edição 51 | julho de 2016 vertigem | outono | no osso
Sou oito de maio, 12 graus de altura e um homem de regata carrega um gato nas costas no meio da madrugada. Cada casa já está apagada, bem alimentada e aquecida, menos as nossas; por isso, insisto em segui-los e enceno o burlesco detetive escocês.
Um gato adulto pesa em média entre 2,5 kg e 7kg, menos Aine Noon (deve ter mais de 20kg). Aine Noon tem semelhanças com guaxinins e quem notou isso pela primeira vez, em meados dos anos 1950, foi o velho Bear, com espingarda no ombro e trôpego de tanto andar. Partilhou olhares e uma cama de palha com a fera e reiterou a impossibilidade de escapar após extenso contato visual.
Garfield, Félix, o de Botas. Qual seria seu nome? Minha bisavó diz que, no tempo dela, os animais de estimação viviam no mais completo anonimato. Partilhavam cestinhas e namoradas. Isso de Totó, Rex e Mingau foi num depois, já esquecido, e só trouxe conflitos: não há nome que chegue para tanto filhote.
Nossas ruas são pessimamente pavimentadas e, para não perder o equilíbrio, o homem de regata faz malabarismos e chega até mesmo a sambar. Perfeita sintonia que não me permite escapar. Uma face voltada para frente e um focinho para o passado. Aine Noon me fuzila com o olhar perquiridor, mas não tenho respostas. Ajudaria se ele desembuchasse.
Já nos afastamos consideravelmente do centro da cidade e ainda sinto medo. Qual foi a última vez que comi? O verão parece que foi ontem e esse outono tem convertido minhas certezas em vertigens, preciso escapar e aprender a andar com minhas próprias pernas.
Duas vezes por semana faço o mesmo caminho. Há um atalho, encurta essa distância pela metade, mas o homem com quem vivo não me dá ouvidos. A muito custo aprendi a ler e escrever sozinho e hoje tento ganhar a vida com poemas fajutos. Paciência. Minhas origens são modestas, todavia sou bastante respeitado pelo meu povo.
Já está quase amanhecendo, quase ousamos nos tocar, mas a presença do terceiro elemento é incômoda e inibe nossa magra interação. Meus olhos ardem, não menos que o estômago, e confesso tirar cochilos enquanto ando (dentro dos veículos é mais confortável). Sinto pena desse estranho felpudo. Suas carnes magras não são atraentes e, honestamente, como enxerga com esses grandes duplicados?
O homem com um gato nas costas é o título do meu primeiro livro, lançado em maio do ano passado. Na noite de autógrafos minhas mãos suavam frio, apesar da incipiente geada lá fora, mas tive coragem, pela primeira vez, de autografar com minhas almofadadas: quatro dedos, três garras, dois amigos e um segredo. Excêntrico, disseram, vanguardista, vibravam os entusiastas, loucura, a censura especializada.
Desisti.
Agora já deve ser junho. Os ventos catabáticos não chegam até aqui, mas sinto sua ausência nos ossos gastos. Mês que vem completo anos e começarei uma nova história, sobre gatos, talvez, mas serei verossímil e picaresco. Transformarei o gato em bandido fora da lei, que avacalha e se esculhamba, e os humanos em seus reféns. Um mundo onde o dia dura oito horas. Um mundo sem antes e depois, uma enxurrada de agoras, como nós animais costumamos apreciar.
Devo ter perdido a carteira com o endereço dos doutores, preciso de um check-up. Na nossa idade é comum começarmos a variar, trocar nomes e datas, fingir que não reconhecemos rostos. Nota mental: não passar duas noites seguidas fora de casa. Paro alguns segundos e recosto-me no muro. Uma felina cor-de-rosa me pergunta as horas e quase desmaio. É hora de acordar.
É sempre assim que Aine Noon aguarda com impaciência minha volta e, com indizível satisfação, reencontro-lhe à soleira, mesmo nessa névoa áspera que é pura combustão.
