edição 50 | abril de 2016
o leite derramado | último pedido | onde me arrancaram todos os pés

 

o um

bernadete reutman

 

 

O barro desprendeu-se das suas pernas como a placenta se solta de um recém-nascido: esta frase seria escrita séculos depois por um escritor de olhos claros e na verdade diz exatamente o que agora ocorre com ele. Move-se lentamente, tentando desvencilhar-se dos restos de argila grudados em seu corpo, enfraquecido pelos meses de imobilidade naquele ninho penumbroso e confortável feito de folhas apodrecidas pelas chuvas e pelos líquidos que seu corpo lentamente excretara no período. Lentamente passa os dedos pela nuca e sente algo metálico emergindo sob sua pele — se ele vivesse nos tempos de hoje poderia aferir que se tratava de uma espécie de conector neural. Ligado a esse conector há um cabo de cerca de dois centímetros de grossura. Quando ele o arranca de sua nuca ouve um zumbido agudo.

Tem o corpo sujo, e suas pelagens, na cabeça e no rosto, cresceram misturadas à sujidade circundante, o que certamente lhe dá uma aura animalesca digna de figurar em futuros livros sobre o paleolítico. Sorte sua não saber o que é um espelho, assustado que ficaria com sua aparência. Vagiu, soçobrante, algo como uma frase, um grito, um pedido de socorro. Não sabia o que desejava com aquele vagido, não sentia dor ou prazer, apenas desejou vagir, e vagiu como uma besta. Depois de vagir, alguns olhos voltaram-se para ele: eram seres semelhantes a ele, pode ter pensado. Assustaram-se e voltaram os olhos para aquele ser que ameaçava nascer. Os olhos se encontraram numa inapelável identificação: somos iguais, ele talvez tenha pensado.

Imaginou que tivesse proferido uma palavra, mas sentia-se confuso sobre aquilo, não se lembrava de nenhuma forma de comunicação que não fosse a dos gestos, gritos e gemidos, como quando montava fêmeas de sua espécie para se aliviar antes de se deitar sob as estrelas das quais nem sonhava saber os nomes. Resolve caminhar e, num movimento desconhecido, levanta-se, tirando seus membros superiores do solo. A impressão que teve do mundo era surpreendente, pois jamais havia visto aquele vale, aquele rio, aquela árvore e aqueles seres dali, de cima. Os outros olham-no assustados.

Ousou dar seu primeiro passo depois de longo tempo imóvel naquele útero de folhas, e o toque de seus pés no chão úmido de antiguidades vegetais imobilizou seu corpo e o fez soltar outro vagido, como os seus ancestrais provavelmente sempre o fizeram, e novamente supôs ter pronunciado algo como uma palavra, sem saber-lhe o significado. Os olhos de todos se arregalam.

Repetiu as sílabas daquilo que lhe parecia um nome por sete vezes, e sete vezes perguntou-se o que aquilo significava. Olhou para cima e viu uma imensidão azul que, quem sabe, fosse o que queria dizer seu vagido: céu. Em seguida, olhou o chão de folhas e pensou que a mesma palavra poderia significar ambas as coisas, céu e terra. Foi então que percebeu que era prazeroso dar sons às coisas, elas, parece, passavam a significar algo mais que aquelas sílabas caoticamente escolhidas, como se pudesse se apropriar de cada coisa que o circundava no ato mesmo de dar-lhes nomes.

Então vagiu, vagiu e vagiu, e o mundo virou mundo, e as coisas foram se formando como coisas, e aqueles seres passavam a ser diferentes dele, e ele tornava-se diferente de cada uma daquelas coisas e seres porque em seguida proferiu uma sílaba que julgou se assemelhar ao que ele poderia significar naquele mundo, sílaba mágica que o fez nascido, talvez a primeira narrativa de origem de sempre. "Sou!".

Virou as costas e resolveu andar e andar, nômade banido, ele mesmo, daqueles que não eram mais como ele. Não havia mais nada a fazer ali.

