edição 50 | abril de 2016
o leite derramado | último pedido | onde me arrancaram todos os pés

 

sesta

priscila lira

 

 

Na rede, aproveitava a claridade da tarde e, como um cachorro vadio, cutucava os pelos encravados das pernas. A barriga, ainda digerindo o almoço, tornava a tarefa um pouco incômoda. Para alcançar certos territórios da panturrilha, precisava dobrar-se muito e o estômago se espremia entre as pernas e os seios. O pescoço começou a doer, uma nuvem estacionou em frente ao sol e a varanda escureceu. Desistiu da distração laboriosa, pôs a pinça e o celular no chão, ao lado da rede e dormiu.

Acordou assustada, suava. Um raio de sol se espalhava na sua cara. A camiseta se movera durante o sono e deixara um de seus mamilos à mostra, puxou o tecido para o lugar com rapidez e olhou desconfiada para os lados, a família toda ainda dormia. Só um dos gatos da avó a observava no outro extremo da varanda. Trocou olhares com ele, que voltou a limpar a virilha com a língua. Olhou o celular, dormira por uns trinta minutos, ouviu o choro do seu primo, que acordaria o resto da família e daria início aos preparos do café e ao falatório na cozinha. Antes que alguém a pedisse para ir à padaria, foi tomar banho.

Buscou uma toalha no guarda-roupa dos avós e entrou no banheiro. Estirou a toalha no chão. Tirou o short, a camisa, a calcinha e sentou no vaso sanitário. Enquanto fazia xixi, tentava encontrar imagens perdidas no azulejo branco texturizado da parede. Achou uma fisionomia humana coberta por um véu, como uma santa e a cara de um dragão como aquele do filme História sem fim. Buscou a embalagem de sabonete líquido da pia e distraiu-se muito mais que o necessário, ali, no vaso, lendo aqua, sodium lauryl sulfate, methylisothiazolinone

Olhou seu rosto no espelho pequeno em cima da pia, mexeu nas suas espinhas, segurou o cabelo no topo da cabeça e moveu um dos elásticos rosa xoque do braço para o rabo de cavalo. Deitou na toalha, flexionou os dois joelhos e, enquanto olhava pro infinito branco do teto do banheiro, brincava com uma das mãos nos seus pelos. Ouvia as conversas pela casa, concentrando os dedos no clitóris e o empurrando contra a pele. Deslizou os dedos para dentro e quase sentiu preguiça ao lembrar o quanto demoraria e que depois desse tempo todo, a família inteira certamente perceberia o que ela estava fazendo. Esfregou os dedos com mais leveza entre os lábios de baixo, começou a sentir um prazerzinho, ignorou aquilo que ninguém diria e seguiu em frente.

Ali não tinha wifi, fazia tempo não se masturbava sem ver site pornô. As pessoas sem rosto que inventava também pareciam meio sonolentas naquela tarde. Decidiu manter os olhos abertos e dar de ombros para o tempo. Suspendeu uma das pernas e pôs o pé na parede, seu rosto se exprimia para o nada. Trocou o teto branco do banheiro por um vidro, em que mil rostos a observavam, sorria e mordia os lábios se esforçando para que não saísse nenhum gemido.

Apertava os mamilos com uma das mãos e olhava fixamente para o teto, movimentando o quadril e sentindo os dedos mergulharem por entre seus pelos. Esfregou as mãos molhadas por todo o capô e desceu, espalhando o próprio líquido até o cu. Abriu um sorriso enorme para o teto, enquanto seus olhos piscavam em câmera lenta.

A força que já conhecia começou a se formar abaixo do umbigo e se espalhar por toda a geografia da sua perereca. Ofegava e gozava e gargalhava em silêncio da imagem que inventara. O prazer não se dissipou pelo corpo e deu início àquele sentimento que não era gozo, era depois do gozo, que não tinha nome, ficou ali, concentrado na boceta. Continuou esfregando os dedos no clitóris. Dessa vez com mais calma, porque eles estavam sensíveis. A energia se concentrou novamente abaixo de seu umbigo e dessa vez ela sorria incrédula, o quadril tremeu e do meio dos pelos surgiu um jato de água tão potente, que conseguiu vê-lo decolar, se perder no branco do banheiro e atingir sua cara suada. Limpou o rosto com a mão que restava seca, arregalou os olhos e suspendeu o tronco, sentando na toalha agora inútil.

Sem saber muito bem como se enxugaria depois do banho, torceu o tecido na pia e lá mesmo abandonou-o, virando-se em direção ao chuveiro. Foi novamente surpreendida pelo raio de sol que vazava pelo basculante.

 

 

 

 

 

 

embasbacada

priscila merizzio

 

 

Após o cafezinho com leite desnatado e cuca de uva, começo a ficar fatigada com aquele falatório inútil sobre o dia a dia das empresas de agronegócios e o mercado de investimentos das indústrias que produzem sacarias de grãos de fazenda em fibrose diferenciada. Dos juros do banco e parcerias duvidosas com os amigos de infância, filhos de poderosos feudais, como eles. Meu companheiro tem um lado sistemático e sovina que prefiro ignorar. Quando está arranchado com o irmão e a cunhada — outra descendente direta de germânicos como eles — tenta me apoquentar. Não venho de uma linhagem de fazendeiros cujos filhos estudaram na Inglaterra e agora administram com mão de chumbo as terras, os peões e os animaizinhos passando sede. O chumbo virando ouro. É tudo sutil: convidam-me ao críquete de vaidades, alego cansaço, visto as mãos com luvas de pelica e digo que já está tarde, que é hora de nos despedir. Quando chego em casa, não abro flanco na minha obliquidade. Quanto mais ele se acabrunha, melhor.

