edição 52 | outubro de 2016

uma mulher de sorte | fome | placenta

 

 

 

ao moço

adelaide do julinho

 

 

rapidinha

x-tudo

festa & foda

 

 

 

 

 

 

sweet child o'mine

adriana brunstein

 

 

A criança não parava, diziam que a culpa era da mãe aquela vagabunda, diziam que a culpa era do pai aquele canalha que comeu a própria cunhada e uma vizinha, diziam que a criança tinha problema de próstata porque enfiava palitos de picolé na bunda quando mandavam, a verdade é que enfiou um só e ninguém mandou, ela simplesmente teve vontade se trancou no banheiro da escola girou o troço para ocupado abaixou o shortinho e a cuequinha e mandou ver, parece que sentiu um incômodo mas nada muito grave, e então contou para um colega o que tinha feito, ficou vermelha igual morango em boca de atriz pornô, talvez maçã em boca de porco, não sabia, era daltônica e tudo tinha cor de vômito com excesso de vegetais, o colega a mandou se foder decentemente e foi suspenso por uma semana, um dia executaria sua vingança de colocar pelos pubianos nos refrigerantes do recreio mas ainda não os tinha, embora soubesse exatamente o que era se foder, na vida e na cama, a criança não, a criança se entupia de sonhos de padaria até o creme sair pelo nariz e então tentava assombrar sua família que preferia o noticiário fantástico de gente que morria de verdade, como eles naquele sofá e mais um velho que não sabiam quem era nem perguntaram, podia ser pai de alguém até mesmo da criança, há alguns anos talvez seu pau ainda levantasse e a mãe sempre teve coxas grossas demais para fechar as pernas, o homem que era o pai mas talvez não fosse arrotava cerveja pedia outra para a criança que não ligava, ela gostava de enfiar a cabeça na geladeira e fingir que ali era outro mundo, e era feliz, frangos sem cabeça e assados com farofa dançavam ao som de cantigas de roda e colocavam a criança lá no meio, toda lambuzada de gelatina mas sem aquela parte que enruga que a obrigavam a comer porque comida custa dinheiro, felicidade de merda, tudo custa dinheiro, então a gente tem que engolir, por isso ela também engolia caroços de azeitonas e depois tinha pesadelos com uma metralhadora que morava dentro de seu corpo e atirava sem parar, gritava e a mandavam calar a boca que não era nem dez para as duas embora naquela casa jamais houvesse silêncio, as paredes mastigavam o tempo todo, ruminando aquelas vidas bestas. 

 

 

 

 

 

 

3 poemas

adriane garcia

 

 

a mulher subindo a montanha

 

 

Inda manca

Mas o morro

Não para:

Ou sobe

Ou desaba

 

Demora o dobro

Agora

Mas leva água

(Nesses anos todos

Escondeu bicas)

 

Vai só

Nesse estado não pode

Correr o risco

De outra rasteira.

 

 

 

a mesa sempre posta

 

 

Quando minha tristeza me come

Não é pouco nem devagar

Alimenta-se de minha alegria

E minha alegria é muita

 

Minha tristeza passa fome

Dias e dias e dias

Mas quando me ataca vem ávida

De até lembrar os demônios

 

Deixa a mesa em miséria

E ainda me diz

(tristemente)

Que eu sou um banquete.

 

 

 

aquário amniótico

 

 

A represa rompeu-se

(Meu rosto preso em lama)

Peixe inocente

Dei um grito

E vim morrer pela boca.

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

sete vidas

alice barreira

 

 

1. bamba

 

 

Ela nascera no circo, filha de um casal de acrobatas. Desde pequena, os pais a incentivavam a seguir seus passos. Mas a menina não gostava daqueles passos e chorava cada vez que o pai ou a mãe, brincando com ela, tentava aproximá-la da linha acima do chão.

Os pais achavam que era apenas uma questão de tempo para a filha parar com aquela cisma, mas só mesmo sob ameaças de castigo e pancada a menina cedeu e se iniciou na corda bamba.

E então chegou o dia de sua estreia. Seu nome no cartaz, a roupa brilhante, as sapatilhas, tudo era novo. Menos o sentimento que continuava carregando.

