edição 51 | julho de 2016

vertigem | outono | no osso

 

 

 

no lucro

adelaide do julinho

 

 

aparício fala de menas

a nível de usucampeão

 

mas-tem-um-ca-ra-le-o!

 

aparício seu estrupício

juro: inda morro disso

 

 

 

 

 

 

mama, i'm coming home

adriana brunstein

 

 

Perguntou meu preço e mandou que eu o envolvesse em filme plástico de embrulhar resto de comida. Ficou nu sem pudor algum do cheiro azedo de seu corpo e foi se encolhendo até ficar igual a um feto. Me pediu para começar pelos pés que já se aninhavam em suas nádegas grandes demais para pés tamanho 39. "O dinheiro fica no bolso de trás da calça, pegue na saída". E falou, falou sem parar porque quando parava vinha um zumbido no ouvido que chutaram enquanto ele soprava velas de aniversário. Era pequenino e precisava de banco pra enxergar a mesa. E caiu com o chute e se viu deitado num travesseiro de sangue e lambeu como chantilly. "Mamãe me beijou a testa e subiu com ele". Ele o colocava para dormir enfiando algodões em sua boca, e ria pra valer quando enfiava bolas de algodão em sua boca de dentes de leite garantindo que era assim que se contavam carneirinhos. "Cuidado com meus joelhos, são ásperos demais, não quero que o plástico se rompa". Sua mãe era bonita demais para que ele arregaçasse com tudo saindo por entre suas pernas, depois disso poucos a quiseram, ela dizia enquanto espalhava grãos de milho pelo chão e o fazia ajoelhar enquanto acariciava seus cabelos ou os cortava com faca porque dizia uma lenda que assim cresceriam melhor. Então aquele veio e ficou e ela parecia sorrir de um jeito que ele não tinha visto ainda a não ser sob a água do chuveiro quando ele a espiava através da cortina de peixes coloridos. "Eles nadavam pelo seu corpo e parecia que se afogavam na própria água quando o sentiam arrepiar de frio". Ele ajeitou as mãos em prece sobre o peito e me pediu que continuasse. O homem um dia acabou com seu pequeno oceano, arrancou tudo, levou para o quintal e tacou fogo. Gritou que nunca foi de se contentar com sardinhas. Ele conseguiu salvar um só, que usava como pingente já que os pelos de seu peito lembravam algas que sobreviviam em lodo. Ela, na última vez que foi doce, pegou cachos dos cabelos cortados e colou em seu peito e disse que isso era ser homem. Antes que eu envolvesse seu rosto, ele disse que finalmente havia entendido. Deixei-o ali e fucei seus bolsos. Havia mais do que o combinado.

 

 

 

©cintia ribas | "variações na paisagem" | museu da gravura de curitiba | 2015

 

 

 

3 poemas

adriane garcia

 

 

I

 

 

Do alto do precipício

Asas se pensando longas

é certo que ela vai cair

E se esborrachar

 

Mas se comporta

Na lâmpada do pôr do sol

Como mariposa

Suicida.

 

 

 

 

II

 

 

Agora os dias são preenchidos de luz e linhas

Desenhos que trazem som, textura, cor, forma e o teu nome

Trafego pelas ruas em que não estás

Com o meu corpo marcado, os meus pés feitos de caminhos que andamos

Nas ruas em que não estás, a tua presença me acorda

Em cada esquina, a tua presença que não dorme

 

Noutros tempos pensaria eu em tatuagem

Como se o amor viesse de fora

Mas é de minha carne povoada da tua

Que a memória me desenha e me insere, finalmente

Numa geografia

 

Faz calor, faz vento, faz aquele que gosta, o teu frio

As folhas caem, mas não estou mais sozinha

(E eu já não saberia de outro modo

Estar viva).