 

Escrevo agora com a furibunda melancolia de Herberto Helder. Meu querido sempre impediu-me de ir embora. Sei que ele quis me fragilizar enclausurando-me naquele SPA psiquiátrico de luxo, em que era habitué o intercâmbio de codeína, coceirinhas nos órgãos genitais e urinas escancaradamente aliviadas na piscina coletiva. Implorei para que eu fosse à fazenda arar a terra ao invés de ficar sob a vigilância dos rapazinhos de jaleco branco — eles nada sabem. "Serei útil na fazenda do alagado", eu dizia. "Tomarei todos os remédios que o médico indicar, acordarei antes do sol nascer e passarei o dia trabalhando arduamente". Quando ele estava quase convencido, meti os pés pelas mãos, histriônica. Uma pequena troça pôs tudo a perder. "Prometo que não dirigirei tratores ou outras máquinas pesadas. Não destruirei os montes de fenos. Nem envenenarei os silos com meus barbitúricos e saliva demente". Ele ficou da cor crepuscular. Minha cabeça estava prestes a desmantelar-se junto com a de Sabia Spielrein. Ele nunca compreendeu meu fascínio pelo mulheril ruim da cabeça. Logo após nossa cerimônia de casamento, o bolo branco de muitos andares com mais de quarenta quilos foi devorado. Então eu soube: teria de carregar esse peso extravagante enquanto estivéssemos juntos. Teria de suportar sua família fingindo que gostava de mim nos almoços dominicais. Ele teria de carregar-me também — adorava especialmente quando eu ficava selvática e transava atabalhoadamente com os dedões de seus pés.

 

Decidi sair do corpo pela própria barriga, como se um corte no bucho fosse maior do que a própria existência. Como se por esse corte pudessem sair oliveiras. Arremedei-me com a loucura dos confrades da clínica, em um exercício de osmose e compaixão desatinada. Meu perfeito marido sentia-se embevecido por me ver trancafiada lá. Gostava de ser a única fonte de nutrição das regalias as quais sempre fui acostumada no desjejum. Levava-me edredons macios, cheirosos e pulôveres passados no vapor quente. De cônjuge, passou à figura da Grande Mãe. Conduzida por sua dança óbvia, passei a comportar-me de maneira pueril, infantiloide. Descobri todos os cômodos do imenso palacete de quatro andares em que a clínica reverberava, a rotina dos enfermeiros, nutricionistas, esteticistas, dos funcionários da limpeza, do administrativo, dos psiquiatras. Como renegava as visitas íntimas alegando estar com baixa libido em virtude da medicação (que eu não tomava, fingia engolir e depois cuspia no vaso), pude deixar que meus pelos pubianos crescessem vigorosamente. Passaram várias semanas e eles não paravam de crescer: surgiam à vontade dos poros, jorrando vertiginosamente como água das fontes italianas. No começo, embolava-os na calcinha e só podia usar saias, do contrário, poderiam pensar que eu estava simulando a existência de órgãos masculinos no meio de minhas pernas. À medida que foram crescendo era mais fácil enrolá-los por meu corpo e disfarçar meu jardinete pubiano. Uma noite, burlando todo o sistema de proteção interna aos pacientes, engrunhi-me detrás dos carrinhos com as louças da ceia e invadi a sala do diretor-geral. Ela ficava no terceiro andar e tinha uma feérica vista para o lago, o vale, a floresta de pinos e as montanhas rochosas. Dependurei-me no parapeito da varanda e, dançando ao som de uma música imaginária, rebolei como uma das quengas de Jorge Amado. Foi então que larguei meu cipó de pentelhos para baixo. Senti um puxão e incentivei que quem lá estivesse pudesse subir. Magnânima foi minha surpresa ao perceber chegando até mim Norma Desmond. "Norminha, Norminha, você veio". Uma pequena mão acarinhou minha face e adormeci. Estava nos braços de um dos rapazotes residentes da clínica em que fui enviada quando me cortaram os pés. Lá, tive que aprender a uivar com a mente em taças de gardênias.

 

 

 

 

 

 

as paredes de aion

roberta silva

 

 

— Urghhh! — gemeu ao deixar cair a marreta para retomar o fôlego. Apoiou as duas mãos sobre os joelhos, após limpar o suor do rosto com a parte de dentro de sua camisa empoeirada. Seus olhos ardiam, mas desistiu de tentar fazer algo por eles ao perceber que seus braços e roupas estavam sujos ou suados. Mais uma marretada no último tijolo que sustentava a pilastra e a parede viria abaixo.

— Se esta pilastra cair, o telhado cai sobre você.

Levou um susto. Não tinha notado que alguém havia entrado. Sem pressa em respondê-lo, parou para observá-lo. Cabelos grisalhos, já sem corte definido, nem se deu ao trabalho de penteá-los, barba por fazer, camisa de manga curta, limpa, mas muito velha, notava-se pelo tecido quase transparente, levemente escurecido nas dobras, teria sido passada a ferro inúmeras vezes, a calça social igualmente usada. "Quem passaria suas roupas?" — perguntou-se. Suas sandálias de couro surradas eram maiores que seus pés magros, os olhos acinzentados pela catarata, emoldurados por estranhas sobrancelhas crescidas demais, a observavam de volta, pacientemente.

Apesar da limpeza da roupa não se preocupou em tirar o plástico empoeirado do sofá para sentar-se. Sentia-se em casa.

— Só agora você diz isso, depois de eu quase derrubar a quarta parede?

— Eu disse... não disse? Dei a entender?

— Cansei de seus sinais. Por que não fala o que pensa diretamente como todo mundo?

— As pessoas têm me entendido bem.

— Jura? — disse, pegando novamente a marreta — o que vejo por todos os lados são versões e versões de sua fala, algumas bem maldosas, criminosas até, eu diria.

