— Está na xerox.

A xerox ficava no final do corredor, ao lado do pessoal da informática. Ela viu Marcelo abraçado com uma moça que de longe parecia ser Ana.

— Filha, você por aqui — Ela perguntou quando entrou na xerox.

A moça virou-se. Não era Ana.

— Amor, essa é Diana. Diana, Lia.

Lia engoliu em seco. Aquilo não estava acontecendo, pensou, não podia estar acontecendo. Marcelo percebeu o mal-estar.

— Está tudo bem, amor? Melhorou da gripe?

— Não muito — Ela respondeu secamente — Aliás, eu acho que estou pior.

Virou-se e saiu zunindo pela agência, sem atender aos chamados de Marcelo.

Pegou o carro e resolveu andar a esmo. Precisava pensar. Estava apavorada. Diana era linda, novinha, sorriso radiante, tudo no lugar. Ela era uma mulher de quarenta anos. Marcelo era homem. Lembrou-se da conversa que teve com a mãe: confie naqueles que merecem, minha filha. Aquilo não podia estar acontecendo, repetiu-se.

O dia se arrastava. Marcelo ligava insistentemente, sem que ela atendesse. Na hora do almoço, uma mensagem dele dizia que não era o que ela estava pensando, que a coitada da Diana na véspera tinha perdido o namorado numa briga de rua na periferia onde morava, que ele estava consolando a coitada. Lia tinha parado em uma lanchonete no Largo do Cambuci que servia uns sanduíches divinos, mas estava sem fome. Marcelo seria capaz de traí-la? Até hoje pela manhã ela achava que não. Queria continuar achando. O que Marcelo fizera para que ela desconfiasse dele?

Já era noite quando ela decidiu: voltaria para casa, pediria desculpas a Marcelo e tudo ficaria bem. Seguiu para casa mais aliviada e, no caminho, parou num florista. Seu homem merecia um agrado para compensar a cena ridícula de ciúmes daquela manhã.

Quando entrou em casa, chamou por Marcelo, que não atendeu. Como o chuveiro da suíte estava ligado, ele provavelmente estava tomando banho. Seguiu, flores nas mãos, queria surpreendê-lo no banho, quem sabe fariam amor no chuveiro. Delícia.

Quando abriu a porta da suíte, viu, através do vidro enfumaçado do box, o que não queria ver. Marcelo e aquela Diana. Nus. No banho. Na sua suíte.

O sangue ferveu em suas veias. Virou-se, jogou as flores no tapete. Cega de ódio. Como ele teve coragem de fazer aquilo com ela? Por quê, meu Deus, por quê? Desgraçado. Abriu a gaveta do criado-mudo. Desgraçado. Tirou a arma. Estava carregada. Desgraçado. Voltou para a suíte decidida. Os dois tiros foram certeiros. Aulas de tiro desde que papai era vivo. Os dois corpos caíram mortos, misturados com a cascata de cacos do blindex.

Então, ela escutou passos no corredor. Passos apressados. Segundos depois, Marcelo entrou no quarto.

— O que você fez, está maluca?

Ela não entendia aquilo. Não entendia mais nada.

Desgraçado.

Ela entrou novamente na suíte.

Ana e Raul jaziam, corpos emaranhados caídos na porcelana branca que aos poucos manchava-se com o sangue que saía cada vez mais veloz dos corpos.

 

 

 

 

 

 

hojendia

carla diacov

 

 

o mais suave do todo da brisa

entrava constantemente pela renda do vestido

ela pousava as mãos sobre os talheres

ela acontecia

como quando acontece

alguém morre de atropelamento

alguém morre com o coração atacado

ela cortava o filé vermelho

ela cortava

como quando corta o dia

faz duas noites inteiras

agora é bicho hojendia esfomeado

ela engole a vida em estado de hojendia

como quando engolia

cuida a casa como cuida a gula

dorme com a sede intacta

sonha com vida afiada

volta como volta a pluma preta no cru da penteadeira

o mais suave do todo da brisa desde

quando a renda

 

vez em quando o terno ciclo e acontece

quase todo o dia como quando corta o dia

plumando bocas em estado de hojendia no filé de mãe-da-lua

 

