edição 51 | julho de 2016

vertigem | outono | no osso

 

 

 

2 koans

carla diacov

 

 

koan do algodão na parede

 

 

bati o dedão da mão direita num pedaço de parede. revidei. xinguei. machuquei e pedi perdão. pedi perdão não a deus que deus nada tinha com meu carnavalzinho. o dedo é meu. teoricamente o pedaço de parede também e também o movimento de capoeirista sem eixo. ainda ontem foi o cotovelo e todo mundo sabe que bater o cotovelo é sinal de boa colheita quando o assunto é algodão. como xinguei. de certo que afastei tudo que é bom agouro para a colheita do algodão que não plantei. deito-me todas as noites com esse meu namorado: o foda-se. bater o dedão o cotovelo a mandíbula o joelho. saber que tudo isso é da mania de enfiar no tutano das coisas o tal do destino. a sorte. amanhã será diferente. foda-se me garantiu. e não é que acordo amanhã com o foda-se deitado no chão de orelha grudada na parede que eu tanto xinguei — dear mama. nunca mais xingue ou machuque essa parede ou qualquer pedaço dela — foda-se! e amanhã que será depois de amanhã que já é hoje — dear mama. estarei me fodendo pelado arranhado cheio de besourinhos na plantação que você aniquilou. com amor. foda-se.

 

 

 

 

koan da amizade desmedida

 

 

não tenho medidas para caminhar. não tenho medidas para muita coisa. quero dizer que não tenho medidas. mas caminho. faço outras coisas. mas caminho. e caminhando sem medidas sei que vou cair. cair me mete num tanto de medo que não pode ser comum. fui caminhar com uma amiga. isso aconteceu em 1999. minha amiga morreu. estava me falando sobre uma fruta chinesa e desabou. bateu o ombro num hidrante e a cabeça no bracinho do hidrante. morreu ali mesmo. tive de chamar familiares e invocar toda a convenção antes do caixão. sustos e olhos e muita baba de quem chora. mas voltando aos meus passos. temo que aquele evento plotou-se nas minhas não medidas para caminhar. vou deixar como exame aqui uns pontos:

 

1. olho muito para o chão quando caminho e sei que isso não é medida. dizem NÃO OLHE PARA BAIXO! não dizem?

2. uso as mãos (as minhas) na cintura. isso me garante algum sentimento saudoso e sentindo isso me reloco dali. mesmo olhando o chão.

3. as abas dos meus chapéus são feitas sob medida para que eu nunca me perca com as nuv...

 

céus! abas sob medida. então é isso: tenho sim medidas. mas encomendadas. bem. diagnosticada a presença das medidas ainda que encomendadas devo dizer que nunca em toda minha vida caí. sigo caminhando. agora com as medidas diagnosticadas e ainda o medo sem fim. sob medidas. não minhas. compradas. mas não minhas. sob medida e não "sua" medida. anselma diria que isso é contraversão. que boa menina era anselma. diria: fábio você é mesmo um piadista que merece não um pedaço, mas uma boa medida de bo luo.

 

 

 

 

 

 

3 contos

carla luma

 

 

Meu anjo

 

 

"Há uma teoria que diz que se um dia alguém descobrir qual é o propósito do universo e por que ele está aqui,
ele desaparecerá instantaneamente e será substituído por algo ainda mais bizarro e inexplicável.
Há uma outra teoria que diz que isso já aconteceu". Douglas Adams

 

 

 

Do alto descem duas íngremes ladeiras como pernas abertas expondo no vértice a torre da igreja matriz. Entre elas há um jardim triangular com canteiros de gerânios e de dálias. Eu estava cansada, muito cansada e tonta, me sentei em um dos bancos de pedra. Estava quentíssimo. O sol se refletia nas vidraças, amplificava-se nos metais dos automóveis, mas eu temia fechar os olhos e adormecer ficando à mercê de alguma fatalidade. O medo da morte me acompanha desde bem pequena. O mundo girava. Concentrei o olhar nas pedras brancas e pretas dos desenhos geométricos da calçada. Um garoto desceu a ladeira como um raio. Foi quando vi a garotinha se aproximando, subindo lentamente a ladeira. Sentou-se ao meu lado. Seu rosto era delgado e as sardas pintavam a pele alva, quase transparente e brilhavam curiosos os olhos: duas pequenas pedras de jade.