— Bem, cada um faz e diz o que quer...

— Em termos.

— Plenamente, eu diria.

— Claro, "faça o que tu queres" , mas arque com as punições.

— Consequências.

— Sei.

Calou-se. Quem pensava que era para argumentar com ele? Devia estar certo. Talvez de seu ponto de vista tudo fizesse sentido. Não queria sofrer as consequências de um teto desabando em sua cabeça, mas também manter aquelas paredes de pé seria insuportável. Não poderia simplesmente sair e mudar-se para outra casa, esquecer tudo, recomeçar. Outro talvez pudesse, ela não. Teria de derrubar antes, pensou naquilo diversas vezes. Sabia que, pela estrutura, só poderia ser feito de dentro para fora. Não havia forma de sair ilesa daquilo. Não seria a mesma coisa se alguém fizesse, se não destruísse, ela mesma, tijolo por tijolo, não poderia recomeçar.

Talvez você pudesse, faça com que seja destruída, que não reste nada. Eu poderia esquecer tudo e não sucumbiria sob esse peso. Trate-o como um equívoco e em pouco tempo nem se lembrará que existi, que uma parte insignificante do que construiu não virou legado da arquitetura do mundo.

— O que está me pedindo?

— Bem, não acho justo perecer sob esses escombros. Não foi um bom projeto. Ponto.

— Quer que eu assuma sua responsabilidade na demolição?

— Não. Quero que admita que foi um erro. Não um erro desastroso, algo que mereça uma correção bíblica, apenas uma linha equivocada que se corrige sem maior dano ao desenho completo. Apenas apague e pronto. Nem eu nem você sairíamos mal disso. Você seguirá seu caminho e eu... bem, eu... Não precisará mais pensar em mim. O que acha? Posso escolher isso. Você disse que sim.

— É complicado...

— É...

Olhou-o pela última vez.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

3 minicontos

silvana guimarães

 

 

camuflagem

 

 

Aos sete, escreveu mamãe é a mais bonita. Aos 15, decidiu que ela era a melhor mãe do mundo. Ontem, fez 21. Filha da puta, gritou. A blusa ficou mal-lavada.

 

 

 

 

obstinada

 

 

Abriu a gaveta. Agarrou a tesoura e a corda. Desistiu da tesoura. Arrastou a escada de três degraus. Subiu a escada. Equilibrou-se nas pontas dos pés. Prendeu a corda nas vigas aparentes do teto. Deu o nó. Desceu da escada. Conferiu o que estava escrito no bilhete em cima da mesa. Tirou a caneta da bolsa. Rabiscou a única frase "cansei de sofrer". Escreveu "cansei de viver". Subiu no banquinho. Desceu do banquinho. Pegou a caneta. Riscou "de viver". Subiu no banquinho. Desceu do banquinho. Pegou a caneta. Escreveu "não quero flores". Releu as duas frases. "Cansei. Não quero flores". Sorriu. Subiu no banquinho. Ajustou a corda em volta do pescoço. Suspirou. Afrouxou a corda e retirou a cabeça. Desceu do banquinho. Amanhã era o último capítulo da novela das oito.

 

 

 

 

conto de partida

 

 

A velha, quase noventa anos, sentada ao lado do caixão do filho morto aos sessenta e seis, olha para ele, o olhar resignado e atento, as mãos no terço. A neta, filha do morto, ainda desacostumada aos ofícios da orfandade, não resiste: "Ô vó, será que a sua dor é maior que a minha? Será que dor tem tamanho?". A velha, sem mudar o olho, responde: "Estou pensando agora: quantas vezes me despedi do seu pai. Lembrando a cara dele na janela do trem, dezoito anos de idade, acenando pra mim, feliz e constrangido, indo embora, estudar na cidade grande. Foi a primeira vez".

 

 

 

 

 

 

3 poemas

sonia viana

 

 

ser sensível

 

 

Chora pela beleza

Chora pela tristeza

Chora também de alegria

Só não chora

Pelo leite derramado

Virou passado

Só o presente importa

 

 

 

 

despedida

 

 

Iria partir

Dizia:

"Vou atravessar um portal de luz"

Mudaria de estado

Não teria mais energia condensada

Ficaria luminosa

Último pedido

Convocou todos os amigos

Desejava dizer-lhes sobre a alegria de viver

Agradecer momentos compartilhados

Os médicos aguardavam o derradeiro pedido

"esmero na dose da morfina"

Foi feliz até o último suspiro

 

 

 

 

destruição

 

 

Girassóis

Brilhavam beleza

Chegou o maldito progresso

Invadiu campos

Invadiu todos os cantos

Arrancaram todos os pés

Chorei de dor

 

 

 

 

 

 

2 contos

tatiana alves

 

 

a estrela que sonhava ser lua

 

 

Stella nascera no circo. A mãe, uma antiga bailarina, mais bonita do que propriamente talentosa, apaixonara-se pelo pai da menina numa das temporadas do circo na cidade. Fugira com ele aos quinze anos, para uma união que já durava quase vinte. O marido ensinara-lhe tudo o que ela sabia. Um ano depois, nascia Luna. Três anos depois, chegava Stella, herdando involuntariamente o destino nômade e o estigma de ser a filha caçula num lugar onde o estrelato estava reservado à primeira. Os nomes das moças deixavam entrever o gosto da mãe pelo misticismo. No fundo, Carmen queria ser cartomante, mas o marido enxergara em sua beleza o potencial para que ela virasse a grande atração daquele circo. Luna tinha a graça e o talento natos a uma bailarina. Seguindo os passos da mãe, ela logo se revelou uma das maiores atrações do Grande Circo Royal, atraindo aplausos de admiração em todos os lugares por onde o circo passava.