 

 

 

 

 

 

um bucho todos os buchos

carla diacov

 

 

pelos dias índios

já não ando

menstruo

 

menstruar pela orla

nos dias terríveis

menstruar pelas ordens

onde já não ando

menstruo

com o bucho para fora da armadura

o volume mais língua que a distância

um bucho todos os buchos

por nomenclatura norte meu

norte

o bucho

e a despeito das delicatessens

o bucho

 

é pobre pobre o homem de bem

leva a piada na ponta do sexo

o galho mais distante da língua

homens

uns como mulheres

umas feito homens de bem

 

já não ando bem das bolas

gravo beijos nas ruas no passeio

me perdoe se sujo seus brancos

mas é que menstruar acomete sem querer

eu disse

por imposição apócrifa

sim

é o bucho que sangra

eita bucho

quereria parir uma cabra de três cabeças

mas sangra

 

menstruo

e já não ando

por imposição apócrifa

menstruo

como que embaraçada de todas as onças

de tudo que é índio

de tudo que é quando e monstro

com a pança para fora da armadura

cheia de novelas com pombos

a consolação do homem de bem

a comiseração do homem de bem

perseguidos

coitados são todos os homens de bem

 

é imperativo sangrar a pomba

disse o homem de bem

também eu

que já não ando bem

mas é que mensurar acomete de dedos e quebra o quando

 

eu disse

por liquidação

já não afio a régua

menstruo

uns dias turvos como o lado de fora

umas noites de meu bem

umas com passos menos

umas com laços anêmicos

umas feito os dias incultos

menstruar para sair e voltar

nos dias terríveis

menstruar pelos canais das sombras

para fora da armadilha

o bucho

o aparato mais índio que a distância

a distância feito minha pança

respira em quandos

eita bucho

e já não anda bem

 

 

 

 

 

 

3 contos

carla luma

 

 

a tempestade

 

 

Ariel ouviu um grito através da porta do apartamento 703. Tocou a campainha. Fez-se imediato silêncio. Tocou outra vez. Insistiu. Ouviu um gemido. Chutou a porta. Uma mulher baixinha, cabelos brancos, aparentando sessenta e muitos anos, abriu a porta do 704.

— A senhora ouviu um grito?

— Grito? Não senhor.

— Quem mora aqui?

— Ninguém. Esse apartamento está para alugar. O porteiro tem as chaves.

— A senhora pode chamar ele aqui?

— Meu interfone está quebrado.

— Eu ouvi um grito. É preciso fazer algo.

— O que posso fazer?

— Chame a polícia.

— Digo o quê?

— Que ouviu um grito e gemidos vindos do 703.

— Mas eu não ouvi.

— Então diga que há um homem chutando a porta do 703 alegando ouvir gritos.

A mulher entrou e fechou a porta. Ariel já não ouvia ruído algum. Outra porta se abriu. A do 705. Outra idosa.

— Algum problema, moço?

— A senhora ouviu um grito?

— Quem gritou?

— Não faço ideia. Ouvi um grito vindo deste apartamento.

— Mas esse apartamento está vazio.

— A senhora pode pedir ao porteiro que venha aqui com a chave do apartamento?

— Um minutinho.

Entrou e fechou a porta.

Ariel tocou outra vez a campainha do 703.

A porta do 704 abriu.

— A polícia está vindo. O senhor quer entrar para esperar aqui em casa?

— Muito obrigado. É melhor que eu fique aqui até a polícia chegar. Ou o porteiro.

A porta do 705 abriu.

— O porteiro disse que não está com a chave. Alguém da imobiliária esteve ontem aqui e levou.

— Fico aqui até a polícia chegar.

A senhora do 704 chamou a do 705.

— Venha Zilda, vamos passar um café.

Entraram no 704 e fecharam a porta.

Ariel continuou acionando a campainha. Insistiu tanto que o som ficou rouco até não se tornar mais audível. Sentou-se no chão do corredor imundo, olhos pregados na porta. As senhoras saíram do 704 trazendo uma xícara de café. Estava fraco, mas saboroso.

— O senhor não quer mesmo entrar? — insistiu a do 704.

— É melhor que eu fique aqui. Espero que a polícia seja rápida.

— Isso é o mais difícil — sentenciou a do 705, cujo nome já sabemos que é Zilda.

— O moço, como se chama?

— Ariel.

— Belo nome. Quando eu era moça assisti a uma peça de teatro...

— Eu sei. A tempestade, de Shakespeare. Foi essa a inspiração do meu pai para escolher o meu nome.

— Eu sou Lúcia.

— Eu me chamo Zilda.

Ariel levantou-se, limpou a palma da mão direita na calça jeans e estendeu-a para cumprimentar as senhoras.

— O senhor ainda ouve alguma coisa?

— Não, dona Zilda.

— Será que o senhor não se enganou? O mundo hoje é tão barulhento que às vezes ouvimos coisas ou pensamos ouvir e muitas vezes é um vizinho vendo a televisão com o som muito alto.

— Eu acho que não. Eu desci do elevador e antes de notar que estava no andar errado eu ouvi um grito vindo deste apartamento. Toquei a campainha e o grito cessou. Depois ouvi um som abafado que me pareceu um gemido.

— Era voz de homem ou de mulher?