— Você gosta de conversar?

— Gosto. Como é o seu nome?

— Eu gosto mais de falar, mas mamãe vive me dizendo que eu preciso aprender também a ouvir. Você gosta de ouvir?

— A sua mãe tem razão. Como é o seu nome?

— Juana. Você viu aquele menino que passou correndo? É meu irmão, tem 13 anos, eu tenho 11. Eu tinha outro irmão, mas ele morreu.

— Ah! Que pena. Sinto muito.

— Tanto faz. Eu não conheci. Morreu anjinho, eu nem tinha nascido ainda. Você acredita em anjos? Eu acredito. Eu sou amiga de um anjo que vem conversar comigo. Ele gosta de ouvir. Fica bem quietinho do meu lado enquanto eu conto tudo que me acontece. Não posso inventar coisas porque ele sabe quando estou mentindo e, então, briga comigo. Às vezes ele também fala e me conta coisas do mundo dele. Você pensa que é no céu? Não, é um mundo paralelo. Ele me disse que é um mundo que existe no mesmo espaço que o nosso, mas que tem um tempo diferente. Ele não tem asas como os anjos das imagens da igreja. Ele é pequenininho, do tamanho de um gato gordo, tem olhos amarelos e o cabelo é vermelho. Ele não gosta que eu toque nele. Todas as vezes que eu tentei pegar nele ele desapareceu e me deixou falando sozinha. Agora eu não tento mais, mas tenho muita vontade de pentear aqueles lindos cachos vermelhos. Só eu que vejo ele. As pessoas dizem que é imaginação, que ele não existe, mas eu acho que é porque as pessoas não sabem olhar. Ele não se esconde. Fica ali quieto. Eu converso com ele e mamãe ri.

A garotinha falava, falava, falava... e eu me sentia como se estivesse em uma ilha cercada de um nada onde tudo se dissolve, mas a voz me mantinha razoavelmente lúcida, acordada e, naquela circunstância, era tudo o que eu desejava.

— Quando mamãe ri, ele fica verde de raiva e mostra a língua pra ela, mas ela não vê, então eu acho graça e também começo a rir, então ele ri também e rola no chão como se fosse uma bola. Um dia ele riu tanto que se engasgou e ficou roxo. Eu pensei que ele ia morrer, pedi socorro, gritei, chorei, mamãe disse que a minha imaginação estava passando do limite e que talvez fosse melhor me levar para um psicólogo. Depois eu fiquei pensando que não precisava me preocupar porque os anjos são crianças que morreram quando ainda são bebês e quem já morreu não pode morrer outra vez. Ou será que pode? Depois daquele dia ele ficou alguns dias sem aparecer e mamãe se esqueceu da história do psicólogo. Ainda bem, porque eu não gosto que as pessoas pensem que eu sou maluca. Você acha que eu sou maluca?

Eu já estava me sentindo um pouco melhor. Esbocei um leve sorriso, mas não respondi. Havia percebido que ela quando fazia perguntas não tinha o menor interesse nas respostas. No entanto sentia-me ainda tomada por uma terrível angústia sem motivo algum, aparentemente.

— Sabe o que o meu anjo me contou? Ele disse que Deus é um garotinho e que nós somos um brinquedo dele. Tipo um super videogame. Às vezes ele se cansa de jogar, mas o jogo não para porque é de uma tecnologia muito mais avançada que a nossa, onde os personagens do jogo têm inteligência artificial e até sentimentos. Ele me disse que um segundo do tempo de Deus é igual a muitos anos do nosso tempo. Quando ele volta para o jogo e vê que o jogo tomou um rumo diferente do que ele queria, ele se irrita, então ele lança tempestades, doenças, erupções vulcânicas, terremotos ou até mesmo reseta para começar tudo novamente. Você acredita em Deus? Eu acredito. Antes eu pensava que Deus era um velhinho bondoso que morava nas nuvens. Agora eu acredito no Deus como o meu anjo me disse. Combina mais com o que acontece no mundo. Um Deus velhinho bondoso não iria deixar que tivesse tanta desgraça no mundo, não é?  Mas, como o nosso mundo é um jogo, a desgraça também não é verdadeira e tudo que morre renasce quando o jogo recomeça.

