edição 49 | dezembro de 2014
temas:  uma velha canção | o corpo | fim de ano

 

 

©cristina arruda

 

desmanche
carla diacov


o braço

 

 

assim

ainda que por exemplo

nunca mais pensei os braços como força trágica

cortei da lista de mercado

agora uso o queixo

mergulhar bater quebrar alcançar

tudo o queixo

e a azia

que começa pelos olhos e corre os braços

e nunca mais acaba

 

 

 

 

o dedo

 

 

convém meter o dedo num saco plástico

antes de se entregar a alguém

 

 

 

 

a perna

 

 

o mendigo encontra uma perna na rua e faz festa.

um menininho encontra uma perna na rua e corre dela.

um padre encontra uma perna na rua e reza.

uma mãe de família encontra uma perna na rua e ri fininho.

um policial encontra uma perna na rua e a esconde num amontoado de outras pernas.

um palhaço encontra uma perna na rua e chora.

o lixeiro encontra uma perna na rua e a joga no triturador de lixo.

é o lixeiro um de carne satisfeito.

 

 

 

 

o sonho

 

 

pinça-se o sonho

pinçando-se pelo nariz

como quem pinça o cérebro

então de sonho pinçado

deposita-se o sonho na mesa de trabalho

acende-se a luminária sobre o sonho

carimba-se o sonho e só agora

serve-se muletas ao sonho

que foge todo feliz

corre para a farmácia

tem dores

mas é tão feliz que corre

 

 

 

 

a boca

 

 

a boca solta-se do corpo

e rasteja o chão da noite

a língua segue à frente

limpando a poeira e

alavancando a boca

corre a casa toda

grita sentenças cabeludas

e só para quando encontra um cacho de bananas

ou uma ostra aberta a relações mais abertas

 

 

 

 

o dente e o dente lascado — o espaço

 

 

o espaço entre o dente e o dente lascado

também faz corpo

assovia-se por ali

cabe muito do amor entre o dente

e o dente lascado

logo

temos que ali

no espaço entre o dente e o dente lascado

pode um corpo e meio

visto que é do amor

fazer corpo mole e meio

o espaço entre

uma trama dessa outra realidade

o dente e o dente lascado

e fazer corpo

nitidamente

ainda que assim tão referentemente

visto que é lascável o amor

e fazer tudo diferente

o espaço entre o dente e o dente

 

 

 

 

o porco

 

 

ninguém gosta de falar sobre

mas todo corpo tem um porco nele

não preciso dizer onde fica o focinho

é um porco desiludido

mas está lá

e não preciso dizer onde fica o rabinho

ronca quando deseja

chafurda entre os meios

perceba:

chafurda os perímetros das manhãs

todo porco tem um corpo imenso

que sabe

o amor envelhece sim

perceba:

à nós nos parecemos todos

todo corpo tem um porco nele

daí essa sanha de bacon

essa textura de gente

esse perfume amoroso

essa espera rósea

essa estupidez nos olhos

 

 

 

 

os vasos

 

 

com os vasos não se brinca

logo

não quero brincar com os vasos e termino por aqui

não quero brincar com os vasos

isso nunca deu certo

 

 

 

 

as sementes

 

 

guardamos as sementes

para ocasiões muito especiais

festas pelo corpo

você sabe

eu sei

é lúcido

é flácido

e é bonito e é vida provisória

a fazer futuro

pode ser fantástico

e agora e então

você me diz que estamos

com a dívida de todos os corpos celestes

porque sim

guardamos as sementes

e tomamos algumas poucas decisões

 

 

 

 

a garganta

 

 

é profundo falar assim

na garganta cabe o que falo

tudo que rezo

não só falo de lonjuras

falo de grosserias

falo de gostos e de anti-inflamatórios

falo de um cavalo cego

falo de você

falo entre essa mecha de sombra e essa outra

eu que tanto falo e ainda nem toquei no assunto

mas falo

que no que falo

a igreja e o hospício do meu bem

 

 

 

 

os nervos

 

 

não gosto de falar sobre os nervos

mas quando chove

e também quando faz sol

tenho uma leva de nervos

que faz-me os argumentos mais frágeis

agarra-me pela goela

faz-me ficar falando quando não quero

não sei

talvez fosse mais apropriado não falar dos nervos

apesar da chuva

apesar do sol apesar do medo

talvez fosse o caso de ficar esperando

mas não tenho nervos para tanto

então falo

mas o que falo é outro assunto

não cabe

são os meus nervos

 

 

 

 

o coração

 

 

o coração é um só caminho:

você vai me ver

vai fingir que não me enxerga

vai me ver naquele corpo desabado na copa da árvore

vai jogar uma pedra

cutucar com uma vara

e quando eu cair

vai me oferecer tua melhor mão

vai dizer VEM COMIGO

EU SOU UM HOMEM DE CORAÇÃO

mas e os meus ovos, senhor?

