edição 4 | março de 2006
traição

 

girândola 
bruna beber

Seu pai quer que você case, embuche-se duma prole, preencha-se dum marido e leve seus problemas pra cima da casa dele, onde ele quer que você more. E aí você passa a ter problemas graves: os problemas dele e da casa dele, que é embaixo da sua, e do seu marido, que tem o trabalho dele, a família dele, as angústias dele, a prole, o colégio, as doenças, os vizinhos. Você vai começar a ficar velha, e ao envarizar-se, seus sonhos vão ficar pros seus filhos, que vão ser criados de acordo com as suas frustrações, que a essa altura já serão variadas. E vai brigar com eles do jeito que o seu pai brigava com você porque você quis ser médica e ir morar na França com a sua namorada e não quis seguir os conselhos dele que eram casar e morar em cima da casa dele e por aí. Se der certo, certo. Se você der errado pode ser que tenha que recorrer ao teto da casa dele para aos domingos ter onde almoçar. E daí pra pior até que você faça quarenta anos e não tenha mais como resolver problemas porque eles se acumulam com o tempo, e esse fode suas belas pernas, seu talento e sua vontade de ter ido morar na França com a sua namorada. Foi assim que aconteceu com a minha mãe e é assim que vai acontecer comigo.

 

Esse era o papo que o amigo mais velho de todos nós levava com a irmã de um amigo mais novo que queria ser médica e ir morar na França com a namorada. Quando você se reúne com amigos de longa data numa casa cheia de cachorros com nomes de generais alemães pra ver TV Pirata no DVD você sente que era hora de ter ficado em casa, que não tem cachorros nem DVD pirata da TV Pirata, nem discussões dessas que você não agüenta mais e com as quais não pode contribuir. O melhor era fingir que ria da TV Pirata que ainda era engraçada 15 anos depois da época que aquele pessoal tinha uma banda de metal e virava a noite enchendo os canos na varanda de quem tivesse a casa com pais em viagem jogando cartas ou mexendo com magia branca, porque naquele tempo sacrifício era beijar o muleque mais porco da roda. Eu tinha só onze anos e era café-com-leite, não apitava em nada, mas também não corria riscos altos como discutir metal com cabeludos ou achar que mexer com magia branca é bonito. Como eu compreendia muito pouco, mas notava que todos os grandes esforços daquela galera, inclusive pra diversão, voltavam-se para o inútil, o máximo que eu fazia há 15 anos era mesmo assistir a TV Pirata e sonhar que um dia eu escreveria textos como aqueles pra não ter que morar em cima da casa do meu pai.

 

Quatro pizzas de mão em mão, cerveja quente e quem arrotava alto na época que o pessoal do Asdrúbal Trouxe o Trombone fazia arruaça na tevê ainda arrota hoje e acha que o efeito é o mesmo e que é engraçado e que, realmente, é um mérito arrotar alto. Um filósofo, um engenheiro, um músico, um publicitário, um artista plástico, eu, a irmã do amigo que queria ser médica e a namorada com quem ela gostaria de ir morar na França no telefone. Todo mundo com a vida encaminhada para a lama, exceto o outro amigo, mais amigos deles do que meu, advogado. Advogado passa aperto em qual lugar do mundo? Esse aí nunca precisou morar em cima da casa do pai, mas morava em cima da casa do sogro porque afinal de contas a mulher dele, que é a primeira namorada que ele teve e embarrigou na época que eu tinha onze anos e era café-com-leite ele era cabeludo e discutia metal e achava que fazer magia branca era tão interessante quanto necessário havia-se cercado dele por todos os lados e dos problemas dele, das angústias dele, do trabalho dele e da prole que já ia aumentar de número no mês que vem, e das doenças, do colégio e dos vizinhos. O sonho dela era ter sido médica, mas contentou-se em ser técnica em Enfermagem porque o tempo come tudo e depois caminha lento, arrotando alto e podre, numa reunião de amigos. Amigos seus. Amigos dela. Justo ela, que tinha outras obrigações que não pensar no sonho de ser médica e ir morar na França com a namorada. E o estranho é que todo mundo sempre soube que ela tinha uma namorada.