Àquela altura eu comecei a pensar que estava delirando, embora me sentisse melhor fisicamente. Essa garotinha deve ser uma dessas crianças precoces de que às vezes ouvimos falar ou então ela não tem apenas onze anos, eu pensei.

— Papai não acredita em Deus. Ele diz que Deus é uma invenção do homem para explicar o inexplicável. Ele fala isso, mas quando acontece alguma coisa ruim ele é o primeiro a pedir que Deus nos ajude e é também o primeiro a dar graças a Deus quando acontece alguma coisa boa. Mamãe diz que Papai é o ateu mais cristão do mundo. Na escola eu estou na mesma sala do meu irmão porque eu aprendo as coisas rapidamente e ele não presta atenção nas aulas e já perdeu dois anos. Ele quer ser atleta, passa o dia inteiro correndo nas ruas, nunca se cansa. Eu me canso fácil. Quando crescer, eu vou ser médica ou então cientista para inventar um jogo igual ao jogo que Deus joga.

O que estou relatando são apenas alguns fragmentos do monólogo da garotinha. Muito mais foi dito. Ela falou sobre as suas bonecas, sobre os professores, os colegas, as amigas, os moradores da cidade. O sol já se escondia atrás da torre da igreja matriz. Quando eu estendi as mãos para acariciar os seus cabelos e ela evaporou.

 

 

 

 

O tempo adormeceu ao sol da tarde

 

 

À contra-luz não dava para ver a fisionomia do homem que vinha a galope, montado em um alazão amarilho. Ele descia a colina, com o sol às costas, em direção ao casarão da fazenda de João Malaquias. No céu os tons quentes de laranja e de vermelho começavam a tingir algumas nuvens mais próximas à linha do horizonte e a invadir o azul ainda luminoso, anunciando a aproximação do crepúsculo noturno. Dalva estava saindo do bosque onde fora colher amoras silvestres e se escondeu atrás do tronco de uma jabuticabeira. No chão encontrou uma flauta de bambu. O desconhecido já estava longe. Dalva soprou a flauta.  Um som melodioso, de timbre suave e doce dançou no vento. 

O homem desmontou na porta do antigo sobrado colonial de dois andares, além de porão e sótão. No porão que só se acessa por uma escada sob um alçapão no chão da cozinha, ou por uma porta que há no fundo da casa grande, construída aproveitando um desnível do terreno, era onde ficavam os escravos na época em que a fazenda dominava a produção de fumo da região. Desde aquela época, mais de trezentos anos, muitas gerações de Malaquias viveram e morreram naquela terra. O sobrado atual data de 1807, tendo passado por algumas reformas e melhoramentos ao longo dos séculos. Nota-se que o telhado precisa de reparos. No piso superior vê-se seis janelas que abrem para uma sacada inteiriça com ornamentos de ferro forjado. O acesso ao sobrado se faz por uma pequena escada de seis degraus de pedra que leva a uma ampla varanda com quatro janelas no estilo guilhotina e uma porta pesada pintada de azul cobalto. O homem subiu a escada correndo. A porta estava aberta.

Dalva tem doze anos. Dalva tem medo. Ninguém leva a sério o motivo do seu medo. Talvez o homem volte, ela pensa, e decide atravessar o bosque até o riacho. O chão está coberto das folhas amarelas, laranjas, marrons, vermelhas que caracterizam o outono. Dalva não tem medo das serpentes que podem estar sob as folhas. Ela sabe que as serpentes preferem fugir, só atacam quando se sentem ameaçadas, além disso, ela está calçada com um par de botas de couro grosso que vão quase até os seus joelhos. Dalva tem medo de homens, principalmente de forasteiros.