— Acho que foi de mulher, dona Lúcia, mas não tenho certeza. Pode ser de um adolescente, ou de uma criança.

— O senhor pode ter se enganado, mas é raro hoje em dia que alguém se preocupe com isso. Normalmente as pessoas estão com muita pressa, ou preferem não se envolver.

— A Lúcia tem razão. Eu mesma já fui assaltada por um rapaz no meio da rua. As pessoas que passavam poderiam ter interferido, mas apressavam o passo, como se aquilo fosse uma coisa de somenos. O senhor é um homem corajoso e de valor.

— Não faço mais que a minha obrigação. Precisamos ser solidários.

— Quer mais café?

— Não, muito obrigado, dona Zilda. O que eu queria mesmo é que a polícia chegasse de uma vez. Olhou o relógio.

— Eles devem estar ocupados espancando estudantes em alguma manifestação.

— A senhora se incomoda de telefonar outra vez para a polícia, Dona Lúcia?

— Pode deixar, agora é a minha vez de ligar.

Dona Zilda entrou. A porta ficou aberta.

— Ouça, Dona Lúcia, estou ouvindo gemidos novamente.

Dona Lúcia colou o ouvido na porta do 703.

— Eu não estou ouvindo nada, moço.

Dona Zilda voltou e informou que a polícia estava a caminho.

— Ele acha que está ouvindo gemidos, Zilda.

Dona Zilda colou também o ouvido na porta do 703.

— Não ouço nada. Aliás, parece que ouço o som de uma chaleira fervendo, mas acho que vem do seu apartamento, Lúcia.

Dona Lúcia entrou correndo. Voltou.

— Eu me esqueci que havia posto leite pra ferver. Transbordou e melou o fogão.

— A culpa foi minha, Dona Lúcia.

— Absolutamente, moço. Não vale a pena chorar pelo leite derramado. Temos coisa mais importante para lamentar.

Assustaram-se os três quando a porta do 703 abriu e um casal saiu abraçado e sorrindo.

— Você gostou do apartamento, querida?

— Não é de todo ruim, mas o prédio é muito barulhento. Melhor devolver a chave na imobiliária.

Foi quando a polícia chegou despejando tiros que resultaram em cinco mortos: o jovem casal, Ariel, Dona Lúcia e Dona Zilda.

No Boletim de Ocorrência os policiais alegaram auto de resistência seguido de morte. À noite os policiais se reuniram em um bar para comemorar mais uma bem sucedida operação de combate ao crime.

 

 

 

 

o sonho de ícaro

 

Em memória de Umberto Eco

 

 

No dia oito de outubro de 1983, Lester Bower decidiu comprar um pequeno avião que pertencia a Bob Tate. No mesmo dia, Bob apareceu morto junto a outras três pessoas, todos com tiros na cabeça. O crime aconteceu em um aeroporto privado situado em um rancho de Sherman, uma pequena cidade localizada no Condado de Graysonno, no norte do estado norte-americano do Texas.

Inicialmente, a investigação vinculou os assassinatos com o tráfico de drogas, mas o registro de ligações de Tate colocou Bower na cena do crime. Em uma estúpida tentativa de evitar que a sua esposa descobrisse que tinha comprado o avião, Bower mentiu para os investigadores que, contudo, encontraram partes da aeronave em sua garagem.

Os procuradores do caso acusaram Bower de matar Tate para roubar o pequeno avião e de assassinar as outras três pessoas que presumivelmente teriam presenciado o crime. "Queima de arquivo", no jargão policial. Apesar de não haver testemunhas e de a arma do crime nunca ter sido encontrada, Lester Bower foi condenado à morte, mas os seus advogados conseguiram adiar seis execuções em cerca de três décadas, até às 18h30 do dia 3 de Junho de 2015 quando finalmente Bower foi executado com uma injeção de pentobarbital na prisão de Huntsville.

Lester Bower morreu aos 67 anos e passou três décadas no corredor da morte. Suas últimas palavras foram: "Muito se escreveu sobre meu caso e nem tudo é verdade. Mas agora o tempo terminou e é hora de seguir adiante. Quero agradecer aos meus advogados por tudo o que fizeram. Eles me deram os últimos 25 anos da minha vida".

O preso, que sempre se declarou inocente, também teve palavras de agradecimento para a sua esposa, suas duas filhas, amigos e parentes por seu "apoio inquebrantável".

Em um recurso de última hora apresentado perante a Suprema Corte, os advogados de Bower tentaram impedir a execução com o argumento de que as três décadas de seu cliente no corredor da morte já tinham sido um castigo "cruel e incomum", proibido na Constituição americana, mas os magistrados o rejeitaram.