(onze noites inteiras)

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

3 contos

carla luma

 

 

revenouns à nous moutons

 

 

Em quase todos os romances que eu lia escondida quando eu era menina havia uma advertência de que os personagens eram fictícios. Assim, o autor antecipadamente tirava o cu do ponto para a hipótese de alguém vestir a carapuça. Eu nunca tive esse cuidado, estou tendo agora porque tenho observado que cada dia mais a realidade faz questão de imitar a arte e também que a justiça anda mal das pernas e tropeça à socapa...

 

Uma pausa para dizer que eu não sei o que significa socapa, mas a palavra me surgiu concomitante à imagem do simpático ministro Marco Aurélio, como às vezes me acontece em virtude do meu vício de assistir às transmissões televisivas de julgamentos do Supremo Tribunal Federal. Assim eu resolvi deixar a socapa sem nem mesmo verificar no dicionário o que significa, pois vai que não dá liga e eu poderia resolver trocar ou simplesmente tirar, perdendo assim a oportunidade de enriquecer essa simplória crônica com uma palavra cujo som me evoca a imagem dos personagens que têm visitado o meu imaginário e que parecem emergir dos romances que eu lia escondida. Romances povoados por senhores de fraque com pose imperial, e por donzelas belas, recatadas e do lar, com olhos de cigana, oblíqua e dissimulada.

 

Quem, como eu, não souber o significado de socapa, pode se quiser ir ao dicionário, ou pode aceitá-la sem espancar panelas, com resignação, como suponho que se tem aceitado nesses tristes dias, como coisa de somenos, tropeços legais, éticos, morais e literários, entre outros.

 

Perdoem-me por desviar do assunto. Voltando à vaca fria... STOP.  Impossível não fazer outra interrupção por conta da "vaca fria". De acordo com o professor Ari Riboldi, no livro O Bode Expiatório, a expressão "voltar à vaca fria" é derivada da expressão, muito usada na França, "revenouns à nous moutons", ou seja, "voltemos aos nossos carneiros". A frase está na comédia A Farsa do Advogado Pathelin, sobre um roubo de carneiros. A peça, datada de 1460, mas cujo autor é desconhecido, é considerada a primeira comédia da literatura francesa. Em determinada cena, o advogado do ladrão faz longa divagação fora da questão principal e o juiz chama a sua atenção com a frase 'voltemos aos nossos carneiros'. Contudo, a tradução para o português acabou transformando os carneiros em uma vaca. O professor Ari explica isso também, mas urge que voltemos aos nossos carneiros para que eu não perca o fio da meada. Ah! Basta, não vou explicar que "perder o fio da meada" surgiu no início da revolução industrial e blá-blá-blá...

 

Um personagem de um daqueles romances que eu lia escondida era uma jovem que para ascender socialmente se casou com um homem mais velho, mas com muito dinheiro e poder. Às vezes se arrependia e sonhava com um príncipe encantado, mas a sua mãe dizia que ela era uma mulher de sorte, de muita sorte, porque se casou com um velho que estava quase sempre muito ocupado e que isso a deixava livre quase todo o tempo para se dedicar às atividades próprias das jovens bonitas e para viajar e gastar. Talvez seja obra de Machado de Assis, ou de Camilo Castelo Branco, ou de Joaquim Manoel de Macedo, talvez de Adelaide Carraro que, por sinal, tem um livro cujo título é 'a amante do deputado'. Eu tenho muita dificuldade para recordar detalhes e às vezes misturo na lembrança histórias de autores diferentes. Ocorreu-me dizer, e como sou dispersa é bom que diga logo, que esses personagens que estou fantasiando ficariam maravilhosamente retratados em um romance de Nikolai Gogol. Quem leu Almas Mortas deve concordar comigo.