Não havia sinal de vida na grande sala da frente que ocupa cerca de um terço da área do andar de baixo. Em um canto da sala destaca-se um piano de cauda Bluthner antigo, mas muito bem conservado. Além do piano, a sala é mobiliada com quatro grandes sofás de couro, algumas cadeiras de balanço, mesinhas aos lados dos sofás, dois grandes aparadores de jacarandá e uma cristaleira de nogueira com quatro portas. Do teto pendem dois imensos lustres de cristal com vinte e uma lâmpadas em formato de velas. No fundo da sala, à esquerda, uma escada leva para o andar de cima. O homem passou pela escada, avançou por um corredor com quatro portas fechadas e alcançou a sala de refeições.

O riacho desce serpenteando a serra estreitando-se entre pedras negras eternamente úmidas, mais adiante despenca em queda vertical até um poço fundo de água escura e fria, quase sempre à sombra, exceto quando o sol, alto no céu, envia poderosos raios que vencem os galhos e folhas das árvores desenhando abstrações no espelho d'água revolta. Adiante o riacho corre novamente entre pedras até encontrar um leito mais largo, quase plano, formando um grande delta que em alguns trechos é possível atravessar a pé.

Dalva sabia que ainda havia mais de uma hora de luz solar, talvez vinte minutos de crepúsculo e a lua surgiria no horizonte como um grande disco laranja, quase vermelho. Depois subiria rapidamente diminuindo de tamanho e mudando de cor, mas, fora do bosque, a lua cheia propicia a luz necessária para caminhar pela margem do riacho até alcançar o pequeno sítio onde a sua mãe espera-a e às amoras que irão se transformar em geleia.

A sala de refeições tem uma mesa de jacarandá com seis cadeiras de cada lado e uma cadeira em cada cabeceira. Tem também uma cristaleira igual à da sala da frente encostada na parede em que há a porta que dá para a cozinha, e, encostado na parede do lado direito, um móvel, também de jacarandá, com oito portas e sobre as portas oito gavetas. Sobre o móvel, imagens de santos e bibelôs de cristal e de porcelana. Atrás da cabeceira do fundo três janelas e outras quatro janelas no lado contrário à parede do móvel. De qualquer das janelas dá pra ver o delta. Se esperasse um pouco, o homem poderia ver a lua nascer atrás da serra baixa no outro lado do riacho.

Dalva seguiu sem pressa pela velha trilha da beira do riacho soprando a flauta inventando melodias. Da janela, o homem não a viu e não ouviu a música distante. Não encontrando ninguém no andar de baixo, retornou pelo corredor e subiu a escada que dá em um pequeno salão onde há portas de quatro quartos e um corredor com outras quatro portas, duas em cada lateral e, na ponta, a porta do quarto maior, o quarto de João Malaquias. Era a única porta aberta no andar de cima. O homem entrou.

— Desculpe a demora, vim o mais rápido que pude.

— Fez tudo como eu pedi?

— Fiz. Os papéis estão aqui para o senhor assinar e eu trouxe os meus carimbos e os selos para reconhecer a firma. A garota já sabe?

— Não. Não sabe de nada. Não sabe que eu sou o pai dela e não sabe que a partir de hoje é dona de todos os meus bens. Tenho poucos dias de vida e muita dor, mas nenhuma me dói tanto quanto o arrependimento de não ter feito isso antes, desde que ela nasceu. Fui um tolo, botei na cabeça que tinha sido vítima de uma cilada, mas a mãe dela nunca me procurou pra nada, nunca me pediu nada, esperou um gesto meu e eu o neguei. Vamos acabar logo com isso, me dê cá esses papéis, depois galope até o sítio, entregue os documentos a Dede e peça a ela que venha me ver, já que não posso ir até lá pedir perdão.