A pequena Stella, frágil e tímida, fora treinada para ser apenas ajudante em atrações em que houvesse a necessidade de um auxiliar. Nos números de mágica e na maquiagem dos bailarinos, ela era sempre requisitada. Mas sentia que lhe faltava algo. O brilho dos holofotes atraía-a de forma quase hipnótica, sendo esse fascínio contido apenas pela sua timidez.

Depois de uma temporada ruim, em que o pai teve de dispensar alguns funcionários, a situação da menina piorou. Agora ela era também encarregada de vender balas e pipocas durante o espetáculo, função que odiava. Apesar de tímida, ela era belíssima, e as gracinhas dos clientes agrediam-na. No íntimo, preferia ser uma das aberrações, que atraíam a atenção por causa de sua deformidade, a ficar à sombra da irmã, cuja semelhança com a mãe rendera-lhe também o posto de favorita junto ao pai. E ela, a desastrada que derrubava as pipocas que deveria vender, sentia-se, no alto de seus quinze anos, a mais desengonçada das criaturas.

Uma vez, pensara em fugir. A irmã rira da imaturidade de sua ideia, argumentando que o circo já representava a fuga. Como evadir-se de algo que já contém em si o simulacro, o palco, a ilusão? A ilusão mora dentro de nós. Está no nosso sangue, dissera ela, na ocasião.

A cada mudança de cidade, a cada novo acampamento, Stella sentia-se definhar. Alguns têm asas, dizia a mãe; outros, raízes. E o sonho da mãe, realizado em um arroubo juvenil, era o pesadelo de Stella.

Apenas uma coisa a prendia àquele circo: Rodolfo, um acrobata, mais arredio do que os animais, mais destemido do que qualquer outro integrante daquela trupe. Seu coração, tão livre quanto o dono, sempre estivera vazio, e talvez nesse pormenor residisse a sua liberdade. Colecionava aventuras nos lugarejos onde o circo passava, mas o fazia justamente porque contava com a efemeridade da situação. Uma vez, Stella perguntara-lhe se ele não tinha vontade de se casar. A resposta foi uma sonora gargalhada, com um leve afago em sua cabeça: meu coração é pirata, Stellinha. Nem o atirador de facas seria capaz de feri-lo — disse ele, afastando-se após dar-lhe um beijo fraternal na testa.

Todas as tardes, Stella observava o árduo treino da irmã, absorvendo cada movimento, cada detalhe de uma arte que misturava graça e precisão. Uma falha, numa fração de segundo, poderia ser fatal. Após o fim do ensaio, num momento em que o picadeiro ficava vazio e os artistas descansavam até a hora do espetáculo, Stella reproduzia graciosamente os movimentos da irmã. Nesses momentos, ela nada tinha de tímida ou de desastrada. E o fazia com mais leveza, e com mais paixão. Não possuía a beleza da irmã, o que a fazia se encolher, envergonhada, quando alguém a surpreendia em seus momentos de devaneio. Faltava-lhe a consciência de que talvez se tornasse uma bailarina melhor do que a irmã jamais fora, se lhe fosse dada uma oportunidade.

A temporada naquela cidade vinha sendo uma das melhores que o circo já havia conhecido. Todas as noites, os ingressos eram integralmente vendidos, levando-os a respirar, aliviados. Se dependesse daquela temporada, poderiam pagar os artistas, que estavam sem receber havia três meses, e comprar um novo veículo para o grupo.

Stella aproveitou a tranquilidade do horário após o almoço e foi conversar com madame Soraya. A cartomante do circo tinha a fama de embusteira, mas conhecia bem a alma humana, e sempre dizia aquilo que seus consulentes queriam ouvir, o que lhe assegurava o emprego no circo e polpudas gorjetas a cada noite.

O ruído das cortinas de contas fê-la erguer os olhos.

— Olá, criança. Perdida por aqui, na tenda de Madame Soraya? — o tom da cigana era tão benevolente quanto o dos demais, e isso irritava Stella. Mas ela ouvira uma história de que a cartomante havia sido namorada de seu pai antes de ele conhecer Carmen e se apaixonar por ela, e, ainda segundo os rumores, a mãe só não exigira a demissão da cartomante, descendente de ciganos, porque temia que ela a amaldiçoasse. O pai, de resto um coração mole que não queria deixar a antiga namorada à míngua, resolveu a situação mantendo-a no circo. Seu trailer era o mais modesto, e o mais afastado, mas ele a via mais como vítima do que como ameaça, e, de mais a mais, ela fazia sucesso com os clientes e, com sua gorjeta, era uma das que menos reclamavam do salário atrasado.

— Sente aqui, meu anjo. Você quer fazer uma consulta? Quer saber o que o futuro lhe reserva? — seu tom continha um leve sarcasmo, como se a insólita visita estabelecesse uma cumplicidade entre si e a menina, de resto filha de seu maior desafeto. O amor pelo pai da menina havia desaparecido; a mágoa, não. Salivou, no gosto amargo do rancor que alimentava havia vinte anos.

Stella sentou-se defronte à mulher. O lenço vermelho, saia florida, a maquiagem carregada, nada daquilo era encenação. O olhar misterioso, perscrutador, daquela mulher era real. Todos a tomavam por enganadora, mas Stella sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo quando a vidente pegou em sua mão, puxando-a para perto de si.

— Deixe ver... Você vive um grande dilema, criança. Essa aventura não é para você. Seu mundo é o dos castelos, não o das tendas. Você precisa de paz, algo que o mundo do circo não lhe oferece. Alguns precisam de aventura; outros, de sossego. Mas eu também vejo que você tem uma âncora aqui. Mas ele sempre está longe de você, não é? as palavras da mulher foram acompanhadas de um olhar que parecia enxergar a alma da menina.