 

No início do século XIX, o governo russo doava a súditos que possuíam grande número de servos, grandes áreas situadas em zonas longínquas e sub povoadas, como o Cáucaso, por exemplo. Em Almas Mortas, Gogol criou um funcionário corrupto, Tchitchikov, que para se tornar latifundiário visitava os grandes proprietários para comprar, a preço baixo, os mujiques mortos, mas que ainda figuravam como vivos nos censos. Assim, além de reivindicar terras, podia dar os servos como garantia de vultosos empréstimos. A história da compra das almas mortas serve de pano de fundo para o retrato da corrupção na Rússia imperial. É impossível ler Almas Mortas sem muitas gargalhadas. O que não tem graça alguma é imaginar que o gigante adormecido em berço esplêndido esteja caminhando para se tornar um espelho da velha Rússia. O território não é tão grande, mas na corrupção talvez já a tenha superado.

 

Se o meu querido e saudoso João Ubaldo não tivesse batido as botas ele, grande mestre do humor como Gogol, poderia escrever o grande romance brasileiro do século XXI. Eu seria uma mulher mais feliz ainda que a bela recatada e do lar se tivesse fôlego e competência para narrar as histórias que me passam pela cabeça, tudo ficção, obviamente, pois na realidade não é possível que todos os mais finórios bandidos consigam se reunir para dominar um país e que dessa grande articulação criminosa participem ministros da suprema corte, a maior parte dos políticos, membros destacados das forças armadas, da policia federal, do ministério público, as redes de televisão, os grandes jornais e revistas. Tudo isso sob os aplausos da maioria da população. Eu devo estar louca, talvez deva me retirar de uma vez por todas para o meu apartamento na Avenue Foch, em Paris.

 

Ontem eu fui jantar em Higienópolis com um velho amigo, cujo nome devo manter oculto. Ele riu muito e me estimulou a tentar escrever a história. "Na pior das hipóteses você vai ter um bom passatempo, mas sempre se lembre da justificativa de Tchitchikov para o seu ato 'o único a perder alguma coisa é o Estado e o Estado não tem rosto, é apenas um princípio'".

 

 

 

caminho que vai dar no sol

 

 

Já passei fome, sim. Não vou comparar a fome que passei com a fome das crianças africanas, carne e osso, sonho de algumas garotas idiotas magérrimas que se vêm obesas ao espelho. Não, não passei fome porque queria ser Twiggy. Quem não sabe quem foi Twiggy procure no Google. Se não sabe o que é o Google, foda-se. Mas a minha fome não foi metafórica, foi fome mesmo, fome de ter algo no estômago. Mas a comparação não teria cabimento porque nasci e fui criada em família de classe média. Não tínhamos muitos luxos, caviar eu só experimentei — e não gostei — depois de me tornar um fenômeno editorial na China com o livro As mãos me falam, os falos me calam, que já vendeu mais de 500 milhões de exemplares. Não tínhamos luxos, mas nunca faltou para o pão.

 

Passei fome porque me apaixonei por um hippie que circulou uns dias em Jacarezinho, a minha cidade natal. A paixão é pior que a fome, diga-se an passam. A paixão dói no coração e embota o cérebro. Foi por isso que aceitei sorridente e destemida o convite para seguir com ele de carona para o nordeste. Não tivemos dificuldades para pegar caronas: eu exibia a minha beleza de adolescente na beira da pista, dezesseis anos, enquanto Eduardo fazia o sinal tradicional com a mão fechada e o polegar apontando o norte. O roteiro era traçado pelo acaso. A nossa preferência era pegar uma carona para São Paulo, de lá para o Rio e ir subindo sempre pelo litoral, mas a primeira carona que pegamos foi de um caminhoneiro que estava indo para São José do Rio Preto. De São José fomos para Ribeirão Preto, de lá para Uberlândia. Eu ocuparia páginas se relacionasse todas as cidades em que passamos. Valeria a pena citar alguns episódios ocorridos nos quase seis meses do zigue-zague rodoviário que nos levou primeiro ao centro-oeste, mas o tema é a fome e é bom que eu não faça aqui tantos desvios quanto o do nosso itinerário, traçado por Deus, que escreve certo por linhas tortas.