O anúncio da execução de Lester Bower mereceu a atenção da editoria das Escritoras Suicidas e fui enviada para o Texas no jato particular de Adelaide do Julinho. Não foi fácil obter as autorizações necessárias para a entrevista, mas consegui quando já temia voltar ao Brasil de mãos vazias. Em razão das longas férias da nossa publicação, somente nesta edição, quase um ano após o episódio, estamos publicando a entrevista exclusiva que me foi concedida pelo Sr. Bower, uma semana antes da sua execução.

— Good morning, Mr. Bower. My name is Carla Luma…

— Eu prefiro que conversemos em português, senhora Carla.

— Senhorita.

— Uma bela senhorita.

— Obrigada. Não fui informada que o senhor fala português.

— Trinta anos preso sem muito que fazer...

— Compreendo.

— Provavelmente a senhorita faz ideia, mas não compreende.

— O senhor tem razão. Eu acho que enlouqueceria.

— Em geral é o que acontece, mas desde o primeiro dia aqui eu decidi não me entregar. Faço exercícios físicos diariamente e estudo. Leio muito. Nunca perdi a esperança de que o verdadeiro assassino fosse encontrado e que eu pudesse voltar para casa. Agora, como a senhorita sabe, marcaram mais uma vez a minha execução, mas os meus advogados já conseguiram adiar outras vezes e eu tenho fé que a Suprema Corte aceite mais uma vez a minha apelação.

— Supondo que sim e que descubram o verdadeiro assassino e que o senhor seja libertado, o que faria em primeiro lugar?

— Abraçaria a minha esposa e as minhas filhas, mas o que não saí da minha cabeça é o desejo de voar.

— O sonho de Ícaro...

— Não. Perdoe-me a correção. O sonho de Ícaro não era voar, era fugir. Era a liberdade. Ele era filho de Dédalo, um dos homens mais criativos de Atenas, o arquiteto do labirinto do palácio do rei Minos, de Creta, para aprisionar o Minotauro. Entretanto, Ícaro ajudou Ariadne, a filha de Minos, a fugir com Teseu, provocando a ira do rei que ordenou que Dédalo e seu filho fossem jogados no labirinto. Dédalo sabia que sua prisão era intransponível, e que Minos controlava mar e terra, decidiu então que deveriam fugir pelo ar. Projetou asas, juntando penas de aves de vários tamanhos, amarrando-as com fios e fixando-as com cera, para que não se descolassem. Moldou-as de maneira que as asas se tornassem perfeitas como as das aves. Trabalho feito, Dédalo, agitando as asas, conseguiu voar. Equipou seu filho e o ensinou a voar. Antes do vôo final, advertiu Ícaro de que não deveria voar próximo ao Sol, para que o calor não derretesse a cera que colava as penas, nem deveria voar muito baixo, para que o mar não pudesse molhá-las. Alçaram vôo e passaram por Samos e Delos à esquerda, e por Lebinto à direita, mas Ícaro deslumbrou-se com a imagem do Sol e voou em sua direção desobedecendo ao pai. A cera derreteu, ele caiu no mar e morreu. Dédalo enterrou o filho numa ilha e chamou-a de Icaria em sua memória. Depois foi para a Sicília, onde construiu um templo a Apolo, deixando suas asas como oferenda.

— Poxa! O senhor é uma enciclopédia.

— Não seja irônica.

— Não é ironia.

— Mas há tanta coisa que eu não sei.

— Então o sonho do senhor é voar?

— Desde criança, mas veja para onde o meu sonho me trouxe.

— Mesmo assim o senhor mantém o sonho.

— As paredes prendem o corpo, mas não são capazes de aprisionar os sonhos, os pensamentos.

— Talvez isso não valha para todos. Sei que há gente que mesmo em liberdade é capaz de deixar aprisionar pensamentos e sonhos.

— A senhorita tem razão. Há coisas que a razão não consegue compreender. Lembro-me de uma música da sua terra que diz que "o coração tem razões que a própria razão desconhece". Eu gosto muito da música brasileira.

— O senhor conhece a música brasileira?

— Desde o fim dos anos sessenta. Meu primeiro contato com a música brasileira foi através do disco de Frank Sinatra com Tom Jobim. Fiquei verdadeiramente fascinado e comecei a procurar outros músicos. Descobri João Gilberto, Dorival Caymmi, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Caetano Veloso e tantos outros. Foi por causa da música que resolvi aprender português e então descobri que além das belas melodias a música brasileira tem letras que são verdadeiros poemas e isso me faz lembrar de Vinicius de Moraes.

— Supondo que a sua apelação não seja aceita, creio que o senhor terá direito a um último desejo. O senhor pode dizer me dizer qual será o seu último desejo?