Stella recuou, instintivamente.

— Não, não é nada disso desconversou, fingindo naturalidade. Só queria saber se as coisas vão melhorar. Se esta cidade vai ser boa para nós.

— Esta cidade vai mudar a sua vida, criança — a mulher jogava um baralho de cartas gastas, falando antes mesmo de desvirá-las por completo. O cigarro pendia de um canto da boca, dando-lhe um ar meio vulgar.

— Como assim? Eu vou conseguir mudar de vida? Ou estou destinada a morrer neste circo?

Nesse momento, a cartomante assumiu um ar solene. Largando as cartas, começou a acariciar uma bola de cristal nebulosa. Parecia de fato absorta em algo que vira. Sua atuação era impecável, embora a falta de caráter não excluísse algum talento real para o ocultismo.

— É verdade que você e meu pai eram namorados antes de ele conhecer minha mãe? perguntou a menina, arrependendo-se em seguida, ao ver a expressão da cigana.

— Esta consulta é sobre você, não sobre mim, criança. Não me distraia com tolices. — O tom da mulher continha uma indisfarçável amargura que até a menina, apesar de sua pouca idade, foi capaz de perceber. — Isso foi há muito, muito tempo. Quase outra vida. Venha. Dê-me novamente sua mão. — continuou ela, secamente.

A contragosto, Stella levantou-se e aproximou-se da mulher, estendendo a mão direita.

— A outra, criança. enquanto dizia isso, pegou a outra mão da menina, recuando, horrorizada.

— Cuidado, criança. Muito cuidado. Stella detestava quando a vidente a chamava assim, mas não esboçou qualquer reação. O tom da mulher trouxe-lhe novo arrepio.

— Por que você demorou tanto a me procurar? Medo de Madame Soraya? a cigana jogou a cabeça pra trás, em um ar de desafio.

— Não... É que eu me sinto meio perdida. Nunca saí daqui.

— E nunca esteve aqui de todo, não é? Não posso lhe dizer muita coisa. Só que a sua vida mudará em breve. Seu brilho é diferente. Você é como uma borboleta, mas todos só enxergam a lagarta. Mas isso irá mudar. A hora de seu voo está próxima. — disse ela, encerrando a conversa.

Em silêncio, um tanto arrependida por ter ido até ali sem obter qualquer informação precisa, Stella voltou ao seu trailer, com o cuidado de não ser vista. Não sabia do que a mãe seria capaz se soubesse que ela havia cruzado os limites permitidos. Numa mistura de medo e respeito, a mãe não admitia que as filhas tivessem contato com a cigana, e a última coisa de que Stella precisava era que a mãe se aborrecesse com ela.

Luna treinava para o espetáculo da noite. Sua beleza fazia com que qualquer imperfeição nos movimentos passasse despercebida. Stella, contudo, possuía um olhar quase técnico, e detectava algumas falhas nos movimentos da irmã, mas jamais diria nada. Quem era ela para criticar algo em Luna? Uma vendedora de pipocas?

E foi justamente um movimento errado, que Stella sempre observava no mesmo ponto da coreografia, o que fez a irmã cair de mau jeito, torcendo o pé. Não parecia nada grave, mas que provavelmente a deixaria fora do espetáculo por duas semanas.

— Logo agora, que estamos com a casa cheia, perdemos nosso melhor número! o pai passava a mão pela cabeça, transtornado.

— Nossa filha se machuca, e você se preocupa com o espetáculo? gritou a mãe.

— Não é nada demais. Não é, filha? disse o pai, agora preocupado.

Luna sacudiu a cabeça e olhou o pé, apreensiva.

— Acho melhor levá-la a um médico. Somos treinados para cair, mas pode haver algum dano maior. É melhor não arriscar. a voz de Rodolfo se fez ouvir.

— Não... É... Sim. Você pode fazer isso, Rodolfo? Tenho de pensar como vamos fazer esta noite. E nas outras...

— Eu faço o número dela! a voz de Stella assumiu um tom que fez com que todos se virassem.

— Você, filha? o pai deu uma gargalhada. — Mas você...

— Tenho tudo para ser mais do que uma vendedora de balas, pai. E sempre treino o número da Luna. Conheço cada passo da coreografia. Só até ela ficar boa...

— Não sei, não sei... — o tom do pai mesclava prudência e desconfiança. — Por que você não nos mostra o que sabe fazer?

Stella ligou o som, e começou a dançar. Aos poucos, os integrantes do circo aproximavam-se, surpresos. A menina havia crescido, e sabia fazer um bom trabalho.

— Acho que já posso me aposentar. Luna parecia de fato animada com o talento da irmã.

— Vamos fazer assim, então: enquanto a Luna não puder atuar, você a substitui. – disse o pai, aliviado.

— Depois... Volto a vender bala, né? o tom de Stella não disfarçava a amargura.

— Depois vemos como fica, Stellinha. disse Rodolfo, tentando contemporizar. O importante é que agora o problema está resolvido. E Luna poderá descansar até ficar bem.

A cartomante ouvia, temerosa. O casulo começava a se romper.

Stella passou o resto do dia ensaiando. Por mais que conhecesse a coreografia de olhos fechados, não podia se dar ao luxo de errar. Os olhares estariam centrados nela, e qualquer descuido confirmaria o seu destino de coadjuvante. O brilho naquele circo era destinado a Luna. E ela, embora não quisesse competir com a irmã, também desejava seu momento de estrelato. Isso poderia ser decisivo para que Rodolfo a notasse.

Chegou, enfim, o momento da estreia. A mãe parecia emocionada, e até o pai, apesar de sua indisfarçável predileção por Luna, sorria, orgulhoso.