Subiu a longa escada, parou em frente ao arame, respirou fundo e foi caminhando, passo a passo, até a metade dele. Ali tornou a parar, respirou fundo três vezes, enquanto a plateia inteira prendia a respiração, e deu a pirueta. Um oh de admiração percorreu toda a lona. Mas em vez de pousar de volta na corda, a menina deu outra pirueta no ar, causando mais admiração ainda. E em seguida mais uma e mais uma e mais uma. E seguiu dando piruetas no ar enquanto a plateia, seus pais e todos no circo olhavam imaginando até quando.

 

 

2. sim

 

 

Todos os dias, um pouco depois das seis da tarde, ela vai até o quarto, abre o guarda-roupa e tira de lá o traje, que veste com cuidado. As meias finas, o  longo vestido armado, as mangas de renda, os sapatos também brancos, o véu e a grinalda.

Então senta-se em frente à janela e aguarda. Quando os sinos no campanário da igreja em frente tocam as sete horas, ela se levanta e, feliz, joga o buquê pela janela do oitavo andar.

 

 

3. ouro

 

 

Passou a manhã com a manicure da equipe, fazendo a preparação, desde a massagem nos dedos e nas cutículas até o esmalte nas cores da bandeira. Está mais nervosa do que de costume, e não é para menos, pela primeira vez representa o país numa olimpíada. Terá sete concorrentes. Serão, daqui a 35 minutos, cinco homens e três mulheres. É o primeiro e único caso de prova mista na história olímpica. A prova de roer unhas sem parti-las. Ela agora olha suas longas unhas e sonha que está no pódio, mostrando ao mundo sua medalha de ouro, segurando-a bem firme com os dez dedos e suas unhas já roídas com perfeição e em tempo recorde.

 

4. trajeto

 

 

Da praça General Osório ela pega a praia, vai andando pela Vieira Souto até a altura do Jardim de Alá, sobe dois quarteirões de volta, segue pela Ataulfo de Paiva, chega na praça Antero de Quental, dobra na Bartolomeu Mitre, passa pela praça do Jóquei, continua toda vida pela Jardim Botânico até rua Humaitá, em seguida desce a Voluntários da Pátria, dobra à direita lá embaixo pra pegar a rua da Passagem, atravessa o túnel Novo,  a Barata Ribeiro toda, cruza o outro túnel, entra logo na Sá Ferreira, sobe a Bulhões de Carvalho, dobra na Antônio Parreiras, depois na Jangadeiros e pronto: está de volta. Mas não encontrou ninguém.

 

 

5. o destino das espécies

 

 

Acordou no meio da noite com aquele estranho ruído. Levantou-se, olhou tudo em volta no quarto, na sala, na cozinha e voltou para a cama. O ruído permanecia. Aquietou-se e ficou ouvindo por muito tempo, até decifrar aquele som. Eram os cupins roendo o forro do telhado. Demorou um pouco até pegar no sono novamente.

A partir dessa noite era difícil dormir. Ouvia os percevejos indo e vindo pela casa, as baratas comendo migalhas, as asas dos insetos que batiam e batiam por toda a vila.

Foi a um psiquiatra, que lhe receitou comprimidos para dormir. Mas nem aumentando a dose o sono vinha. No máximo cochilava e logo era acordada pelas formigas sempre carregando alguma coisa, pelo zumbido dos mosquitos, o tecer de pequenas aranhas, a desorientação das moscas, os círculos das mariposas, o voo vaidoso dos besouros e seu baque nas paredes.

Até que resolveu tentar se comunicar com os insetos. Foi reproduzindo os sons que ouvia e teve a impressão que, aos poucos, eles se aproximavam. Ansiosa com a situação, contou tudo ao psiquiatra e ao chefe. Ambos foram da mesma opinião: estava ficando louca. Ela devia, em primeiro lugar, dedetizar a casa. E depois encarar um tratamento demorado.

Mais tarde, em casa, ela perguntou a vários insetos se estava louca. Eles disseram que não. Passou a noite em claro e, ao amanhecer, tomou a decisão. Largou o trabalho e passou a aprender com as aranhas como produzir os fios para o seu casulo.

 

 

6. a day in the life

 

 

Eleanor dorme no sofá da sala e, na mesinha ao lado, seu celular toca. Bom dia! Mas bom dia mesmo é no banho com o novo Refreshing Up, o sabonete que traz felicidade.

