edição 51 | julho de 2016

vertigem | outono | no osso

 

 

 

a estação do tempo

lia beltrão

 

 

Mãe, o que é outono?

Não sei direito, filha. Dizem que é uma estação do tempo.

E onde fica essa estação, mãe?

Dizem que fica lá bem longe. Onde o sol é morno, as noites mais longas, as luas mais cheias. Onde as folhas caem e as árvores ficam nuas.

E o trem que passa aqui chega nessa estação, mãe?

Chega não filha. Tem que ser o trem do tempo.

E quando passa, mãe, o trem do tempo?

Passa o tempo todo, filha. Mesmo dormindo, o trem do tempo passa.

Vou dormir, mãe. Quero andar no trem do tempo. Quero ir pra esse longe. Deixar cair meu vestido. Ficar nua com as árvores, longe dos olhos dos homens. Sentir o morno do sol amornando minha cara. Ficar mais tempo de noite namorando a lua cheia.

Vai, minha filha, adormece. Pega no sono esse trem. E se no outono encontrar outra menina despida correndo por entre as árvores, sou eu que fiquei por lá.

 

 

 

©cintia ribas

 

 

 

6 poemas

líria porto

 

 

suicida

 

 

o que faço é no aberto

no espaço

não como um pássaro

(não tenho costas quentes)

eu me jogo — folha seca

e rodopio

 

(só o faz quem tem coragem

ou loucura)

 

 

 

 

curvas

 

 

perdeu-se — anda em círculos

não acha o caminho de volta

e nem quer

 

acostumou-se à vertigem

e voltar para casa é viver

sob regras

 

 

 

 

perdição

 

 

no outono

as árvores perdem as folhas

os anjos perdem as penas

o vento perde o rumo

perco a cabeça

e o prumo

 

todos — sem exceção — perdidos pelo

c r e p ú s c u l o

 

 

 

 

terceira estação

 

 

caem as folhas

há no entanto um consolo

 

o vento ergue-as um pouco

e antes que toquem o chão

 

são borboletas

 

 

 

 

cachorro

 

 

come a carne

(esta parte lhe interessa)

rói o osso um pouquinho

mas depois

enterra-o

 

vai vadiar

encontra outras cadelas

come carniça

e retorna

 

remexe a terra

suja o corpo

o focinho

rosna

(um osso precisa saber que tem dono)

 

então deita

e dorme

 

 

 

 

bodas de osso

 

 

mentiras não houve

apenas silêncios omissão de fatos

ausências

insônias

 

para dourar a pílula

mudavam as vírgulas

de comum acordo

:

durou uma vida

 

vida?

 

 

 

 

 

 

6 poemas

norma de souza lopes

 

 

incompetente

 

 

de tanta antipatia que tenho do medo acabei por lhe dizer que morrer não era assim tão fácil uma vez que já tentei três vezes e ainda estou aqui

ao que ele me respondeu rapidamente "você é muito incompetente" e rindo disse que também queria morrer mas tinha preguiça da vertigem e dos doze andares que é o que os médicos afirmam ser o tanto que precisamos subir para morrer antes de chegar ao chão

mas agora não, não é preciso pensar mais nisso, pois devo amor a tanta gente, família, amigos. filhos que sofro só de pensar que poderiam chorar no meu funeral

e vou adiando com drogas lícitas o dia em que estarei passando a língua no umbral

 

 

 

 

você entende Jonas?

 

 

— você entende jonas?

um país não é um corpo

está mais para colônia de bactérias

nunca se é suficientemente inocente

a ponto de perder completamente a ignorância

estaria pronta para partir

não fosse esses filhos

e minha necessidade de amor

— há amor no além-túmulo, jonas?

 

a falta de paixão momentânea

a mais abjeta preguiça

e essa vertigem que me tira o chão

tornam hipócrita a pergunta

por que fracassou o projeto de humanização?

nunca houve projeto

era mais um salve-se você mesmo

 

— jonas, sou mulher

tenho um corpo e estou viva

mas não há meios de ser livre

bom era voltar a ser animal

sem paixão ou esperança

animais não estão

eles são corpo e vida

e não fazem perguntas

acerca de animalização

 

 

 

 

nem todos os sábados são azuis

 