O picadeiro estava todo iluminado, e o calor das luzes aquecia a alma da moça. Seu nervosismo, aliado ao calor, fazia com que a maquiagem começasse a derreter. Nada que comprometesse o brilho daquela noite. Lembrou-se, por um momento, das palavras da cartomante: você é uma borboleta. Os outros só veem a lagarta.

Hoje seria diferente. A primeira parte da coreografia foi executada de forma magistral, e os aplausos a ela destinados pareceram ainda mais efusivos do que os que a irmã estava habituada a receber.

A segunda parte da coreografia era um pouco mais elaborada, e envolvia um plano um pouco mais alto, e foi justamente nesse ponto que a irmã se machucara. Teria de ser cautelosa. Os tambores começaram a rufar.

Respirando fundo, preparou-se para subir ao trecho de onde a irmã costumava realizar aquela parte. Procurando Rodolfo com os olhos, encontrou-o ao lado da irmã. Atencioso, ajudava-a a se sentar em um lugar que permitia a visão do espetáculo.

Stella subiu até o ponto desejado. Buscando novamente Rodolfo com o olhar, encontrou-o cochichando algo no ouvido da irmã, que ria. Tolos, pensou. Nem prestavam atenção nela. Ela lhes mostraria.

Continuou a subir, para executar o movimento de um ponto ainda mais alto. Provaria a todos que era melhor do que Luna. Que poderia ser a estrela daquele espetáculo. Que fora subestimada a vida inteira.

Alguns integrantes da equipe cochichavam, apreensivos. Fazer o número daquela altura era uma loucura, pois o risco era muito maior. Nem Luna, com seus anos de experiência, jamais tentara aquilo. Os tambores continuavam a rufar.

Seus pensamentos foram interrompidos pela visão do beijo que Luna e Rodolfo trocavam naquele momento. Nada mais fazia sentido. Muito mais do que a preferência dos pais, Luna roubara-lhe também o amor de Rodolfo. O amor que ela nunca teria a chance de conquistar.

De repente, as palavras cifradas da cigana ganharam outro sentido: sua vida irá mudar... A hora de seu voo está próxima. O rufar de tambores cessou. Mirando o público, respirou fundo antes de se atirar, em seu primeiro e único voo-solo, como a borboleta-estrela daquela noite.

 

 

 

o penúltimo vagão

 

 

Aquele defeito na mão nem chegaria a incomodá-lo. Era apenas uma deformidade, decorrente de um acidente ocorrido na infância, que deixara sequelas. Mas era determinante na hora de procurar emprego. Disfarçando o olhar, os entrevistadores lançavam mão das mais variadas desculpas na hora de dispensá-lo, sempre após uma entrevista em que sabia ter se saído bem. Mas ele não desistia.

Já fazia dois anos que fora demitido de seu último emprego. Trabalhava atrás de um computador, e a anomalia, segundo sua visão — a mão esquerda retorcida para trás —, não o impedia de realizar qualquer tarefa.  Mas a visita de alguns investidores à empresa deixou seu superior numa situação difícil, expressão utilizada por ele na ocasião. E atualmente os entrevistadores, alguns mais discretos, outros diretos, acabavam por não o contratar.

Tivera um dia especialmente ruim. Após duas fracassadas entrevistas, das quais saíra com a certeza de que não seria aproveitado, decidiu voltar para casa caminhando. Passava a vida em revista, relembrando todas as circunstâncias que o tinham levado àquela encruzilhada em que se encontrava.

Exausto devido às sucessivas decepções, decidiu que iria deixar-se levar pela sorte, ao sabor do vento. E foi o vento que lhe trouxe um panfleto amassado e encardido, informando sobre a chegada de um circo à cidade.

Ele odiava circos. E talvez aí estivesse a grande ironia de sua vida: vinha tentando, havia algum tempo, trabalhar naquilo de que gostava. Mas o incidente que lhe trouxera a deformidade, em circunstâncias que ele preferia esquecer, tinha lhe tirado muito mais do que a vaidade ou a autoestima. Achava que nunca poderia ser veterinário com aquela mão defeituosa. O isolamento que o acompanhou na adolescência transformou-o num excelente programador, e o trabalho com computadores era silencioso e individual, como ele preferia desde então. Mas até esse lhe vinha sendo negado. Alijado de tudo aquilo de que gostava, optou, num impulso masoquista, por visitar o circo.

Chegou ao local duas horas antes do horário do espetáculo. Começou a caminhar pelos arredores, tentando compreender o que, desde criança, justificava tanta antipatia. Seu amor pelos animais, que em um passado remoto lhe rendera o desejo de estudar Veterinária, era uma das principais razões pelas quais era reticente em relação aos circos: os métodos cruéis de adestramento, aliados aos maus-tratos, além da exploração dolorosa e comercial dos animais, fazia-o vomitar. A alegria forçada de palhaços e trapezistas apenas completava o quadro.

Ele jamais entenderia, portanto, o que exatamente fizera com que se aproximasse daquela tenda naquela tarde. O gerente, irmão do dono, recebeu-o cordialmente:

— Nossa bilheteria só abrirá daqui a uma hora. disse-lhe, com um sorriso complacente.

— Não vim comprar ingressos. Eu... Na verdade, nem sei bem por que vim. respondeu, com o máximo de sinceridade que a situação permitia.

Nesse momento, outro dos irmãos surgiu, comentando sobre a saída de um dos empregados. Ele esbravejava, enfurecido, sem perceber a presença do estranho.

— Antônio, nós temos visita. Não seja mal-educado com o nosso convidado. o irmão tentou disfarçar a grosseria do outro, sem sucesso.