 

Um dia, chegamos em Juazeiro, cidade da Bahia, na margem do Rio São Francisco. Do outro lado, Petrolina, Pernambuco. Foi lá que aconteceu. Em todos os lugares que havíamos passado pedíamos comida, pedíamos dinheiro, as pessoas nos davam. Nem todas, mas o suficiente para forrar o estômago e às vezes até levantamos grana suficiente para comprar maconha, mas em Juazeiro as pessoas negavam. Era como se tivéssemos alguma doença contagiosa. Em uma rua afastada do centro descobrimos um limoeiro que ficava no terreno de uma boate cujo nome era 'Chicão sem medo', mas que era conhecida como 'Chicão raspado'.

 

A história é interessante e vale a interrupção. 'Chicão sem medo' é o nome de uma canção que ganhou um festival de música realizado na cidade. O compositor usou o dinheiro do prêmio para fazer a boate na qual pôs o nome da música pintado na fachada. Não demorou a receber aconselhamento do chefe militar da região para trocar o nome da boate. Era época de se ter medo e 'Chicão sem medo' era, portanto, um nome subversivo. A música foi imediatamente censurada e a execução terminantemente proibida em todo território nacional. O compositor, dono da boate, com a simplicidade genial que acomete muitos baianos, mandou raspar o 'sem medo' e ficou o 'Chicão raspado' imenso na fachada. Denúncia, não perceberam os milicos, mais explícita que a original.

 

Voltando ao limoeiro. Eduardo pulou o muro, transformou a camisa em saco e voltou com dezenas de limões. Compramos um pouco de açúcar com os últimos trocados que tínhamos. Enfim, após dois dias sem almoço, café ou janta, tínhamos algo para pôr no estômago. A água não era gelada, mas naquele calor de Juazeiro água fria já era um refrigério, e como não há bônus sem ônus, aquela limonada passou a jato pelo estômago vazio e desceu lavando as tripas, intestino grosso e delgado, em uma sofreguidão ainda maior que a nossa na ingestão da dita cuja. Não mais que meia hora e já nos contorcíamos naquela cólica típica que precede as caganeiras homéricas. Pulamos o muro e, bruta sorte, os banheiros da boate, que ficavam no lado de fora, não estavam trancados. Mal eu me levantava da latrina, pensando que o pior havia passado, sentia nova cólica e, logo após, um jato de merda líquida melava a minha bunda. Não tínhamos como nos afastar dos banheiros e foi assim que fomos surpreendidos.

 

O rapaz chegou pilotando uma CB 500 vermelha. A situação, além de constrangedora, poderia ter descambado para a violência, mas o compositor, dono da boate, parecia saber quem éramos e com surpreendente tranquilidade nos perguntou porque havíamos invadido a propriedade. Contamos a história. Primeiro ele riu, depois destrancou a porta e vasculhou a geladeira para ver se havia algo para comer. Encontrou alguns tomates. Era só o que ele tinha: tomate e sal. "Só abro a boate nas noites de sexta e sábados" ele explicou. Nunca comi tomates mais saborosos que aquele. Era uma quinta-feira. "Vocês podem ficar aqui, se quiserem". Ficamos. Nos deu uma grana e cópia das chaves. 