Eleanor toma seu banho, se veste e sai para o seu trabalho. No escritório, liga seu computador e se põe a ler os relatórios, até que seu celular toca. Hum, que fominha! E tem coisa melhor no almoço do que a pizza com Muzza-Muzza? Duvido. Muzza-Muzza: a muzzarela da alegria.

Eleanor desce as escadas e hesita entre todas as pizzarias da praça em frente ao seu trabalho. Finalmente se decide pela da esquina, almoça e ainda leva uma fatia para quando sentir uma fominha.

No final da tarde Eleanor se surpreende parada, olhando pela janela a chuva que despencou lá fora. Celular. Nossa, parece que o mundo desabou lá fora! Mas aqui dentro você fica seca e segura graças à superproteção de Penta-Fix. Dá até vontade de sorrir, não dá? Eleanor acha que vai dar sim, assim que ela acabar de colocar seu absorvente, no banheiro do escritório.

Com a chuva, o trânsito fica ainda pior e Eleanor respira aliviada quando entra no elevador do prédio e aperta o seu andar. Assim que salta, ouve o seu celular, pega o aparelho na bolsa, junto com as chaves de casa, e, enquanto abre a porta, fica sabendo que a noite que tem "Eu Ganho" é um show pra quem participa e pra quem assiste.

Dessa vez Eleanor tem que concordar. É um show mesmo, ela pensa e se atira no sofá com um dos seus controles remotos na mão, até que o sono que já começa a rondar se assusta com o celular. Boa-noite-Muzza-Muzza!

Eleanor acaba de comer o pedaço de pizza que sobrou do seu almoço. Já nem ouve a TV mas ainda mastiga. É o seu celular quem torna a lhe chamar de volta. Ah, minha caminha macia e meus sonhos com Lexvotril! Eleanor desiste de botar sua camisola e já chega na cama dormindo. Ah, seus sonhos.

 

 

7. o veredito

 

 

Há três anos saíra o veredito: condenada à morte na forca. A sentença se cumpriria em três semanas. No dia da execução, foi acordada na hora marcada, um pouco mais cedo do que de costume. O café já estava na mesa e tudo funcionava com perfeição, como sempre. Foi levada para o local da execução e, no caminho, começou a receber todas as informações referentes ao enforcamento. Quantas pessoas já haviam sido enforcadas ali, que tipo de crime a maior parte delas cometeu, quanto tempo o cérebro ainda vive após o corpo despencar, que reações físicas e químicas o organismo detona antes, durante e até mesmo após a queda. Finalmente chegou ao cadafalso e foi preparada para o último gesto, ainda com mais informações: de que material é feita a corda, qual o tipo de madeira usada no patíbulo, quantos carrascos já passaram por ali. Foi até mesmo apresentada ao seu próprio carrasco, embora já estivesse vendada e com a corda no pescoço. O homem puxou conversa, trocaram algumas frases. Por fim seguiu-se um profundo silêncio e ouviu-se o ruído metálico de uma alavanca sendo acionada. E tudo se apagou.

Acordou na enfermaria, onde lhe informaram que houvera um problema técnico com a alavanca e sua execução falhara. Ela desmaiara com certeza por toda a tensão envolvida. Com um pedido de desculpas do diretor do presídio em pessoa, foi reconduzida à sua cela e informada que o procedimento seria refeito na manhã seguinte.

E realmente na manhã seguinte, ela foi novamente acordada um pouco mais cedo do que de costume e mais uma vez passou por todo o ritual, com novas informações e novos dados sobre todo o processo. Até a alavanca ser novamente acionada.

Mais uma vez acordou na enfermaria e foi-lhe explicado o novo defeito, desta vez na polia que movimenta a corda. Mais uma vez o diretor se desculpou pessoalmente e ela retornou à cela.

Passaram-se cinco meses de execuções diárias e malsucedidas. Ela já conhecia de cor todo o funcionamento da forca, já cumprimentava o carrasco pelo primeiro nome e perguntava pela mulher e pelos filhos dele. A única surpresa eram os infindáveis defeitos, sempre um diferente do outro, chacoalhando dentro de sua cabeça.

Até que ontem, pela primeira vez, os guardas se distraíram e a levaram de volta à cela sem retirar o cinto que lhe segurava a roupa de execução. E assim que trancaram a porta, ela se enforcou nas grades.