Clarissa Comin é doutoranda em Estudos Literários na UFPR e professora de língua francesa. Em parceria com Julia Raiz escreve semanalmente no coletivo literário Totem & Pagu [totemepagu.wordpress.com]. Tem traduções e textos publicados em revistas como Qorpos, Mallarmagens e Enfermaria 6. Nasceu em Fortaleza e reside em Curitiba.
©cintia ribas
Acordei com o sol já me alcançando ali jogada no sofá-cama da sala, o gato e as garrafas do meu lado, cerveja tem dessas de me deixar com um sono, tinha ficado com preguiça e alcoolicamente confortável o suficiente pra dormir ali mesmo, de novo, terceira vez na semana desde que tinha perdido o emprego. Antes que conseguisse levantar de fato, o cheiro de café circulando pelo ar me deu certa vontade de viver, algum clássico do rock soava de um dos quartos dando o ritmo pra fumaça que dançava na luz. A cabeça ainda deu uma pesada quando fui buscar a caneca e o pescoço doía da posição que eu devo ter passado a noite inteira, olhei no celular e na tela ainda tava o pornô que eu tinha assistido antes de apagar, mesmo assim nenhum sonho molhado. Tô achando que a minha mente só me ilude quando os meus olhos estão abertos.
Parece que quanto mais o tempo passa, menos direito a gente tem de surtar, dar uma de louco, fazer algo inusitado sem precisar pôr a culpa na bebida. Vinha sentindo falta da leveza da minha juventude, todo aquele fogo que andava comigo, toda a sede de mundo. Por onde estaria a parte de mim que dançava na rua a caminho das festas? Enquanto isso minha autoestima e a minha imunidade competindo pra ver qual era a mais baixa. Já tinha uma quantidade indecente de remédios sobre a mesa, mas o tanto que eu me odiava dia sim e não, chegava a ser ainda mais vulgar. Minhas experiências mais sexuais estavam sendo os banhos quentes com o chuveiro na temperatura certa, eu sempre esquecia de comprar pilhas, coisa da qual me arrependia profundamente nas poucas ocasiões de total privacidade pra usar um brinquedo. Tava há dois meses sem transar e o cara veio sugerir que o assistisse comendo a esposa. Perguntei se teria vinho, pensei por dois minutos e parecia mesmo que essa era uma péssima ideia. Não apenas aceitei como fiquei levemente ansiosa pelo que essa experiência poderia causar em mim.
Tô engolindo meu romance. Hora olho meu reflexo um pouco longe no espelho, acho a lingerie que estou usando bem bonita, pensando que fiquei até melhorzinha dentro dela, aí volto a atenção para os dois na minha frente. Tinha aberto a garrafa nos primeiros minutos de oral, era uma das coisas que eu gostava nele, não tinha frescura com boceta. Nada mal pra uma quinta-feira, ou seria terça? De novo admirava minha lingerie, dava pra ver que eles se amavam pela maneira como era o sexo, os beijos eram apaixonados, as carícias. A garrafa já estava nos últimos quatro dedos quando me convidaram pra participar, mas esperei até sangrar de novo antes de marcar o encontro, pra que forças maiores me livrassem da tentação. Ele olhava pra mim enquanto metia nela e parecia estar me provocando. Lembrei da sensação de quando ele me comia naquela mesma posição, me perdi no branco das paredes, dei o último longo gole. A música que tocava agora tinha sido a mesma que a minha ex-namorada tinha dançado pra mim num bar depois de uma dose de tequila. O gozo dele me distraiu da visão dela rebolando naquela noite, mas fiquei feliz que tinha acabado, tava pouco interessada em lidar com o possível ciúme que eu tinha sentido, só queria pegar meu celular e pedir pra minha ex lembrar que me amava e que me escolhesse dessa vez.