 

Naquele mesmo dia, caminhávamos na orla para torrar no Vaporzinho o dinheiro que o dono da boate nos deu. O Vaporzinho era, ou é se ainda existir, um bar que funcionava em um velho vapor que foi colocado no canteiro central da avenida da orla do rio. Mal pus os pés na calçada para atravessar a rua e uma camionete quase me atropelou. O cara jogou o carro para a direita, para cima de mim, certamente para tirar sarro. Xinguei de filho da pura e fiz aquele glorioso gesto com o dedo médio se destacando da mão fechada. Ainda estávamos na metade do churrasco de bode, acompanhado de uma loura estupidamente gelada quando a polícia chegou. O cara da camionete era o tenente comandante do batalhão da Policia Militar, mas foi a civil que veio nos buscar. Não fomos jogados na única cela da delegacia como pretendia o investigador que nos prendeu porque o delegado assumiu o caso. Eu era de menor e felizmente estava sem documentos, mas tinha aparência dos 19 anos que disse que tinha quando ele me perguntou a idade. No meio de muitas perguntas ele quis saber onde estávamos hospedados. Na 'Chicão raspado', somos amigos do M — não vou dizer o nome para não prejudicar o gente boa que hoje é político proeminente — eu respondi. O delegado pegou o telefone, confirmou, e meia hora depois M passou para nos resgatar. Levou-nos para a boate, a geladeira já estava abastecida para as noitadas de sexta e sábado, nos deu 200 gramas de fumo e pediu: "pelo amor de Deus, só saiam daqui no dia que resolverem ir embora". Coisa melhor não podia haver, mas em menos de uma semana estávamos cansados de ficar prisioneiros e pegamos uma carona direta até Salvador.

 

 

 

eureka!

 

 

"Derrière chaque grande fortune, il y a un grand crime".

Honoré de Balzac

 

 

Dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e levantarei o mundo. O correto teria sido pôr aspas na citação de Arquimedes de Siracusa, considerado o maior matemático da antiguidade, e um dos maiores de todos os tempos, mas após citar Balzac optei por ter duas citações, a primeira explícita, entre aspas, destacada, a segunda implícita. Não é frescura de mulher, é que frequentemente preciso mesmo de alavancas e de pontos de apoios para iniciar um texto. Foi Juan Rulfo que me ensinou: "se você está empacada, escreva qualquer coisa que depois o texto flui. Depois você volta e corta tudo que está sobrando". A segunda parte da lição, essa de cortar o que está sobrando é que eu não aprendi ainda. Escrevo e quando vou ler com o objetivo de cortar eu não vejo nada sobrando e vou empurrando mais coisas. Porque uma coisa me lembra outra, que me lembra outra, que me lembra outras tantas. Imagine se eu tivesse mesmo uma história pra contar. Eu acho que Balzac tinha também essa loquacidade exagerada, mas ele tinha muitas histórias para contar e, na minha opinião, não há outro autor que tenha conseguido dar à luz um quadro tão completo de uma época e de uma sociedade. Ele é notável, sobretudo, por suas agudas observações psicológicas. Escrevi quase meia página para encontrar a alavanca: dar à luz. Falta agora encontrar o ponto de apoio para levantar o mundo.

 

Quase todos os animais quando dão à luz comem a placenta. Eu achava que os seres humanos não comiam até o dia que vi o maior rebu nas redes sociais porque Bela Gil, apresentadora de TV que é filha do cantor Gilberto Gil, disse em uma entrevista, que comeu a placenta do seu bebê. Ela justificou dizendo que a placenta é uma substância que não pode ser desperdiçada, que é uma fonte de nutrientes. A explicação me pareceu suficiente, até mesmo porque os animais não são burros, burros somos nós que comemos excesso de sal, de açúcar e de uma infinidade de porcarias industrializadas, mas a sede de saber me levou a pesquisar e eu descobri que a placentofagia é mais comum nos seres humanos do que imaginava a minha vã filosofia.

 

A placenta é rica em ferro, vitamina B12, endorfinas, prolactina, prostaglandinas, oxitocina e outras coisas finas, nutrientes cuja ingestão ajuda na recuperação do corpo pós-parto, como prevenção de sangramentos.  Algumas de suas propriedade ajudam na contração de músculos de células mamárias, o que facilita o início da amamentação e estimula a produção de leite, além de reduzir as chances da mulher sofrer com depressão pós-parto, pois regula os hormônios de forma natural. Estudos recentes revelam que o líquido amniótico e a placenta têm moléculas que ajudam no controle da dor do parto. A tradicional medicina chinesa usa a placenta para tratar infertilidade, impotência, entre outras moléstias.