 

 

 

 

III

 

 

Arrumei um jeito de querer ser outra

Arrumei uma perfeição fora de mim

Dentro de mim é só um começo

Do que falha

 

Arrumei uma maneira de escutar seu osso

Como as loucas ouvem capelas calcinadas

Seu osso quer outra

Carne

 

Eu tenho essa pele encardida

Denúncia de bastardices, distrações

Mas arrumei um jeito de querer ser

Louça

 

Quebro a cabeça, boneca trincada

Me leva pra brincar

Me leva pra passear

Menino.

 

 

 

 

 

 

o melhor cego

alice barreira

 

 

Eu não vi o homem pisar na lua, um grande passo para a humanidade e uma pequena soneca para uma menina, numa madrugada de segunda-feira.

Eu só vi outra esfera desafiar órbitas nos pés de Garrincha, que driblavam a lei da gravidade. Vi a rouquidão das noites se acabarem de manhã na garganta cheia de sambas de Adoniran. Vi Niemayer fazendo o cimento voar. Eu vi se amansarem os tigres diante da tristeza de Lupicínio Rodrigues. Vi Castilho se acabar num último voo sem bola e vi os dedos sujos de tinta dos loucos de Nise. Vi a ternura de Che despencando numa fotografia e endurecendo de vez nas mãos dos vivos-mortos-vivos bolivianos. Eu vi Candeia sambar com Frida Kahlo numa cadeira de rodas e fazer a favela ficar de pé. Vi Muhammad Ali ensinando a borboleta a voar, a abelha a picar e transformando seu sorriso em slow motion. Vi o leve aceno — seria de adeus, de olá? — da composição que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Vi o cego perguntar como era o transatlântico que navegava pelos sonhos de Fellini. Vi quem acha viver se perdendo e batuque ser um privilégio. Vi o exílio dos bondes e das mulheres. Eu vi Celso Blues Boy aumentando que isso aí é rock and roll e vi Zico, Falcão e Sócrates bailarem como toureiros e sangrarem como touros na luz de Espanha. Vi os expoentes da minha geração morrendo de rir, destruídos pela lucidez, vi poetas de letras de câmbio e vi a África escalando as cordas vocais de Clementina. Vi o Abaporu me tomar pela mão, me levar pro susto do fundo do mato virgem. E lá eu vi Macunaíma, que não para de nascer, vi as bocas de Chico e Caetano e Gil nos cantarem e se beijarem e vi as bicicletas e os carretéis de Iberê visitarem a minha infância, onde vive a família de papel de Monteiro Lobato. Vi Pasárgada e outras terras enfeitadas com as bandeiras que Manuel inventou e vi Maiakovski e Ary Barroso se encontrarem por lá pra botar fogo nas camisas amarelas. Vi Carlitos indo ao cinema, as pessoas do Fernando ouvindo versos, Joe Cocker perdendo a voz, Chacal pedalando rimas e Di Cavalcanti pintando seu adeus através dos olhos-lentes proibidos de Glauber. Vi o MAM em chamas chorar tintas e seus rolos de fumaça cobrirem La Moneda. Vi a morte cantar parabéns pra Chico Mendes na Candelária e em Vigário Geral, vi Nelson Rodrigues na coxia com os bolsos cheios de pedras, vi as marilyns de Andy Warhol pintando dólares e vi Truffaut dormir bêbado na Praça Tiradentes, sorrindo para os acordes de Nelson Cavaquinho. Vi a barriga de Leila Diniz, a barriga de Chacrinha e a fome sem nome roendo o umbigo do mundo. Eu vi hippies, cocotas, punks, darks, rappers, grunges, clubbers e outras grifes penduradas nas vitrines das liquidações da primavera de Praga, enquanto os pedaços da estátua de Lênin desciam lentamente o rio Moldava. Eu vi o tempo aboletado nos telhados de Paraty.

E de lá eu vi a lua continuar sua órbita, comandando marés e esquecida dos homens.

 

 

 

 

 

 

delay

ana criolina

 

 

a voz depois

move os lábios

olhos sobre vivos

e uma planta debaixo do queixo

é um diabo se perder

ruído de pés invertidos

a pupila talvez cresça

vidros vibram inaudíveis

nervo óptico excede

a latência dos dias

um pavor crônico

de ver a própria morte.