 

Uma dor tremenda esse negócio de ter filhos e ver eles se encaminhando por caminhos tão errados quanto ser músico, publicitário, engenheiro, artista plástico, ser médica e ir morar na França com a namorada ou ficar na praça até altas horas enchendo os canos com o pessoal que nasceu ali, cresceu ali e aprendeu a curtir metal junto tomando Cantina da Serra até altas horas e depois partir pra varanda da casa de um desses pais desapontados que haviam partido em viagem pra esquecer a angústia que é ter trabalho, vizinhos, filhos, colégio, doenças... pra mexer com magia branca e botar medo nos café-com-leite que não opinavam em nada, mas assistiam a TV Pirata na sala pensando que um pessoal como aquele não podia mesmo dar em nada a não ser casar, ter filhos e ir morar em cima da casa dos pais, ter um marido e cercar-se dele e do trabalho dele, da família dele, do colégio, das doenças, dos vizinhos. Uma galera que semeava angústia tremenda e não conseguia fazer uma festa animada porque ouvir metal não dá futuro e discutir metal é uma coisa que putaquepariu só alguém com muita merda na cabeça e que foi criado por pais frustrados que se casaram cedo porque a mãe que era lésbica emprenhou-se do mais babaca da roda que todos sabiam que seria advogado e que moraria em cima da casa do sogro sem conseguir fazer feliz a mulher que queria ser médica e ir morar na França com a namorada e acabou sendo Técnica em Enfermagem porque ele nasceu e aí vieram os problemas, a doença, o colégio, os vizinhos.

 

 

happening
carola saavedra

Desembarquei correndo, desajeitada, abrindo caminho entre os passageiros, derrubando embrulhos e sacolas de supermercado, o cabelo caindo a toda hora sobre o rosto, nem parei para olhar se a estação era aquela mesma. Subi intermináveis degraus, atravessei um corredor estreito, cartazes anunciando roupas e marcas de cigarros, mais degraus, a respiração já ofegante quando finalmente a luz do sol, o sobressalto, as pupilas que se encolhem com a claridade inesperada, continuei correndo, segurando a longa saia para não tropeçar, os olhos aos poucos se acostumando, a rua, os prédios, tudo me parecia estranho, provavelmente a estação errada, onde estaria, pensei em conferir o endereço que Marco havia me dado, mas não houve tempo, a multidão se aproximava, estudantes, fotógrafos, acrobatas, alguns suntuosamente fantasiados, o barulho de cornetas e tambores, uma algazarra de câmeras, máquinas fotográficas, pessoas falando sem parar, eu tentava me desvencilhar de alguém que me abraçava, alguém que me puxava pela manga, eu tentava me desvencilhar, enquanto a multidão se espalhava pela rua.

Pensei em voltar para o metrô, ligar para Marco que deveria estar preocupado, por que você sempre se atrasa, meu amor? Mas na confusão, já não sabia bem onde estava, tinha andado talvez um, dois quarteirões, procurava algum letreiro, alguma placa pela qual me orientar, encontro apenas cartazes, desenhos, pinturas. Alguém tenta me dizer alguma coisa, um grupo de jovens passa carregando uma estranha escultura feita de garrafas de refrigerante, procuro palavras em meu escasso vocabulário, aquele idioma indiferente aos meus esforços, aos meus livros de gramática, chego a pronunciar, a voz insegura, que não entendo, que não sei, mas eles parecem não se importar, continuam gritando qualquer coisa, eu olho confusa, sem saber o que fazer, a vontade de sair dali o quanto antes possível, mas a multidão, a música, as pessoas se esbarrando o tempo todo, continuo dizendo que não sei, que não entendo, elas riem, tento abrir caminho à força, tropeço, caio no chão, ouço os risos ainda mais intensos, eu me levanto com esforço, alguém me ajuda, me segura pelo braço, quero agradecer, mas quando ergo a cabeça, logo à minha frente, ali está ela, pela primeira vez.