 

eu, sem amor, não quero acordar

já é tarde e me arrasto até a janela

incrível em sua luz sépia de outono

a cabeça uma cúpula de cristal

ou não, de gelo, melhor dizer

um pé descalço

o joelho ralado

insistem na campainha

testemunhas de jeová

 

cuspo esse mundo amargo

e sóbrio que o sábado me dá

um quilômetro de grito

o corpo fracionado

me lembra que a liberdade

é efêmera como uma gargalhada

 

 

 

 

promessas

 

 

é outono e março

dói nos olhos como areia

sozinha com as minhas obsessões

uso palavras fortes

apalpo para dentro minha carnes

já não há lugar em mim

corpo sem volta

grita suas dores, algoz

ao menos já não sangra

nenhum filho me guarda

em seus sonhos

 

eu, um animal sedento

de atenção e companhia

espero alguém com quem

fazer um pacto de sangue

coleciono pedras de cristal

estados de transe

agendas criptografadas, ironias

álbuns de figurinhas

escombros da torre de babel

e catálogos de cata-ventos artesanais

 

meu habitat natural

apenas pontos

de esquecimento e fuga

cá dentro, muito fundo

uma redoma de imagens

tão bela nas velhas fotografias

sempre, sempre promessa

que antes de cumprir se acabou

ainda cesso essa inveja de mim

do tempo em que tampouco

soube me amar

 

 

 

 

1° de abril

 

 

reconheço na insônia

um modo de negar a morte

corte às avessas

que começa no osso

até chegar à pele

 

meu modo

de desvelar a mentira

por trás de todas as coisas

 

entretanto não há ódio

em minha ciência

veja como ouço sem vômitos

as atrocidades que dizem

os portadores da trapaça

alegórica chamada verdade

 

 

 

 

esperança

 

 

envergonho, mas não quebro

veja quanta coragem há

em meus ossos largos

para mais uma contradança

 

ver todo dia, toda a Terra

me tirava o fôlego

turvava a visão

e eu nem percebia

que não era questão de

perspectiva, mas de imaginação

afinal quem pode ver tudo?

 

tanto tempo flutuando

como peixe branco

de barriga para cima

até que pude respirar

 

aquela que costumavam chamar esperança

pediu pousada por aqui

vejo bravura em seus olhos

e como dança, como dança

 

ela está me ensinando a costura

dos dias felizes

cada ponto e seu nó

cetim, chita e filó

 

dá o timbre do uivo

o mapa no osso

e couro onde afio

dentes de raposa

 

aquela que costumavam chamar esperança

pediu pousada por aqui

vejo bravura em seus olhos

e como dança, como dança

 

 

 

 

 

 

Ca.T

priscila lira

 

 

Sempre que chegava mais perto e começava a desbravar aquele território estranho aos seus dedos, áspero, firme, o homem se assustava e avisava que ali, ah, ali não. Ela sabia que, mais dia, menos dia, apareceria alguém, não tinha pressa. Mais que muita vontade, era curiosa, queria conhecer o predador, incorporá-lo, senti-lo na mão. Refletia, durante o expediente, sobre aquela textura estranha. Perguntou-se, caso não depilasse o cu, se ficaria daquele jeito também. Lembrou dos filmes que viu. Os homens não depilavam, quase nenhum. Mas no filme também achava meio estranho. Percebeu que, daquele jeito, tornaria-se outra pele que não a dele ao entrar nela. Não sentiria um bumbum lisinho como sentiam o seu. Sentiria um buraco peludinho como o dele. Outra pele.

Quando Renan chegou, trazia cerveja. Era muito cheiroso e, ainda bem, tinha bom gosto com perfumes. Bem-sucedido profissionalmente. Pedante. Musculoso. Engraçadinho. Desengonçado. Cabelo bem penteado. Camisa com estampa divertida. Tênis novo. Poucos pelos no peito. Pele muito pálida. Algumas espinhas nos braços. Beijo ok. Glúteos com exercícios em dia, abdômen também. Uma penugem macia cobrindo-os. Costas rijas. Língua meio perdida. Muita pose de machão. Puxão de cabelo na hora errada. Renan rebolou seu bumbum peludinho na mão de Camila.

Ela teve vontade de gargalhar de alegria. Fechou os olhos, mordeu os lábios e circulou o cuzinho do rapaz cheiroso algumas vezes com um dedo. Era levemente áspero, estranhou menos. Foi, lentamente, enquanto continuava os círculos, enfiando o indicador na sua bundinha. Ele rebolava nas suas mãos. Camila ficou incrédula e molhada e de boca aberta, ofegando. Liberou mais força em seu braço e enfiou o dedo inteiro.