 

 

 

 

Ponto G

 

 

Quase sempre eu me deito cedo, entre as cinco e as seis da manhã, preferencialmente com o sol nascendo, após uma madrugada de farra ou de trabalho, conforme a circunstância. Na mesinha de cabeceira sempre há pelo menos um livro. Eu escolho volumes pequenos e de poucas páginas, que são mais leves e maleáveis. Inconcebível levar para a cama um livro de capa dura com trezentas páginas. Geralmente, mas não exclusivamente, livros de poemas, mesmo dessa poesia contemporânea que quase sempre me parece vazia de significados e com metáforas incompreensíveis. Não estou depreciando. Apesar da incompreensão, eu aprecio essa habilidade de combinar as sonoridades das palavras. Assonâncias, aliterações...

Em não mais que dez minutos de narcótico poético eu caio no sono. 

Acordo por volta das três horas da tarde. Às vezes eu não me lembro dos sonhos, outras vezes consigo me lembrar de dois ou três e, embora alguns me pareçam interessantes como matéria-prima para a literatura, eu nunca os consigo colocar no papel exatamente da maneira que sonhei e me descubro criando paisagens e, principalmente, acontecimentos que funcionam para dar sentido às coisas sonhadas.

Não é raro que eu misture eventos do meu dia a dia com coisas que li e personagens da literatura convivendo intimamente comigo e com os meus amigos. Ontem, por exemplo, eu estava sonhando com Julio, o meu ginecologista, e ele havia se transformado em um personagem de Proust, o Dr. Cottard, que nunca sabia ao certo como deveria responder a alguém, se o seu interlocutor não demonstrava na expressão o sentido exato do que dizia. Existem mesmo pessoas assim. Pessoas que querem estar sempre de acordo com todos, mas que não sabem se devem entender as coisas no sentido literal ou como uma ironia. Eu não estou sendo irônica.

Talvez nem mesmo Freud pudesse explicar essa associação onírica entre Julio e o Dr. Cottard. Não o conheço profundamente, mas nunca notei nele nada que se possa comparar a esse traço de caráter magnificamente descrito por Proust no seu personagem. Tive um acesso incontrolável de riso ao tentar sem sucesso imaginar a expressão que teria o Dr. Cottard se tivesse que me dizer que eu tenho próstata. Certamente não seria com a serenidade vazia de emoções estampada na expressão de Julio quando me explicou que as mulheres podem desenvolver uma espécie de próstata, possivelmente decorrente de terapias de reposição hormonal ou pelo uso de anabolizantes. "Essas alterações são mais comuns do que se imagina", ele me informou, acrescentando também que alguns estudos indicaram que a próstata das mulheres estaria relacionada ao "Ponto G" e à ejaculação feminina, dois temas que alguns, talvez por ignorância, consideram polêmicos. 

Então eu entendi porque gozo tanto, gosto tanto e porque sou tão feliz.

 

 

 

©cintia ribas | taxidermia & bronze

 

 

 

3 poemas

chloe arvoredo

 

 

[roxo e rosa em harmonia]

 

 

foi tentando dançar com a água

que ganhei esse roxo no bumbum

 

— os do pescoço e da barriga

meu amor quem deu —

 

abracei o azulejo naquele dia

como quem dança

pela primeira vez

ou quem corre na chuva

por desconhecer a força da água

 

chorei ao me olhar no espelho

e me achar tão bonita

 

os roxos do corpo dizendo

que o amor é uma quedinha

 

e a língua, os seios, o lábio,

o clitóris, as unhas, a pele que cicatriza

se aproximando do tom

 

de um algodão doce com corante

de uma flor selvagem & sutil

de uma manada de filhotes

de flamingos correndo num sonho

do céu duas horas antes da chuva cair

 

ou simplesmente

 

da sua lacrimal

de parte do seu pau

das flores que você rouba na rua

só pra me ver chorando

me achando tão bonita

 

 

 

 

[laranja]

 

 

outono é época de colheita

pintei o cabelo de laranja

aproveita

 

 

 

 

[fía de bruxa]

 

 