— Impossível, senhorita. Em três décadas eu ainda não consegui me decidir entre as dezenas de possibilidades e creio que eles não atenderiam nenhuma delas.

— O senhor pode dizer alguns desses desejos?

— Direi um apenas. O mais recente: que eu esteja vivo para ler a próxima edição das Escritoras Suicidas. Vocês são todas maravilhosas. Os guardas estão vindo me buscar. Foi um prazer a sua visita, senhorita Carla.

— Eu agradeço muitíssimo, Sr. Bower.

Infelizmente não foi atendido o último desejo do Sr. Lester Bower.

 

 

 

 

umbu

 

 

Paula dobrou a ponta da página que estava lendo, fechou o livro, levantou-se da cadeira de balanço, colocou o livro sobre outros que estavam empilhados na pequena mesa de jacarandá. Ela tem o costume de ler alternadamente quatro, cinco livros. Às vezes mistura as histórias nos breves cochilos, e acha engraçado sonhar com o cavaleiro da triste figura invadindo a galope o Jardim das Flores Vivas justamente quando Alice descobre que o Lírio-tigre sabe falar.

Quando Julio morreu em um desastre de avião, Paula se viu viúva aos 27 anos. Era jovem, bonita e herdou propriedades e dinheiro suficiente para viver confortavelmente sem necessidade de trabalhar, mas continuou lecionando literatura latino-americana, apesar de achar que poucos alunos tinham real interesse pela matéria.

Por algum tempo, manteve relacionamentos fugazes até descobrir que se sentia mais feliz com outra mulher, Fernanda, uma morena bonita, divorciada, três anos mais moça. Não se tratava apenas de maior prazer sexual. Isso tinha um peso considerável, mas, além disso, sentia em Fernanda uma afinidade intelectual que não havia encontrado nos homens, nem mesmo em Julio. O caso durou um pouco mais de cinco anos e acabou quando Fernanda conheceu e se apaixonou por uma garota muito mais jovem. Paula entrou em depressão, deixou de dar aulas e tornou-se uma reclusa na própria casa.

De certa forma foi um retorno à sua adolescência. Antes de conhecer e de se apaixonar por Julio, Paula era triste e silenciosa, como ocorre aos jovens que preferem a leitura às brincadeiras e se submetem ao espaço de uma casa como se suficiente para preencher as suas aspirações e quiçá alcançar a paz através da moderação do raciocínio, não com a alegre desordem de uma existência total. Era uma garota triste, boa, solitária.

O tempo e as circunstâncias distanciaram Paula da família, dois irmãos e uma irmã: Gustavo, o primogênito, dois anos mais velho que ela. Pedro, dois anos mais moço e Joana, a caçula. Rompeu ruidosamente com Pedro e Gustavo quando eles se disseram horrorizados com o caso dela com Fernanda. Com Joana o afastamento não foi traumático. Eventualmente conversam ainda por telefone e no Facebook. Joana foi morar em Barcelona quando se casou. Tem quatro filhas. Faz mais de dez anos que Paula promete viajar para conhecer o cunhado e as sobrinhas. Passar um Natal em família, mas nunca se anima e a viagem vem sendo constantemente adiada.

Paula está completando hoje sessenta anos de idade. Quando se levantou da cadeira de balanço ela teve uma das estranhas sensações que a acometem de tempos em tempos. Sentiu que aconteceria algo que inevitavelmente a arrancaria do seu cotidiano, da sua zona de conforto. Invadiu-a naquele instante uma opressão física seguida de intensa tristeza. Foi à cozinha, tomou um comprimido de Fluoxetina.

Respirou fundo, atravessou a sala e subiu lentamente os degraus para o andar de cima onde fica a sua suíte com varanda para o jardim e o antigo gabinete de Julio, que é onde está instalado o computador. Nos últimos anos, Paula se tornou obcecada pela internet. Navega de seis a oito horas por dia, sobretudo em sites de relacionamento e em salas de jogos. A internet serve também para fazer todas as compras. Já não lê tanto quanto antes. Agora a internet é a sua janela para o mundo. Na vida virtual ela se sente segura, não sente medo. Exceto pela irmã, Paula só se relaciona com desconhecidos na internet. Isso permite que exiba uma personalidade que é oposta à sua. Os amigos virtuais consideram-na uma pessoa alegre e espirituosa.