Tava tão apaixonada que tinha medo quando ela me olhava tão de perto, medo que visse minhas imperfeições na pele, no corpo, na alma, que deixasse de me querer. Pensava agora no que ela poderia ter visto pra querer ficar longe de mim todo esse tempo. Algo me dizia que ficaria sem encontrá-lo mais uns meses, não neguei o beijo que ele procurou no caminho da minha casa, foi o primeiro homem que eu amei, certeza que tinha levado um pedaço do meu coração com ele. Disse-lhe que ficava mais bonito entre as minhas pernas, mas tinha um certo contentamento em mim por vê-lo feliz com alguém. A memória do cheiro dele não ia durar até um próximo encontro, quase pedi que ficasse um pouco mais, lembrei que ele tinha uma mulher pra quem voltar e o quanto eu queria a minha de volta.
Um problema essa dualidade em mim, ser 8 e 80, agonizar de tédio, de marasmo, do torpor que vem junto da solidão, solidão que eu causo. Vez e outra arrastar alguém pra essa solidão só pra sentir qualquer coisa, nem que seja dor de coração partido por mais uma paixão de um mês. Especialista em buscar emoções e lidar da pior forma possível com elas. E o estômago ainda revirando daquele experimento da tarde, ou da bebida, mas afinal era sábado, ainda não passava das 22h e eu tinha alguns demônios pra exorcizar num bar de rock. Mais uma vez, com sentimento.
Ellen Alencar (Manaus/AM, 1989): formada em Psicologia, me arrisco na escrita desde que me lembro de existir, mas só agora dividindo com o público o que sai da minha mente caótica. Tenho alguns contos eróticos no Portal Xibé, aspiro ser sexóloga e viver mais ao invés de só existir.
Sentei-me aqui para escrever uma crônica e um dos assuntos que podem constar numa crônica é o hábito humano da viagem. Quando eu tinha oito anos minha mãe e eu tivemos que arrumar nossas coisas muito rápido, enfiar o máximo que a gente conseguia no carro e dirigir para o norte. Todos os lugares são iguais, minha mãe mastigava com as duas mãos coladas no volante. Todos os lugares são iguais com pontes de pedra e meninas que se jogam pela janela. Suicídio é um outro tema que pode aparecer em crônicas, talvez daquelas mais sombrias publicadas no sábado e não no domingo, porque segunda é dia de trabalho e então é preciso que as pessoas estejam saudáveis para o trabalho. O uso de medicamentos pode aparecer em crônicas. Os malefícios da combinação direção e álcool deveriam aparecer em crônicas.
Minha mãe e eu íamos ao norte, um dia me sentarei para escrever um guia de viagem e listarei os lugares por onde não passamos juntas. Quando finalmente chegamos, o homem da recepção foi como pode atencioso, se não fosse o detalhe de ter ficado verde e ter obrigado minha mãe a responder ao espírito que se enchia nele como um balão de outono, se não fosse por isso recomendaria o hotel no meu futuro guia de viagem ou na crônica de domingo. As estações do ano podem ser temas para uma crônica trimestral ou a cada seis meses se estiver um calor insuportável. Ficamos nesse pequeno e aconchegante quarto no final do corredor e pela manhã caminhávamos na areia fofa que chiava como se pisássemos serezinhos emitindo sons agudos antes de morrer. O homem e a morte, o homem e o mar, o homem e o infinito: são os únicos temas possíveis para crônicas.
Na água cada criança tinha sua própria onda para enfrentar, uns a furavam corajosos com demasiado ar nos pulmões, outros tentavam estupidamente escapar em cambalhotas e seus pedidos de socorro estouravam como bolhas salgadas antes de chegar à superfície. As pessoas viajam por muitos motivos, diz o cronista, para entrar em contato com diferentes culturas, experimentar sabores inéditos, refrescar-se em novas paisagens, para fugir, para dirigir o mais rápido possível, para chegar em lugar nenhum, para se afogar. O momento de fazer as malas é sempre um tormento, todo viajante experiente sabe disso. Você caminha até o meio do corredor e se esqueceu dos óculos escuros em cima da escrivaninha, agarra como pode as chaves segurando algo pela boca e lembra que não pegou a pasta de dentes, sua mala se fechou sozinha sem dois pares de sapato, lá fora a maresia força as portas para que elas não possam ser abertas por dentro.