— ela é que nem aquelas planta misteriosa que ninguém conhece direito. comigo-ninguém-pode tatuado na testa maga oleosa. nasceu com um mal chamada impaciença, num sabe? num pode ver uma tesoura que corta um fí de cabelo num sei pra quê bunito nunca fica mas a cor muda toda semana já foi vermêio castanho inté azul. aqui na cidade diz que vitória é fia de bruxa. acredita, teresinha? também não que eu num acredito nessas história eu só acredito em nosso sinhô jesus cristo. só sei que a mulé morreu mermo vermêinha de fogo queimaro ela com as tábuas da casa da famía. e aí essa minina cresceu virou mocinha só anda com esses vestidin em cima do joelho. pode isso, teresinha? uma indecença só. aquela mulé do mercadin viu por uma brecha vitória em cima do fí do prefeito. dizia assim: ai que gostoso. e rebolava a bunda branca o pinto roçando no osso bem no ossinho que arde o playboy com os ói revirado a boca aberta com jeito de apaixonado. também, teresinha. tinha que apaixonar mermo. a minina é fia de bruxa.

 

 

 

 

 

 

prosa poética

célia musilli

 

 

...

 

 

Eu digo vertigem e caio no tempo em redemoinho, passageira do filme de Hitchcok e sua escada mental mirabolante. Eu digo vertigem e pinto um quadro surrealista. Dalí e Buñuel com a lâmina que corta o olho da personagem, abrindo as pálpebras da modernidade. Nunca a poesia doeu tanto.

Eu digo vertigem e ouço Breton lendo Lautréamont para os internos de um manicômio na noite em que descobriram que a arte é prima-irmã da loucura.

Eu digo vertigem e caio na paranoia de Piva, no grito de Munch, nos grilles de Bosch, formas antropomórficas que pulam da racionalidade para despertar a nossa face besta.

Eu digo vertigem e a abracadabra me devolve a la recherche du temps perdu em outras línguas, a Proust na Babel dos sonhos.

Eu digo vertigem e abre-se o túnel dos versos de Blake, as visões do Dharma de Keroauc, os versos de Allen Ginsberg naquele longo Uivo que trespassou a América, caindo como bomba lisérgica na juventude dos anos 50.

Só a vertigem me dá passagem, lança-me na abóboda celeste que se abre para a nova consciência que os mortos em vida desconhecem, porque nunca experimentaram. Os prisioneiros do equilíbrio não sabem, não sabem... que no passo em falso existe um plano de beleza inescrutável aos que descem e sobem escadas atemporais segurando em corrimões.

Eu digo vertigem e aceito a queda que me projeta num redemoinho de palavras. Deixo a poesia ao vento. As pétalas são leves como a literatura. Descubro que a vertigem é alada.

 

 

 

 

 

 

3 poemas

daniela delias

 

 

*

 

 

à minha boca

pede raízes, arranha-céus

 

(cola em meu fôlego,

ele diz, deita no meu peito)

 

como se toda leveza

pedisse janelas

como se tudo que move

sonhasse vertigens

 

como se toda poesia

fosse um corpo-pássaro

 

 

 

 

palimpsesto

 

 

o que permanece

sobe e desce escadas

cora e trança cabelos

ressente-se das horas

assenhora-se dos pássaros

 

escrevo sobre as folhas

de um abril adormecido

escrevo sobre as cinzas

de uma cidade soterrada

escrevo sobre você

homem de outro tempo

 

(ruínas não ocultam

imaterialidades)

 

 

 

 

o corpo

 

 

é bom que seja assim:

pele/nervos/pelos/ossos

tua ausência desmentida

minha carne dissecada

 

pudesse a noite ouvir o corpo

mais que o esquecimento

faria supor que sobre toda falta

incide um silêncio antigo

e selvagem

 

 

 

 

 

cartilagem

isadora galvão

 

 

quase à força.

no braço.

a mão no pulso

da moça.

 

faça isso não

seu moço.

rompe esse laço

que desse poço

não sai mais água.

 

guarda tua força

engole essa mágoa

janta teu osso

(que em mim

tu não bota

mais um dedo

nem a pau

 

perdi o medo

de coisa ruim

rondando aqui

no meu quintal)

 

 

 

©cintia ribas

 

 

 

poema

jane sprenger bodnar

 

 

deixam de respirar, um dia, as folhas

da ferrugem à renda

réstias

 

 

 

 

 

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