 

Quis crer que a placenta seria o ponto de apoio, mas já escrevi uma lauda inteira e ainda não sei como justificar a epigrafe balzaquiana que escolhi, porque também acho que atrás de cada grande fortuna há um grande crime, mesmo da minha fortuna, porque é um crime enriquecer vendendo na China um livro que conta as minhas transações sexuais, para usar um eufemismo básico. E assim, misturando placentas com alavancas, eu vou pôr um ponto final nesse texto banal.

 

 

 

 

 

 

máquina desejante

célia musilli

 

 

máquina de lavar

máquina de bater

máquina de moer

folhas

 

máquina de matar

máquina de viver

máquina de fritar

óvulos

 

máquina das machines

máquina do machismo

máquina do capitalismo

máxima desejante:

"só Deleuze trepa gostoso"

 

 

 

máquina de colher cerejas

e guardá-las no fundo vermelho escuro

na pele

na veia

na carne

na terra

placenta — substantivo feminino inominável

desejo — a explosão da cherry bomb

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

2 poemas

daniela delias

 

 

a noite

 

 

bebe com mil línguas

minha noite estilhaçada

 

é quando creio

em tudo o que fere

 

o flanco a flecha a curva

amorosa do arco

 

 

 

leoa

 

 

encosta em sua coxa

um beijo de água-viva

crava em sua carne

uns dentes de mãe-leoa

 

mas a leveza, a sua,

ela come com os olhos

 

 

 

 

 

 

refogado

isadora galvão

 

 

piquei alho

e cebola

refoguei na manteiga

 

depois me deu um branco

abri um vinho tinto

e lembrei-me de que não sabia cozinhar

 

mas joguei na frigideira

tomilho, salsa, alho-poró

 

e deixei ao deus-dará

 

procurei na estante os livros

de nouvelle cousine

e gastronomia gourmet

 

achei só o volume de hilda hilst

que eu levava para

o banheiro

aos dezoito anos

 

e me tocava, até gozar

murmurando os versos

mais libidinosos

 

larguei para lá o refogado

bastava-me hilda

e o telefone da pizza delivery

 

mulher de cama, mesa e banho?

nem pensar

 

a fome dele é de mim

e o refogado que se resolva sozinho

 

 

 

 

 

a primeira noite

mariza lourenço

 

 

Sim, faço questão de esclarecer que nunca fui mulher de frequentar bares à noite e sozinha. Jamais. Jamais. Não por medo, que medo nunca senti. Por cautela, isso sim. Já não bastasse o que falam por aí de mulher que se atreve, que escancara sua condição, que corre atrás de companhia, que bebe, que fuma.  Nunca precisei disso. Sempre fiquei na minha, com a televisão, uns livros bacanas. Vez ou outra, um crochê, um tricô. Tenho um gato, ele esquenta meus pés.

Até semana retrasada.

Meu gato sumiu e a programação da tevê, convenhamos, não valia o estouro da pipoca. Resolvi sair. Coloquei uma roupa legal, uns saltos, um batom. A pé mesmo, para sentir o ar frio da noite, algum perfume, algum ruído. E a mão que, de repente, me enlaçou por trás.

─ Passa logo o celular, a grana e esse anel.

─ Pelo amor de deus, moço, não faça nada comigo.

─ Só isso de grana?

─ É que eu não saio com muito dinheiro. É perigoso.

─ Vamos prum caixa eletrônico.

─ Você está me sequestrando, moço?

─ Cala a boca.

(...)

─ Moço, você já pegou o dinheiro, o anel, deixe ao menos o celular.

─ Perdeu, coroa, perdeu.

O filho da puta levou tudo. Não chamei a polícia. Não voltei para casa. Entrei num bar. E, cá pra nós, não sabia que beber e fumar era tão bom.

 

 

 

 

 

 

 

 
 
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