Minha mãe carrega eu mais três malas, corta o vento nas estradas, imagine que estamos no passado e ninguém lê mais do que um manual de mecânica básica e dois poemas soltos sobre amores dispersos, mulheres bonitas e cruéis. Os padrões de beleza ao longo da história — um paralelo com o dia em que eu e minha mãe compramos nosso primeiro automóvel: será o tema da minha próxima crônica. Os classificados se soltam da mão de um cara que segura com a outra um cone de sorvete pela metade lê uma notícia sobre o aparecimento de tubarões comedores de criancinhas covardes na costa leste. Longe ao norte um jornal gruda no nosso para-brisas e encurta as visões de longo alcance.
Julia Raiz é mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora de Produção Textual. Em parceria com Clarissa Comin, criou o blogue de escrita Totem & Pagu [totemepagu.wordpress.com], projeto que já rendeu sarau, exposição e oficina. Tem textos publicados no jornal curitibano RelevO e nas revistas Mallarmargens e Zunái. Também participa de projetos de incentivo à escrita e leitura, como o Leia Mulheres e o coletivo Marianas.
©cintia ribas | "variações na paisagem" | museu da gravura de curitiba | 2015
~
penso em meninas cujos úteros funcionam como um desentupidor de pia. o colo é a embocadura. rente à coluna vertebral, temos o cabo. imaterial, mnemônico. cabo-fantasma, vestígio de uma ideia de kundalini preta que tem sido passada de boca em boca das avós às mães e das mães às filhas, de geração em geração
*
à noite, o diabo aparece e pressiona e puxa como se pudesse desentupi-las de si mesmas. isso se deve a algo inexplicável: a familiaridade do diabo para com todas as coisas peludas
*
no movimento, elas se deixam sugar por elas revolvem-se, narcísicas rindo. roxas, como se estivessem possuídas
~
buscar um deus das rarefações sonhar com um cavalo azul todas as noites e esperar que o vento varra meu rosto e minha boca caia em desuso
*
educar-me pelo incandescimento das coisas que esvoaçam: cortinas, roupas em varais, cabelos de meninas especialmente os de meninas mudas, porque respondem a ventos que circulam apenas na imaginação das libélulas
*
acompanhar o instante em que o pó se ergue do chão contra a luz quando varro a casa atravessá-lo
*
[pensar em irmãs carmelitas de corpos indescritivelmente altos pensar em caspa caindo de suas cabeças altas enquanto se penteiam]
~
as meninas tristes se escoram nos parapeitos das janelas
e dormem
os moradores da cidade pensam que elas são coisas com as quais as próprias janelas sonham
e que sonhar é um tipo de transbordamento
de cabelos
Mar Becker nasceu em Passo Fundo/RS e vive em São Paulo. Publicou alguns de seus poemas na plaquete Perséfone, pelo Centro Cultural São Paulo (Coleção Poesia Viva). Formou-se em Filosofia (UPF) e tem especialização em Epistemologia e Metafísica (UFFS). Atualmente, estuda alemão. Faz bichinhos e bonecas de crochê (amigurumis).
» Imagens
Cintia Ribas nasceu em Curitiba, em 1979. É Artista Visual graduada em Pintura, com pós-graduação e especialização em Poéticas Visuais, ambas pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Tem, ainda, especialização em Educação Especial Inclusiva. Desenvolve, há 05 anos, um trabalho de arte-educação em psicanálise, com prática em atelier na Clínica Enfance, situada na Rua Paula Gomes, no centro de Curitiba. A arte, nesse espaço, faz uma investigação subjetiva em processos de produção e aparição da imagem, intenções estéticas, simulação artística e mapeamento das distâncias entre espaço imaginário e simbólico. Estuda as plantas a partir de uma vivência na zona rural, onde mora há dois anos. É um dos membros do CCC Clube da Colagem de Curitiba, onde atua na curadoria e oficinas de prática de colagem. Sua produção visual caminha na linha entre fotografia, escultura, taxidermia e jardim. Nesse encontro entre corpo, natureza e tecnologia, abre-se espaço para criação de novos dioramas acerca de espécies endêmicas que vem pesquisando na zona rural.
|