edição 50 | abril de 2016
o leite derramado | último pedido | onde me arrancaram todos os pés

 

1 poema

adília do rego castro

 

 

sufragete alcoviteira

a primeira na fila do talco

rendas & vidrilhos

dispostos na beira da banheira

estratagemas quais seriam?

um pé direito, sais de banho

a posição do corpo no espaço oval

e os dedos dedilhando em movimentos

de orquestra, allegro andante sem pausas

na pauta, lembrava o banho tcheco no bidê

levantou-se anestesiada, algum formigamento

nas partes baixas e notou algo quente

escorrendo entre as pernas com aparência

de leite derramado

 

 

 

 

 

 

why do birds suddenly appear?

adriana brunstein

 

 

Ao invés de pousar minha mão sobre algum livro sagrado e responder sim ao "jura que a vida é isso, somente isso, nada mais do que isso?", gastei tudo que tinha com patês em bisnaga. Eu chupava um atrás do outro como se fossem pauzinhos sujos de garotos que não sofreriam por mais nada que não fosse acne pustulosa. Um deles cresceu e perdeu o olho esquerdo em uma briga, ou foi só o que ele me contou enquanto me prensava na parede e avançava a mão cascuda por debaixo da minha blusa. Tem essa necessidade besta de ter que falar alguma coisa o tempo todo e tudo bem, a gente saca algo do bolso ou daquelas dobras na pele que "merda, isso não estava aqui antes". O fato é que você só precisa se livrar daquele pequeno aro de metal e a bisnaga já começa a jorrar. Pode usar até uma tesoura torta de cortar unha, aja como se fosse uma autópsia ilegal realizada às pressas em local clandestino, tudo em nome de alguma emoção que honramos forjar diariamente. Curiosamente ele não falou nada sobre a aspereza das mãos e eu não queria correr o risco de ouvir mais uma desgraça ou constatar que era só relapso mesmo. E, sei lá, propiciava uma sensação estranha que não era de todo ruim nem pior do que outras que acompanharam promessas de amor eterno e um cineminha às seis. O próximo passo você pode chamar de a obra de sua vida. Todos aqueles saquinhos ainda com resquícios de amido, ovo em pó, maltodextrina, estabilizante polifosfato de sódio e lembranças capturadas por uma Kodak Instamatic Xereta podem ser empilhados, alinhados, entrelaçados, rasgados, triturados e ninguém vai ousar dizer que não é obra de um gênio incompreendido. Se você não quiser posteridade, simplesmente jogue tudo no lixo, o que também vai gerar hipóteses hilárias sobre o que aconteceu. Quando ele dobrou a esquina tudo que ficou foi um cheiro estranho, que nem cheiro de solidão quando a gente abre a geladeira vazia. O garoto da loja de conveniência perguntou se eu ia levar tudo aquilo mesmo. Da pequena caixa de som vinha algo que soava como The Carpenters. Deixei que ele ficasse com o troco. Até que foi uma bela barganha. Não creio que demônio algum fizesse oferta melhor.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

3 poemas

adriane garcia

 

 

a incomensurável montanha de Inês, que é morta

 

 

Eis assomada no cume do que acumulei

A nuvem causando-me a grande sombra

É de sol a sol que subo carregando o peso

Dos meus erros de bicho tão ignorante

 

E não creias fosse possível descer

E não creias fosse plausível chorar

Nuvem infinita, montanha rumo ao nada

Nem do cilício te lembres, as costas de sal e lanho

 

Plantei, plantaste, ninguém sabe que deserto

Mas é sempre tarde para não lhe dar prosseguimento

Enquanto os cabelos cozinham na brisa quente

E só algum sonho nos tira a areia dos olhos.

 

 

 

 

extrema-unção

 

 

Que fosse limpo e não foi

Que fosse justo e jamais

Que fosse certo e nem me ouviu

Que fosse belo e tudo matou

 

Que fosse plano e se apresentasse

Pacífico por vidraças em gotas

A chuva leve e oceânica

Com o cheiro do sal do mar

 

Que fosse morte calma e velha

Mas não

Foi confusão

E guerra.

 

 

 

 

pegadas no infinito

 

 

Um deus brincalhão se ri

(Formigas desesperadas correm a esmo e trombam)

 

Olha-nos por um brinquedo de fazer ilusões:

Qualquer impressão de movimento é falsa.

