edição 51 | julho de 2016 vertigem | outono | no osso
©cintia ribas | slices of a sensitive body | 2016
esboço
"A gente morre um pouco em cada poço". (Caio Fernando Abreu)
A gente morre um pouco em cada poço Em cada fosso Em cada passo Em cada faço
A gente morre um pouco em cada poço Um pouco Um mouco Um louco
A gente morre um pouco em cada poço Ficando no osso Quebrando o pescoço E vendo que a vida foi só um esboço.
outonal
Pensei em te escrever uma elegia Que não tivesse só tristeza e agonia Mas o pranto se instalou em minha pena E acabou por inundar o meu poema.
Pensei então em invocar as belas flores E enfeitar com suas pétalas minhas dores Mas o outono se instalou em minha pena E acabou por murchar o meu poema.
Percebo então que a poesia já está pronta E meus rabiscos se assemelham aos amores: São instáveis, passionais, de faz-de-conta, Cantam no palco o calar dos bastidores.
moinhos de vento
os seres do outono não fazem longos planos vivem — plenos — seu incerto prazo
os seres do outono não têm receio ao dar seus saltos de encontro ao inesperado
são ciganos saltimbancos quixotescos donos de seu louco enredo
amam soltos ao sabor
dos sonhos
desaforo
no outono destoo do todo
perco o tino adquiro tutano saio do tom
desafio o destino
: se for homem vem comigo ser flor
[de]composição
todo esse outono para nem tanto
os planos desfolharam os poemas falharam [como os filhos e as flores falham]
amarelaram os frutos quando já éramos húmus
logo em pauta : julho e todo um inverno para nem imagino
pela fresta
Lá fora, o mesmo céu de outono. Idêntico ao de ontem, nas cores, nos intentos. Chovem cúmulos e cismas. Sangram feridas, fadigas suturam. Secam. Coçam por toda uma vida.
Um sol submisso curva-se, rendendo-se ao inverno novo em folha. Ensaia o vento sua nova trilha, que oscila: vaia e assobia (depende de quem rege a filarmônica do dia).
Dentro, um cão ressona. Baba, bêbado de sonho (e pança cheia). Uma chaleira desafina no fogão, contrastando com a ária da primeira passarada. Na casa inteira reina o aroma de broa. O pão caseiro sovado em companhia do primeiro vazio da estação (outros virão a calar).
Há uma véspera do que não convém. Existe uma estreia que não convence. Mas o inverno, vestindo seu surrado suéter, comparece, acobertando a névoa das urgências. Que não se dispersa.
é o que há para agora : pão fresco poema vencido e chá
de espera
*
vontade única e cem por cento louca
roer tuas unhas comer tuas células mortas
enterrar em mim as partes que descartas de você
ser a tumba onde sepultas os poemas de amor
antes do amor nascer
clandestinos
quando nossos pares — unha e carne — já não casam
caçamos felicidade — (self) selvagem — em ossos e orifícios
ímpares
©cintia ribas | "variações na paisagem" | museu da gravura de curitiba | 2015
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