— Quem? — o irmão, em sua fúria, não enxergara o intruso.  — Ah, sim, me desculpe. É que estou seriamente comprometido com o espetáculo desta noite, e aquele irresponsável simplesmente decide ir embora assim, sem avisar, no primeiro dia na nova cidade.

— Como você pode ver, todos têm problemas. Passamos ao público a fantasia e o sonho, mas nossa realidade nada tem de encantadora. o gerente tentava amenizar a falta de polidez do irmão.

A mim, nunca me enganaram, pensou Diego, embora sem verbalizar a visão negativa que tinha daquele mundo. Seu pessimismo não justificava tal indelicadeza. E, de mais a mais, o gerente mostrava-se simpático.

— Quem não tem problemas, não é? perguntou, mais por educação do que por solidariedade.

— O que você faz da vida? Trabalha em quê?

— Sou neurocirurgião respondeu, estendendo a mão defeituosa. — Desculpe. disse, tentando se retratar. — Não costumo usar de sarcasmo gratuitamente. Mas não estou em um bom dia.

— Nem nós, como você pode ver. Mas me diga uma coisa: gostaria de trabalhar conosco? o olho do outro brilhou ao fazer a pergunta.

Antes que ele pudesse responder que sua raiva por estar desempregado só não era maior do que a que nutria por circos, o outro o abraçou, dizendo: — Só hoje. Você fica na bilheteria, e conhece o pessoal. Amanhã dou um jeito. Gostei de você.

A noite transcorreu tranquilamente, e o trabalho na bilheteria, além de simples, não o obrigava a travar contato com aquele mundo que ele julgava horrendo. Depois de algum tempo desempregado, era quase agradável estar ali, e foi assim que aceitou o convite de cobrir a bilheteria durante o mês em que o circo ficaria na cidade. O horário permitia-lhe prosseguir em sua busca por um emprego fixo, e garantia ao menos algum dinheiro naquele mês.

Os dias se passavam lentamente, e Diego começava a se sentir à vontade ali. Embora pairasse uma aura de desconforto que provavelmente remontava à sua infância, ele agora conseguia se distanciar emocionalmente de tudo aquilo, e até encontrar paralelos entre o dia a dia no circo e a vida. Algumas pessoas pensam na magia do circo, e, ao descobrirem tudo o que existe por detrás, se decepcionam. Com ele, deu-se o contrário: o que mais o incomodava na infância era a falsa alegria, a artificialidade dos gestos e expressões. Perceber isso no olhar dos que sorriam trazia-lhe uma profunda melancolia, a ponto de os pais decidirem não mais levá-lo ao circo, uma das poucas atrações daquela cidade pequena. O pai, que não admitia filho frouxo, dera-lhe uma surra quando ele, ao ver um leão sendo intimidado pelo chicote do domador, chorara e vomitara durante o espetáculo. Também ele, ao chegar a casa naquela noite, fora castigado de forma implacável, por deixar seu íntimo aflorar. Desde então, torcia pelos animais. Sentia-se muito mais próximo dos leões e tigres enjaulados e subjugados, do que do humano que os oprimia. Nunca fora a rodeios ou a touradas, mas os odiava com igual vigor. E talvez naquela noite a sua decisão de se tornar um veterinário se tenha manifestado, de forma latente. Mas até isso lhe seria negado, desde o acidente, como ele se referia ao episódio.

Agora, a possibilidade de ver o circo em seus bastidores deu-lhe a dimensão humana de cada uma daquelas pessoas que, por necessidade, tornam-se simulacros de alegria, forçados e patéticos arremedos de empolgação. Cada um a seu modo, também eles eram vítimas.

Atravessou o pavilhão para buscar os panfletos de divulgação que deveriam ser distribuídos naquela tarde. Os profissionais ensaiavam os números, alheios à sua presença. E novamente a ideia de que o circo traduz o movimento do mundo voltou-lhe à mente. Em suas divagações, via, nos domadores que tanto abominava, a tentativa de supremacia do humano em relação ao animal, da cultura sobre a natureza, do intelecto sobre o instinto. Embora fosse particularmente avesso a qualquer sofrimento infligido aos animais, não podia deixar de notar, na covardia do ato, um embate de forças em que o homem tentava, cruel e impiedosamente, triunfar e domesticar o lado selvagem da criatura. Em sua escolha pela veterinária, era o seu lado humano quem falava, tentando aliviar as dores dos seres indefesos que ele um dia jurara defender. Mas isso era passado. Também ele, mais jovem, tentara domar seu lado mais instintivo. Olhando de relance a mão retorcida, lembrou-se do alto preço pago por isso.

Passeava agora pelo espaço onde os malabaristas ensaiavam. Quantas vezes ele também não se via, sobretudo no momento atual, tentando driblar malabares de adversidades, em trejeitos quase impossíveis, na vã tentativa de equilibrar os diferentes aspectos de sua vida?

Andou mais um pouco, e seu olhar encontrou o do ágil trapezista que se atirava, destemido, lançando-se de forma apaixonada pelos ares, deixando a segurança e lançando-se ao risco, sem a certeza de que suas mãos encontrariam o outro trapézio a tempo. Apesar de sempre ter corrido riscos calculados, sem nunca ter se permitido o pulo corajoso, insensato, no vazio, sentia-se agora irmanado ao trapezista, jogando-se, na desmedida dos que não buscam o outro trapézio por sabê-lo inexistente.

A corda-bamba era outra atração que o fascinava. Admirava a serenidade com que a artista encarava o desafio, e as ameaçadoras oscilações ao longo do percurso, fazendo-a pender para um dos lados, levando-a à queda derradeira, dispensavam analogias. Em seu mundo, a corda-bamba constituía o seu percurso, e muitas haviam sido as quedas, infelizmente nenhuma fatal. A morte teria sido melhor. A eterna instabilidade das coisas só lhe trouxera a certeza da mão disforme, desqualificando-o para a única coisa que talvez fizesse sentido.