Da varanda do quarto é impossível não ver que o jardim, outrora bem cuidado, se transformou em um matagal. Ela pensa que já passou da hora de chamar um jardineiro para cortar a grama, arrancar as ervas daninhas, podar das árvores os galhos que ameaçam avançar sobre os fios elétricos e o cabo telefônico, mas, mais uma vez, isso ficará para um outro dia. Começa a sentir sono, toma uma ducha com água morna e afunda na cama. Como sempre os seus sonhos misturam passagens literárias com conversas da internet. Alguém sussurra: "não sei o que a trouxe ao nosso mundo". Ela sonha que os seus pensamentos se transformam em objetos, insetos, pessoas, flores e que eles denunciam a angústia que ela busca esconder. A voz tranquiliza-a: "aqui respeitamos a intimidade das pessoas. Não se preocupe".

Paula acordou assustada com o som do telefone. É Joana. A irmã ligou para desejar um feliz aniversário, para informar os mais recentes sucessos das crianças e para cobrar a promessa da visita tantas vezes adiada. Depois que desligou, Paula foi para a internet. À meia-noite lembrou-se de que a faxineira viria na manhã seguinte. Desceu as escadas e abriu a porta com a intenção de deixar a chave sob o tapete, já que pretendia se trancar no quarto e dormir até o meio-dia. Da rua vinha, contudo, uma música como jamais ouvira. Caminhou até o portão. Sentiu a brisa noturna acarinhar a pele sob a camisola de seda. Saiu à rua. A música parecia vir de algum lugar além da praça. Atravessou a rua. No céu a lua cheia parecia sorrir. Humpty Dumpty, que havia caído do muro, se aproximou e disse: "Essa é uma ocasião incomum, por isso peço-lhe que me desculpe se eu não souber o que fazer". Paula sorriu e respondeu que ele saberia se se deixasse guiar pela intuição. "Só uma coisa eu desejo, é que você me leve ao lugar onde me arrancaram todos os pés: o de alface, o de hortelã, o pé de moleque, o pé grande, o pepino, o pé descalço, o pé de valsa, o pé de meia, o pé de pau...".

— Você é tão exatamente igual a todo mundo, Alice.

— Meu nome é Paula.

— Paula, Alice. Que diferença faz? Parece que todos só desejam ir a algum lugar do passado. Um lugar que ainda não existe. É muito melhor irmos a um lugar no futuro. Um lugar conhecido.

Paula sorriu. Deram-se as mãos e foram tomar sorvete de umbu na Ribeira.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

3 poemas

chloe arvoredo

 

 

leite

 

 

Serena que vê o mundo de baixo que vê mainha que só balança neném o dia todo na rede enquanto os menino passa nas carroça e passa boi passa vira-lata. Serena mainha e neném moram junto da feira da feira onde vende umas fruta bonita pra caramba mas que passa o dia inteiro no sol tem até carambola abacaxi essas fruta mais chique que a gente só vê na cidade Serena corre no fim do dia pra pegar as frutas que sobram nunca tem abacaxi essas coisas é só manga espada mainha se lambuza com manga espada Serena lambe até os dedo fica horas agarrada com manga espada. Neném só chora o dia todo mainha não sabe mais o que inventar não dá mais pra espremer peito peito que dói de tão seco. Lá junto da feira ninguém nunca falou a palavra amor que amor é um aquecimento celular embebido de coragem tem gente que faz amor Serena ouviu falar não faz ideia de como isso acontece sabe que mainha faz amor por isso neném nasceu mas por que será que neném chora tanto? mainha deve ter feito amor mal feito que nem os bolo que ela faz e gruda na panela então quer dizer que neném é amor amor é neném? mas por que neném chora? será que amor dói? Serena tem lombriga lombriga é minhoca na barriga mainha disse que é por isso que ela tem as pupila tão grande Serena não sabe o que é pupila muito menos amor muito menos quem é seu pai aliás mainha quem é papai? quem é papai de neném que é o pai de amor que fez amor contigo? mainha disse que não sabe não viu o rosto do homi só a cor era uma cor branca como nunca tinha visto um homi com a voz muito cheia todo peludo. Pupila é isso que fica dentro dos seus olhos mainha disse Serena não entende como é que tem alguma coisa dentro dos olhos neném só chora e tem dia que não tem feira pra comer manga espada ou farinha ou qualquer coisa que sobra Serena se esconde de mainha com a barriga doendo a cabeça doendo dói até o fiofó Serena bebe leite junto do bezerrinho com a boca mal encaixada nos peito da vaca bebe até ficar cheia a barriga num para de doer Serena leva leite numa vasilha pra neném pra ver se mainha sorri Serena nunca viu mainha sorrir. Serena se queima leite começando a ferver Serena chora os dedo tudo ardendo de vermelho mainha num sabe o que fazer com o leite todo derramado e a menina chorando que nem neném Serena quer ouvir a palavra amor mainha quem é meu pai? já disse que não sei foi um acidente Serena diz que nem se queimar com leite? mainha chora e ri ao mesmo tempo foi muito pior Serena não acredita fica toda arrepiada com mainha sorrindo as prega nas bochecha de mainha mainha ainda dá tempo conta até três vai logo guarda esse leite derramado de volta na vasilha e dá pra amor dá pra neném acaba de uma vez com esse berreiro.