Ele flexionou os joelhos e tirou seu peso de cima da mulher, maior do que ele imaginou pelas fotos, mas linda do mesmo jeito. Sua euforia não era menor. Ficou de quatro, enquanto Camila adicionava o anelar e o médio na brincadeira. Renan gemia, com o cabelo penteado e os músculos contraídos e o quadril sem leis.

Camila sussurrou em seu ouvido que permanecesse de quatro. Saiu de baixo do homem e ficou, de joelhos, admirando a bunda deliciosa do rapaz. Enfiou a cara e a língua naquela belezura e umedeceu tudo. Colocou o três dedos de uma vez e inteiros. Com a outra mão, segurou o quadril da sua putinha. Enfiava, com um sorriso no canto do rosto e braços contraídos, brilhando de suor, seus dedos no buraquinho dele. O quadril da mulher também entrou no ritmo e os dois gemiam.

Pediu que Renan esperasse um pouquinho e ele gargalhou, incrédulo. Sua super-heroína abre a porta do quarto munida de uma cinta caralha rosa-choque, purpurinada. Ele, ainda de quatro, abana o rabinho e abre-o com as duas mãos e a cabeça no travesseiro. Camila esfrega óleo vegetal de amêndoas por toda a bunda da sua presa. Ele vai girando a bundinha e enfiando no dildo da mulher maravilhosa. Como ela queria pode sentir o cuzinho dele piscando no seu pau. Depois de totalmente enterrada a piroca de borracha, Camila tira e coloca, violentamente, enquanto enfia as duas mãos na boca de Renan e a estica para os dois lados. O rapaz revira os olhos. Pergunta se ela deixa que ele goze na sua boquinha. Ela joga ele na cama e enfia o pau do garoto garganta adentro, enchendo a cara de baba e a buceta de baba de buceta. Renan contrai todos os músculos, Ca.T circula os dedos em seu clitóris e goza enquanto o leite escorre entre seus dentes. Tornam-se melhores amigos e o rapaz segreda que também gosta de travestis, ela começa a pensar a respeito. Os dois dormem muito felizes e com um sorriso no canto do rosto que ocupa duas camas e cinco quadras do bairro do mundo.

 

 

 

 

 

 

poema

priscila merizzio

 

 

"Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, que faz debaixo do sol? Uma geração vai, e outra geração vem; mas a terra para sempre permanece". (Eclesiastes 1:3-4)

 

 

a natureza respeita a idade de ouro

repele a cultura católica de se humilhar

aos pés de qualquer aldeão usando um solidéu

 

os robalos não cobrem o cume das cabeças

porém, como todos os bichos, estão chagados

 

é de alguns homens dominar, pôr grilhões no pescoço dos seus

se conseguíssemos cativar o tempo, como faríamos com o fogo,

nosso destino seria nutrir o intestino delgado das glicínias?

 

as batalhas mornas da vida são todas vãs

o sentido incólume são dos olhos que se miram atarantados 

em busca de amor

 

não adianta correr da incógnita

a única certeza nas linhas das mãos, das palmas

fazendo prece quando alguém jaz ali: a morte

 

que severa bate o punho na mesa

e ceifa a todos, com o mesmo beijo

 

 

 

 

 

 

colheita tardia

roberta silva

 

 