Todavia, apesar da clareza em relação ao circo trazida pelo novo emprego, havia um aspecto com que ele não conseguia lidar: tratava-se do sujeito que comandava as marionetes. Não sabia exatamente o porquê daquela antipatia, mas havia algo naquele titereiro que o deixava completamente irritado. Um psicólogo talvez lhe dissesse que, em sua analogia com o mundo real, talvez os títeres constituíssem o seu maior incômodo, num simbolismo que carecia de explicações. Sentia-se marionete desde que nascera sob a tutela daquele tirano, e pagara o preço pela rebeldia.

O sujeito levantou os olhos quando ele passou, retesando o corpo, numa demonstração inconsciente de que o desconforto era mútuo. Recolhendo os bonecos — eram quatro, no total, e, na opinião de Diego, cada um mais grotesco do que o outro —, afastou-se rapidamente.

Diego pressentia algo de estranho em relação àquele homem, embora não soubesse precisar exatamente o quê. Em tempos politicamente corretos, em que aberrações não são mais exploradas pela curiosidade humana e expostas em seu infortúnio nos circos, era no mínimo desagradável contemplar as expressões faciais daqueles bonecos, que pareciam saídos de um filme de terror. Suas expressões traduziam espanto, dor, medo. Eram quase reais, de tão perfeitos. E, talvez por isso, tão assustadores. Não entendia como aquele número fazia tanto sucesso entre as crianças. Talvez, no fundo, sejamos todos originalmente cruéis, e o mundo nos ensine a domar essa crueldade atávica.

Nos dias que se seguiram, Diego chegou um pouco mais cedo, e, tomado por uma curiosidade quase mórbida, decidiu descobrir o que aquele sujeito escondia. Toda vez que se aproximava, o outro se afastava rapidamente. Era o único integrante do circo que não pertencia à família, o que não o impedia de exercer uma influência sobre os demais. No fundo, Diego tinha a impressão de que todos o temiam. E ele, que não temera nem o pai, que lhe deformara a mão com golpes de martelo como castigo à sensibilidade do menino, não seria intimidado pelo olhar gélido daquele homem. Além disso, era a sua última semana com aquela gente, já que o circo iria embora após o espetáculo de domingo.

Assim que chegou à tenda, levantou cuidadosamente o pano que encobria o acesso aos vagões onde ficavam os aposentos dos integrantes. O penúltimo era o do titereiro, que era o único a não dividir o trailer com ninguém. Diego entendia. Não os culpava por não quererem dormir ao lado daquele sujeito.

Olhando ao redor, para se certificar de que ninguém o vira, Diego abriu a porta do trailer. Boquiaberto, num instante compreendeu por que todos o temiam. A verdade era por demais aterradora, e ele teve de se controlar para não gritar. O ruído atrás de si revelou que ele não estava sozinho ali.

 

*

 

Um ano depois, o circo retornou àquela cidade. De posse dos folhetos de divulgação, as pessoas vinham, atraídas pelas novidades que a propaganda anunciava.

Olha, mamãe, aqueles bonecos ali. São cinco! Olha aquele, que estranho! — gritou a criança, apontando o novo boneco do show de marionetes, que tinha uma expressão aterrorizada e a mão esquerda meio torta, virada pra trás.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

6 poemas

valéria tarelho

 

 

*

 

 

pior que não ter amado

é quando você

sabe

o sabor exato

da palavra

amor

 

— flambado —

 

e não pode mais

prová-la

 

— em chamas —

 

nem no dicionário

 

 

 

 

*

 

 

as meninas

dos olhos

ficaram moças

 

estão amando

 

dilatando à toa

chorando feito

criança

 

 

 

 

meteórico

 

 

mesmo na incerteza

de um possível

céu

[meu e teu]

 

já saboreio

as memórias

do nosso amor

de urgências

 

todas elas

têm gosto

de estrelas

 

 

 

 

petrichor

 

 

quero amanhãs que me devorem. enjoei de hojes sem teus beijos. coleciono ontens secos. os lábios rachados dos agoras sangram em bicas. o poema chora seu sinal. vermelho. rima que nunca cicatriza. mordo as horas que há bocas nos separam. sepultam os abraços. hojes de urnas contendo cinzas.

quero amanhãs de asfalto, pedágios, velocidade máxima. amanhãs de pressas e apreços. precisão de línguas lambendo fal[h]as e silêncios. a saliva das palavras selando cada sílaba do desejo.

amanhãs tenros para nos comermos. crus. com destempero. destemidos.

à luz dos próximos milhões de sóis.

amanhãs com chuvas que desprendam nosso cheiro pelas ruas das futuras luas. que levarei no ventre.

 

 

 

 

*

 

 

o não dito

dói tanto

quanto

o grito

 

o tempo

que dura

o silêncio

rompe

o tímpano

 

vem

e me cura

 

sussurra

uma loucura

qualquer

 

ao pé

do ouvido

 

 

 

 

*

 

 

Tenho medos que só assombram os adultos (mas só os míopes). E coragens de cegar crianças, ingenuamente confiantes em suas crenças.

Tenho medo de olhar ao longe. E, sem as lentes, distorcer os fatos. Tenho medo do teu vulto, do teu mito, sem rosto. E de tua sombra, de tua imagem, tuas fábulas mal projetadas. Tenho esses medos maduros, que tateiam. Tremendo.

E tenho a coragem de voar no escuro de tua história. Sobrevoar, sem teto. Me arremeter. Precipitar.

Com essas asas — imaginárias — que o amor teceu.

 

 

 

 

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