 

 

 

 

 

 

3 microcontos

adrienne myrtes

 

 

*

 

 

Sem caixão.

Quero beijar a terra enquanto ela me come.

 

 

 

 

*

 

 

Deixou por escrito: me cremem. Não vou a enterros, nem morto.

 

 

 

 

*

 

 

Não quero rosas no caixão. Eram sempre rosas as flores que seu pai trazia após me bater.

 

Qualquer outra coisa é só dizer. E desculpe-me por deixar pra última hora. Gracias por tudo.

 

 

 

 

 

 

você não pode negar

alice barreira

 

 

Só consegui num boteco lá do outro lado da rua, descendo umas duas quadras. E voltei correndo, pra chegar com a tulipa ainda branquinha de tão gelada. Fui pedindo licença até ficar do teu lado. Pousei a tulipa e peguei o chaveiro na bolsa para abrir a garrafa com a chave. Não precisa fazer força, é uma questão de jeito. Você sabe, você me ensinou, não é? Peguei a garrafa pelo gargalo, como você recomenda, inclinei um pouco o copo e fui despejando a cerveja. Fez direitinho os dois dedos de colarinho, do jeito que você gosta. Então pousei a tulipa e a garrafa bem ao alcance da tua mão, dentro do caixão.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

arranca

ana criolina

 

 

a carranca me rindo

eu

em queda livre desde às cinco da tarde

língua solta que soca o asfalto

vendo

a tragédia pronta pra despacho

um bicho baixo se esgueirando

um colchão largado na calçada

vão queimar a vida!

vão queimar a vida!

deceparam os pés aninhados

atearam fogo 

os amantes de rua

mutilados

dançam sobre a brasa.

 

 

 

 

 

 

2 poemas

ariana zahdi

 

 

Para um amor que se derrama

 

 

Eles se amam muito distantes um do outro

E, ainda assim, se tocam por palavras

 

 

 

 

Para um amor que se derrama II

 

 

Sol de meio-dia

Era fogo da primavera

Gelada

E por dentro

Floresciam as cerejeiras

Tão orientais

Quanto a paz construída a dois.

 

No confronto íntimo

Nem mortos, nem feridos

Só risos frouxos

Pernas tronchas

Mãos geladas a acordar o corpo

E uma taça que se derramava

Mas nunca se esvaziava.

 

Sem métrica

Mas com ritmo

Sem seriedade

Mas com graça

Sem nós de marinheiro

Mas com enroscar de almas.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

3 poemas

assionara souza

 

 

oficina

 

 

O meu namorado Joe

— que é como ele gosta de ser chamado —

Está anos luz à minha frente

Ele me diz: "Você é estúpida como uma toupeira!"

Ele me diz: "Fica de quatro pra mim e me dá esse rabo agora!"

Largo o que estou fazendo, me posiciono feito a potranca do Tio Fred

E espero bem paciente que o Joe acabe o serviço

Coisa que eu sei fazer bem, pois fui treinada para isso

Todas as vezes que nosso pai chega emputecido em casa

Tanto eu quanto minhas irmãs

Largamos o que estamos fazendo

E ficamos prontas para servir nosso pai

E sem essa de me fazer de distraída mascando feno

Como se não fosse comigo

Isso o Tio Fred aguenta, mas o meu namorado Joe detesta

Tenho que urrar e rebolar até que ele dê o serviço por encerrado

Isso acontece quase sempre

Tem vezes, estamos no carro, simplesmente ouvindo música

Joe arreia as calças, enfia os dedos pelos meus cabelos

E me agarra bem na nuca

Então me empurra com tudo e me faz cair de boca

Mais ou menos o que fazem meus primos com as garotas

Na piscina do clube, entre risos e muita diversão

Afundam as cabeças das garotas

Até elas quase perderem o fôlego

Joe me diz: "Engole tudo! É assim que as boas garotas devem fazer!"

E ali mesmo, com a cabeça presa entre suas pernas

Trato de fazer a coisa direitinho

Melhor do que qualquer garota

Nem reclamo, nem me engasgo, nem nada

Saio triunfante com o rosto em brasa e os lábios vermelhos

Como quem se salvou de um afogamento

Nenhuma gota escorre pras pernas de Joe

Nenhuma baba na minha blusa

"Engole tudo e deixa de choro!"