 

 

 

 

*

 

 

era pra gente desenhar um mapa um do outro eu pintaria tua barriga de laranja minha depilação não tá em dia mas pode vir o último pedido era esse era pra gente desenhar um ao outro mas era pra fazer isso pelado como é que faz isso pelado agora? como é que faz isso pelado qualquer dia? eu não sei desenhar você também não é melhor fazer um samba é melhor fazer amanhã não precisa tirar a roupa pra fazer samba ou a gente faz de olho fechado finge que não me vê que eu finjo que não olho finge que tá só fazendo xixi você já reparou na cor da cortina? pintaria tua barriga de laranja porque a cortina do meu quarto é laranja e esse é o nosso canto. o último pedido era esse era pra gente lembrar um do outro até quando a gente se encontrasse e não se quisesse se encontrasse e não se molhasse e o pau não ficasse duro é impossível mas pode acontecer acredita em mim a gente precisa lembrar um do outro a gente precisa colecionar felicidade pra lembrar depois eu me sinto tão sozinha agora por que você não vem pra gente gravar uma música? preciso de algum pedaço seu além da cueca além dos livros pra decorar minha escrivaninha como é que lembra da sua voz agora? como é que lembra da sua voz daqui a cem anos dizendo ai que gostosa? isso é a única coisa que eu quero te juro não peço mais nada mas por favor vem logo que eu preciso agora e amanhã você já pode ter esquecido qual ônibus que pega pra vir

 

 

 

 

amor

 

 

a chave não foi perdida

a porta, aliás, está escancarada

não há enchente ou chuva

lá fora

eu até posso ir embora

só não quero

 

 

 

 

 

 

3 poemas

daniela delias

 

 

o muro

 

 

não posso dizer que a vi

entre a caixa e o copo

do lado de dentro

de um arranha-céu

 

e que depois de tudo

ainda pusesse

os lábios sobre o muro

movendo a língua

resignadamente

 

não posso dizer que ali

entre a boca e o leite

ela soubesse

do corpo ou do mundo

e que apesar de tudo

há todas essas coisas

que não se pode dizer

 

 

 

 

sabre

 

 

que me tome os olhos

que me arme os dentes

que me engula aos poucos

 

o amor

esse leito de pedras

à margem da tua boca

essa língua de sabre

cravada em meus ossos

 

o amor

esse pássaro

 

 

 

 

reza

 

 

a boca aberta, as mãos

os olhos, as dores que ergue

e faz pender entre os braços

 

a palavra deus devolvida

à mecânica da língua

 

a pele fina dos pés

aos desejos do fundo

 

 

 

 

 

 

5 poemas

ellena beatrice

 

 

1

 

 

— é melhor você ir embora.

 

alguma vez você já ficou com tanta raiva que seus olhos mal conseguiam ver?

me controlei. suprimi a erupção.

não quis dar uma de histérica.

 

— olha o que você tá falando…

— é sério. eu não consigo mais olhar pra você.

 

eu nem acredito que aquelas palavras saíram da minha boca. talvez ele tenha mesmo razão. talvez eu seja mesmo histérica.

 

— eu te amo. espero que um dia você consiga perceber.

 

acho que nunca senti uma dor tão grande; é isso que acontece quando uma força implacável encontra um objeto irremovível.

 

como é que ele teve coragem de me largar aqui? aposto que depois ainda vai me dizer: mas foi você quem me mandou ir!

é um otário. igualzinho a todos os outros. é melhor mesmo que tenha ido. não preciso de gente assim perto de mim…

.

.

.

 

como ele teve coragem de ir embora?

meu Deus!

a imagem dele me dando as costas e indo embora… como isso pôde me destruir desse jeito?!

será que ele não percebe? o quê eu vou fazer agora?

e ainda saiu dizendo que me amava!

 

EU VOU MATAR AQUELE FILHO DA PUTA!

 

vou matar a família dele. vou tacar fogo naqueles escrotos e fazer ele olhar. vou obrigar ele ver eles queimando vivos. é isso que eu vou fazer!

 

por que ele não entende nada?

por que ele simplesmente não me abraçou e ficou ali no chão comigo?

 

eu nunca senti isso na minha vida.

eu sinto que morri.

meu Deus, que dor é essa?

por que eu faço isso comigo?