Nasci às vinte e três e quarenta e cinco do dia 20 de dezembro de 2045. Minha mãe exausta, seus dreads encharcados de suor. As pernas frouxas esticaram-se sobre o lençol gelado de urina, líquido amniótico e sangue. A parteira achou que eu não vingaria, muito pálida, sem sobrancelhas e cílios, cabelos vermelhos grudados de sebo. Colocou-me entre os seios negros de minha mãe e pareci ainda mais morta. Meu pai, que estava há horas ajoelhado à cabeceira da cama, os braços sob as costas dela, a cabeleira ruiva em seu pescoço, os lábios finos, escondidos pela barba, trêmulo de medo ou prece, assustou-se com o silêncio e posicionou-se para me ver melhor. No instante em que pôs seus olhos em mim, abri os meus e ele foi a primeira coisa que vi. Ela diz que me assustei tanto que abri o berreiro, mas sei que o que ardeu em meus pulmões foi a inundação de calor e brilho que recebi daqueles olhos. A parteira preocupou-se, minha mãe continuava gemendo, algo não parecia certo. Veio outra contração, mais outra. A senhora grisalha e gorda, destreinada que estava dos partos em casa, apalpou a barriga e não entendeu como não poderia ter percebido outro bebê até àquela altura dos acontecimentos. Pelo menos foi um alívio saber que as dores traziam mais uma criança e não a morte prematura da jovem que insistira para que retomasse sua antiga vocação familiar e fosse à sua casa quando as dores chegassem. Vinte minutos se passaram e meu pai, aflito, dividia-se entre o bebê enrolado em seus braços, os olhos de sua mulher amada e o cansaço nos olhos da parteira. — Coroou! — Disse aliviada a senhora. — Força agora, minha filha! — Um bebê escorregou para suas mãos enrugadas. Outra menina. Nascida nos primeiros minutos do inverno que se iniciava. Aos onze minutos do dia 21 de dezembro, minha irmã gêmea, negra como os ancestrais de minha mãe, pesando os meus exatos três quilos, cento e cinquenta gramas e com os mesmos cinquenta e dois centímetros que eu, veio à luz. As dores de minha mãe cessaram. As placentas soltaram-se e suas forças reacenderam, como os sorrisos de meu pai. Nós duas ali, em seus braços, éramos a materialização daquele amor de devoção que nutria por minha mãe. Eles nos diziam que eu tinha nascido ruiva por causa do outono e minha irmã, negra, por conta do inverno. Quando dizíamos que eu tinha puxado a ele e minha irmã à minha mãe, ele retrucava: — Como? Eu e ela somos iguais.

 

 

 

©cintia ribas

 

 

 

3 poemas

silvana guimarães

 

 

suruba

 

 

beijei odete

beijei antônia

beijei alice

 

helena vera irene

dagmar iracema

todas elas beijei

 

em sua boca

de vinagre e mel

do início ao precipício

 

de amaralíngua

de amaratodas

que vieram antes

 

com elas aprendi

a revirar auroras

a reinventar vertigens

 

 

 

 

a filha do meio

 

 

naquela manhã acordou com o barulho da enceradeira

e um emaranhado de ruídos difusos nos fundos da casa

 

sem coberta a calcinha afastada as pernas abertas

no meio delas entretido o mesmo dedo indicador

 

cumpridor dos deveres temente a deus pacato fiel

protetor o papel principal de sua infância feliz: papai

 

ela bem que tentou fechar os olhos dormir de novo

rasurar aquele sonho e despertar outra vez sem frio

 

mas a mãe ao telefone desvendava alguns dos seus

guardados segredos para a maionese não desandar

 

o irmão maior ouvia no rádio i can't get no satisfaction

a irmã mais nova rodopiava pelo quintal em seus patins

 

e é provável que lá fora o dia fosse dourado & azul

eram 9 h de um sábado de junho e fazia muito calor

 

 

 

 

 

eles

 

 

em meio a delações & defecações

os ratos roeram a verba da educação

os ratos roeram a verba da saúde

os ratos roeram a verba da segurança

os ratos roeram a verba do transporte

 

os ratos roeram o verbo honrar

os ratos roeram o verbo servir

os ratos roeram o verbo prometer

os ratos roeram o verbo cumprir

os ratos roeram o verbo amar

 

os ratos roeram a merenda escolar

os ratos roeram as terras indígenas

os ratos roeram as vidas indígenas

os ratos roeram a nossa cidadania

os ratos roeram a nossa tragistória

 

os ratos roeram a constituição

os ratos roeram as escrituras

os ratos roem em nome de deus

os ratos riem em nome do demo

os ratos raiam em safadezas

 

os ratos enchem a burra de dinheiro

os ratos vivem com o rei na barriga

os ratos: funâmbulos & marafaias

autoridades em marãkutayas & manobras

circulam imunes à sorrelfa & de soslaio

 

os ratos, caçados a machadadas,

não se abalam: é tudo mentira

os ratos existem em prol do meu

do seu do nosso bem comum deles

nós, servos-arbítrios, em sono esplêndido

 

os ratos: há que se enfrentá-los

sem tremor /\ quæ sera tamen

 

há que se enfrentá-los

sem temer enquanto ardem: os ratos

 

 

 

 

 

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