Esse é um conselho que eu escuto desde pequena

"Seja uma boa garota, sua merdinha!"

Sempre foi bem comum ouvir esse tipo de coisa

 

Penso que é uma espécie de treinamento

E Joe com certeza teve também o seu treinamento

— de um modo diferente, claro...

Ele segura minha cabeça com os dedos bem abertos

Como se fosse uma bola de boliche

Depois empurra e empurra

A ponto de eu quase sufocar

 

O pai de Joe deve ter levado ele muitas vezes ao boliche

E ensinado a agarrar com a mão bem aberta

Uma bola pesada como uma cabeça de mulher

E deve ter ensinado pra ele o jeito certo de lançar

Pra ela bater com força no chão e sair rolando pela pista

Até derrubar todos os pinos

Ai do Joe se ele não tivesse jeito pra coisa

O pai dele teria ficado decepcionado

Os caras do boliche iam comentar e rir às escondidas

Isso ia ser constrangedor para o pai do Joe

Com certeza ele morreria de vergonha

E quebraria o Joe de pau até ele se endireitar

Mas Joe leva jeito pra coisa

Ele me diz: "Engole tudo, garota!"

E empurra minha cabeça como quem agarra uma bola de boliche

 

Joe está anos luz à minha frente

Assim como todos os caras que frequentam o clube

Assim como todos os caras do boliche

Para isso eles todos foram treinados

Eu fui treinada para engolir tudo

 

 

 

 

assédio

 

 

Matou a moça tantas vezes

Não sei como ela ainda conseguiu

Escapar com vida

 

 

 

 

carta aos surdos para uso dos que ouvem

 

 

O rabo de foguete voltou a transitar pelos céus

Há quem diga que sua carcaça é da cor preferida daquela atriz de cinema

Outros juram que tem a mesma cor do focinho de um cão de rua

Ouvimos um barulho, mas não sabemos bem de onde veio

Parece que começou naquele restaurante em Portugal

Enquanto os amigos escolhiam o que pedir para o jantar

A moça agarrou a faca mais pontuda

e desferiu golpes contra os próprios olhos

Fizeram um curativo improvisado com o guardanapo de seda

E todos saíram para dançar

Com os olhos cobertos, ela foi a que mais se divertiu

Depois teve aquele outro episódio

Televisionado em horário nobre

Mostrando todas as etapas de como se prepara um cordeiro

Escolher o mais tenro que ainda esteja amamentando

Separá-lo da mãe e depois é só matar, escalpelar, cozinhar e saborear

Os que comiam carne ficaram escandalizados

Como alguém poderia ser tão violento assim!

Marcharam em passeata até a casa do apresentador

Bateram em sua porta e ameaçaram arrombá-la

Esse assunto foi motivo de muitas conversas

Durante o almoço e o jantar

Enquanto degustavam um bife suculento

Não se falava em outra coisa

— Como alguém pode ser tão violento assim!

— Um assassino como esse não pode transitar entre as pessoas normais!

Pessoas normais com todos os dentes na boca

Pessoas normais com todos os dedos dos pés e das mãos

Pessoas normais com duas pernas e dois braços

Pessoas normais de acordo com o que a natureza diz

Pelo jeito que esse aí pensa, não parece uma pessoa normal

Aquele bêbado com chapéu-coco jamais será normal

Para se construir um país decente 

Em que as pessoas vivam em paz

É urgente assassinar esses anormais

Esses que querem avacalhar com a ordem

Esses que querem adulterar o que a natureza determinou

Esses que querem tirar do macho o poder de conduzir a fêmea

Tudo começou a ficar assim com a chegada dos anormais

Antes havia silêncio e a paz reinava em todas as ruas

Os bois eram mortos num abatedouro afastado da cidade

A carne era acondicionada em bandejas de isopor

Os cortes bem arrumados nas prateleiras dos supermercados

Depois que as vísceras do bicho foram exibidas

Era urgente encontrar o assassino e quem ousasse defendê-lo

Os açougueiros mais antigos da cidade foram convocados em reunião

Só eles eram capazes de assassinar quem mostrasse o boi sendo morto

Afinal era uma prática secreta e destinada a alguns escolhidos

Com as mãos sujas de sangue protocolaram o tratado de paz

Quando o martelo erguido batesse sobre a mesa

Começariam as execuções

 

 

 

 

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