 

 

 

 

2

 

 

eu não posso continuar com essas coisas aqui comigo,

eu não consigo mais.

simplesmente não tenho forças, entende?

eu sinto que morri

e manter todas essas lembranças espalhadas pela casa me faz sentir como se eu estivesse vivendo em um cemitério, entende?

eu sei que te devolver tudo isso não vai resolver. não vai me fazer sentir melhor.

MAS EU PRECISO FAZER ALGUMA COISA.

eu não tenho mais forças pra te guardar dentro de mim e essas coisas só me fazem lembrar do vazio

que eu sou depois que você foi embora.

eu sei que é cruel da minha parte entregar isso tudo pra você. mas é que eu não posso simplesmente jogar tudo fora, entende?

poxa, é tão bonito! é a nossa história e não parece certo jogar no lixo o que restou dela.

(a gente era tão bonito…)

por isso eu juntei tudo o que pude e coloquei nessa caixa.

por favor aceite.

você sabe que eu não tô tentando "te esquecer". isso é o que os casais ordinários fazem.

nós dois sabemos que "esquecer" é um luxo que jamais teremos nessa vida (nem nas outras).

eu teria que esquecer das flores pintando a calçada,

eu teria que esquecer a cor do céu…

eu teria que esquecer de Deus,

teria que esquecer de mim.

 

como é que duas pessoas podem entrar tão profundamente uma na outra?

 

 

 

 

3

 

 

eu não sabia como podia continuar andando. parecia errado. parecia uma aberração, uma anomalia na ordem natural das coisas.

para quê continuar andando se você não tem mais para onde ir?

não existe mais caminho. não existe mais destino. apenas o sol girando acima e abaixo de mim.

mas ainda assim eu continuo caminhando. talvez movida por uma esperança secreta de que nada disso seja real. de que caminhando, talvez eu chegue aonde eu deveria estar.

 

mas não é nada disso!

 

eu só não posso ficar no mesmo lugar.

por que eu não admito logo?

não tenho para onde ir. tudo o que sei é que não posso ficar aqui.

 

mas de que, afinal,

eu estou fugindo?

 

"não importa o quanto corra o trem. tu não te moves de ti".

 

 

 

 

4

 

 

não doeria tanto se tivesse sido qualquer outra pessoa.

mas você me conhece. você sabe de mim!

você me entregou. você deixou que eles me cortassem e me estragassem!

 

e agora?

como a gente vai viver?

você vai aguentar olhar pra minha cara todo dia sabendo que a culpa de tudo isso é da sua arrogância?

eu te conheço.

 

você sabe qual é a única saída que nos resta, não sabe?

você sabe como essa história acaba

 

 

 

 

terezin

 

 

sei que essas paredes são a última coisa que verei nesta vida.

já nem tento mais entender o sentido disso tudo. tanta brutalidade!

depois de tanto tempo olhando pro chão a gente começa a se perguntar:

será que eu ainda sou gente?

será que eles são todos iguais?

não há como exprimir.

 

grito. horror. zero. tiro. sangue. sentido.

 

como fazer alguém entender o que eu sinto, se nem eu mesma sei se ainda sou capaz de sentir o que quer que seja? como transmitir o absurdo que brota dentro de mim quando olho essas paredes?

 

grito. soco. unha. zero. sangue. tiro. dente. corpo. deus. nada. sentido. saudade.

 

eu sempre soube que era só uma questão de tempo. toda a conversa sobre trabalho conjunto, cuidado, conforto… eram a cortina mágica que disfarçava este momento.

eu sempre soube.

e por que eu não fugi?

por que eu não fugi?

 

corpo. ordem. controle. honra. soco. sangue. morte. filho. medo. corpo. controle.

 

será que eu ainda sou uma pessoa?

ele me disse que não.

 

voz. choro. botas. quina da mesa. súplica. soco. queda. tiro. silêncio.

 

 

 


©dara scully

 

 

 

4 poemas

heloisa defarge

 

 

9h01

 

 

já era hora de te buscar

mas ainda agonizo

em esperas

 

 

 

 

se

 

 

se for preciso

se for urgente

pode vir quente

te traço até o dente

 

 

 

 

lições de vida

 

 

dezesseis virgens vestais

vegetais no umbigo

eu somente contigo

 

 

 

 

identidade

 

 

a minha pele

nunca aprende

sobre o amor

 

sobre os sinais

apenas carece

de tuas digitais

 

 

 

 

 

 

esmalte

jane sprenger bodnar

 

 

nada a articular

arpoar cutícula vadia

curti-la

por partícula sangrá-la

unha nua

 

 

 

 

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