 

Ela é alta, magra, usa uma peruca lilás, tem os olhos delineados de preto num contorno tosco e exagerado. O olhar pesa como se usasse uma máscara. Ela me encara esboçando um sorriso, mas minha atenção vai para o torso: fazendo as vezes de camisa, uma caixa de papelão com aberturas para os braços, para a cabeça, na parte da frente da caixa, do torso, uma cortina preta e as palavras touch cinema, ouço risos, touch cinema, ela aponta para a cortina negra, explica gesticulando, segurando um cronômetro, quer que eu coloque as minhas mãos dentro da caixa, através da cortina, fico sem reação, de um momento ao outro uma roda de gente se forma a nossa volta, mais risos, assobios, o flash de máquinas fotográficas, ela reitera o convite, diz que tenho direito a doze segundos, eu continuo imóvel, alguém pega as minhas mãos e as coloca dentro da caixa, atrás das cortinas, atrás da cortina a mulher está nua. Penso em ir embora, fugir, a pele desconhecida, as pessoas desconhecidas em volta. Ela me olha fixamente, eu permaneço imóvel. Por algum motivo, eu permaneço imóvel. Ela liga o cronômetro, minha respiração é tensa e descompassada, a pele é suave e desliza em movimentos mínimos, imperceptíveis, pelo interior das minhas mãos. Ela sorri, eu fecho os olhos. Eu tenho direito a doze segundos.

 

 

sistema
dominique lotte

Sentada numa cadeira onde estive sentada por dezenas de vezes, esperei o promotor entrar na sala de audiência. Sete anos aguardando pela Justiça, a Justiça tarda, mas não falha, não é o que dizem?

- Talvez o juiz adie de novo - o promotor falou-me ao ouvido -, mas não desanime, hoje justiça será feita - e quando fui chamada para testemunhar, ele ainda cochichou:  - não complique, seja apenas sincera.

 

O advogado de defesa aproximou-se e falou-me com desdém:

 

- Descreva o que aconteceu naquela noite.

 

- Fui estuprada.

 

- Detalhes, por favor.

 

- Prefiro não - respondi secamente.

 

- E por que não?

 

- Porque me é penoso... Difícil de lembrar.

 

- Difícil de lembrar?! -, ele virou-se em direção ao juiz: - excelência, esta mulher tem problemas de memória. Não é uma testemunha confiável. Peço que as acusações sejam retiradas e o processo arquivado.

 

- Não! - gritei - eu quis dizer que me é penoso de...

 

- Nada mais a perguntar! - falou o advogado - estou satisfeito.

 

- Mas...

 

- Retire-se - disse o juiz.

 

Voltei à minha cadeira de novo, lábios cerrados, rezando para que as lágrimas surgissem no meu rosto, mas os sete anos de espera me secaram, não os sete anos de constantes adiamentos e sim, sete anos tentando não esquecer, reviver tudo, o rosto cruel, as mãos calejadas, o cheiro do suor...

 

No saguão, o promotor aproximou-se com ar compungido:

 

- Desculpe-me, mas você sabe como é.

 

- Como é o quê?

 

- O rapaz é de boa família, houve acordo e...

 

Agarrei minha bolsa, apertei-a junto ao peito como se quisesse esmagá-la. Como se fosse ela a culpada.

 

 

 

 

 

soneto beira mar
florbela de itamambuca

água azeite mel sal palha sem ninho

ê tambor bate terra pajelança

moça beijando o mar chita balança

gira e faz ventania pro moinho

 

pisa firme nas folha do caminho

cera de vela areia trás de andança

veio jorrando espuma a onda vem mansa

xuá champanha banha a trança vinho

 

o dia escorre igual azeite e mel

a moça ajoelha o moinho ainda gira

o fogo apaga o mar sopra no breu

 

saliva sal vacila ri e suspira

no silêncio riscado lá pro céu

em vez de se afogar ela mentira

 

 

 

 

 

2 poemas 
jane sprenger bodnar

*

 

tal ultraje

última tiragem

e ficar a vertigem

 

 

 

 

 

*

 

para a última torre

do castelo mais alto

lobo mau

leva lenço

azul de aquarela

para a vovozinha

 

rapunzel

lance seu chapéu

vermelho

 

 

 

 

 

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