 

 

 

 

 

 

das vertigens

ariana zahdi

 

 

Inaugurei sentimentos e entreguei-me ao  mergulho

Pássaro que sou.

 

Recolhi as estrelas dos teus olhos

Universo que és.

 

 

 

 

 

 

4 poemas

anna apolinário

 

 

sendas

 

 

tocar

as formas do fogo

 

raptar

o relâmpago

 

tecer

no verso, a vertigem

 

amar

a palavra

em tua boca

 

 

 

 

deserto

 

 

cântaro de vertigens

cordilheira de lábios

covil de espáduas

 

o corpo, afiado papiro

caligrafia volátil

de silêncio e neurotoxinas

 

eu caço escorpiões na epiderme

 

 

 

 

lince

 

 

amor sulcado de cólera

energia escura das pedras

 

anjo e víscera

avança, destroça

 

a língua aguça

o corpo epilético

da selva

 

caninos celebram

áurea miséria da carne

 

buquê de carcaças

 

 

 

 

mórula

 

 

setembro sangra em seus lábios

 

a bleeding bird

a bleeding bird

 

dark and divine

 

meu nome, um precipício tatuado

em seu pulso direito

uma serpente palíndroma

esmagando seus ossos

 

como uma imagem de Jodorowsky

rapina vísceras

ácido nas pupilas

 

 

 

©cintia ribas

 

 

 

3 poemas

assionara souza

 

 

nomorro

 

 

a paz é triste

atônita surdez

depois do seco estampido

 

passos curtos e cambaios

a mãe recolhe do varal

a roupa que o menino

não vai mais vestir

 

não estivesse ela aquela hora

limpando a festa suja na casa que não é sua

longe de sua vida real e do seu menino adorado

teria gritado: — vem pra casa, filho!

tem polícia no morro!

 

céu azul de abril

guarda desde sempre

este fatídico e recorrente encontro

entre a cabeça do menino

e o projétil fatal do assassino fardado

 

 

 

 

sutra

 

 

chove torrencialmente

nem por isso os homens se odeiam menos

corações batem como mísseis

a chuva não lava a alma

nem a parte de carne que a reveste

 

mais um navio afundou

o que dizem as notícias?

o mar quis engolir

os desgraçados do mundo

levá-los para o fundo abismo

onde enfim dormirão em túmulos-casulos

embalados pelo mover choroso de ondas 

 

não sei ao certo de quem me apiedar

as palavras se formam no estômago

e são vomitadas em bueiros-olhos

ao se infiltrar no corpo

disparam bombas de reação

irrompem-se violentos discursos de paz

 

é natural que todos morram

é essencial que todos se matem

 

de que é feita a corrente que aperta o pescoço?

controle, opressão, vigilância.

alimentados diariamente

com parafernálias do consumo

babamos, gritamos, sedentos de desejos

a menos que a chuva nos invada de silêncio

será impossível somente morrer

 

 

 

 

romantismo: esse mal

 

 

aquele lugar do deserto

onde o Pequeno Príncipe

foi picado por uma serpente

é hoje um oásis

onde brotou uma única rosa

idêntica à que enfeitiçou

os olhos do rapaz

 

guiadas pelo sibilar gentil

das mães que embalam filhos insones

com a história de um moço em fuga estelar numa revoada de pássaros,

adoecido de paixão por não suportar viver perto da rosa que o desprezava

às vezes, noite cerrada, víboras

passeiam os ventres na areia

e com suas línguas túrgidas de veneno

regam raiz e caule da rosa

 

certo é que só o elefante dentro da jiboia sabe

o tanto de dor e desespero essas páginas encerram:

planetas habitados por homens vis,

aviões em pane, raposas lacanianas, seduções da forma: a rosa, a rosa, a rosa

e um coração delirante, carregado de vertigem pela vermelhidão, exuberância
e os lábios de uma única e específica flor

 

 

 

 

 

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