 

 

 

 

 

 

denúncia

ana criolina

 

 

você vai morrer mesmo

ele disse

esse verme que carrega no útero

ele disse

seremos todos infelizes

ele disse e eu fugi

da cidade cinza

mochila maior que o corpo

bagagem no bucho

sem olhar pela janela do ônibus

sou uma mulher de sorte

ele disse

por: eu o tive

não, ele me teve

ele disse

e estamos todos infelizes.

 

 

 

 

 

 

festa

ariana zahdi

 

 

Nem antialérgico hipnótico benzodiazepínico álcool opioide anestésico Paulada nos miolos queda do sexto andar atropelamento Nada tira a vigília destes olhos escancarados sobre o mundo Sobre a cama grande e repleta de tua ausência barulhenta Que não me deixa dormir

 

Nada fecha meus olhos pesados

Cansados

Presos no tempo e distância que já calculo há não sei quanto

 

Cante. Alguém cante uma canção bonita para eu dormir. Uma melodia que me transporte. Daqui para mais adiante. De agora para mais um pouco à frente.

Aqui dentro tudo tamborila e não me deixa fechar os olhos, longe que estão meu pensamento e minha alma.

 

Sorte a minha: aqui dentro toda memória é uma festa. Teu corpo, minha casa e descanso.

 

 

 

 

 

 

3 poemas

anna apolinário

 

 

quaerens quem devoret*

 

 

o coração dela é ninho

de vespas

das mais venéficas

até a imponente

tarântula

sucumbirá

 

o amor, ela devora

ou serve em banquete

os convidados enfastiam-se,

fálicos

não demora e são eunucos

da viúva negra

 

 

*buscando a quem devorar

 

 

 

desejo

 

 

tornei-me casulo

o amor teceu uma face

 

silenciosamente

o ventre intumesceu de vida

 

papoulas não mais perturbam

uma febre trouxe-me a dádiva

 

nua ao espelho, comovo-me

placentária, guardiã, ancestral

 

sou casa de dois espíritos

 

 

 

destruição

 

 

os olhos do ódio são dourados

a língua víbora lasciva

é doce a cicuta oferecida pelo amante

sou um corpo que tomba entorpecido

o ventre arde como se amasse o veneno

 

o anjo descostura-se do céu quente

não mais seda, agora apenas víscera

doença que despenca

olhos estéreis contemplam

o início da aflição

pequena flama nascente

entre as pernas

sob a luz áspera da manhã

fabrico esta morte

 

um lépido toque de mãos

e os pelos pubianos cintilam

dentro, um grito rubro se agita

violência rasgando o veludo

agora se esvai de mim

terrível lótus sanguínea

pequenino corpo que se tornou rio

 

 

 

 

©guy bourdin

 

 

 

ópera anônima

assionara souza

 

 

O domingo, essa criança entediada

Sozinha no pátio quando todos já se foram

Um casal de namorados na praça da matriz espera o penúltimo ônibus

Asas farfalham ao tinir do sino

A travesti desfere palavras firmes contra o mofo de tristeza acumulado nas horas

E uma prostituta decide que o próximo será o último

Na moldura luminosa do oitavo andar

Duas mãos desistem da fuga infantil

E algemam-se a um maço de folhas nas quais os olhos desmaiam

Demônios procrastinadores sobejam uma culpa terrível

O domingo persiste a me esmolar palavras

Nunca decifro sua mímica ansiosa

Escondo-me entre versos simbolistas

Mas hoje não houve lua nessa cidade sem mar

Com o rosto em birra, passeia-me pelos livros na estante

A tipologia sem corpo fustiga seu peito com uma solidão faminta

E o domingo põe-se a arrastar fotografias em álbuns fantasiosos

Sugere o telefonema, mais uma vez adiado

Chafurdam vãs parvoíces nas telas eletrônicas

Recito no pensamento o verso nu do koan

Enfim, branco, tonto e triste, do jeito que veio ao mundo

Arrasta-me para o quarto convencido de ter feito o melhor que eu merecia

Uma saudade sem braços sufoca os últimos insones

Até que drágeas certeiras deslizem garganta abaixo

No silêncio pastoso que escorre de algum subúrbio

Duas marmitas sobre a mesa resistem e permanecem

Como se o novo dia se fabricasse a partir dos escombros da véspera

 

 

 

 

 

 

 

 

 
 
temas | escritoras | ex-suicidas | convidadas | notícias | créditos | elos | >>>