O CORAÇÃO É UM SÓ CAMINHO

vai repetir

O CORAÇÃO É UM SÓ CAMINHO, NENÉM

temos o coração que sabe esse só caminho

somos feitos para o abismo para as copas das árvores

O CORAÇÃO É UM SÓ CAMINHO, NENÉM

O CORAÇAO É UM SOL DE VIAGEM

 

 

 

 

a pele

 

 

as estações vibram cada ano mais

agatanhando a pele

 

 

 

 

o sangue

 

 

repentinamente

em pleno cozimento do arroz

sentes que teu sangue todo sumiu

que teus órgãos todos mudaram de lugar

sentes teu braço direito renascendo pela coluna vertebral

dois dos dedos fazem caminho até tua nuca

desenham um búfalo vestido de horror

sua pelagem é azul

feche os olhos

o arroz queimou

um bafo quente e amanteigado segura o teu pescoço

teu sangue faz goteira numa outra vida tua

não vá chorar assim o fio da piada

 

 
 
3 poemas
carla luma


por toda a minha vida

 

 

hoje eu me lembrei do refrão da nossa canção

por toda a minha vida eu sei que vou te amar,

mas não me lembro da cor dos teus olhos

 

falhei tentando saber o sabor dos teus beijos

do som da tua voz

dos teus dedos atiçando os meus desejos

 

todas as recordações desapareceram

nos versos que diziam que eu vou sofrer

por toda a minha vida eu vou sofrer

 

a eterna desventura de viver

a espera de viver ao lado teu

por toda a minha vida.

 

 

 

 

 

jeito de ser

 

 

mesmo imóvel

corpo é movimento

 

é o tempo

entre o parto e o partir

 

é um jeito de ser

lugar de habitar

 

espaço de prazer

ou de sofrer

 

e mais não digo

que o meu está contigo

 

e o teu o meu jaz

jazigo

 

 

 

 

 

jingle bell

 

 

fim de ano é sempre igual

bolsa pra mamãe

sapato pro papai

para o mano par de meia

peru farofa arroz à grega

meia noite começa a ceia

 

jingle bell

jingle bell

acabou o papel

 

não faz mal

não faz mal

limpa com jornal

 

 

 

 

©cristina arruda

 

dezembro foi além do ideograma
célia musilli 


Não gosto muito do fim do ano. Parece um trem parado na última estação, um avião que não se sabe para onde decola. Vem uma melancolia, um balanço de perdas e ganhos, uma esperança teimosa de que no próximo ano as frustrações se dissolvam nas realizações adiadas.

Na verdade, o tempo segue a rota circular, não há chegada nem partida, começo ou fim. É apenas a impressão criada pelo calendário, dividido em doze meses, doze signos do zodíaco que me fazem perceber que, afinal, o ano começa mesmo em fevereiro, sem data fixa, como no calendário chinês que leva em conta sol e lua, num ciclo lunisolar, palavra feia como minha/nossa falta de esperança na antevisão dos recomeços, na ante sala dos ciclos. 

O ano novo chinês é marcado pela noite em que a lua nova acontece na data mais próxima  ao décimo quinto grau de Aquário. Difícil pensar em chinês. Talvez por isso tenham inventado os ideogramas, que põem o tempo e os ciclos em grafismos que fazem meu olhar se perder numa paisagem de ideias. Eles dizem lua, e a lua se materializa. Montanha, e a montanha se ergue. Sem grandes descrições, apenas com dois ou três traços. Penso na beleza de conter o mar em duas pinceladas, num carimbo de nanquim de dois centímetros. Nunca o mar encolheu tanto nem foi tão grande quanto na China.

A poesia do oriente se planta e se colhe em traços. Não é preciso reunir tantas palavras como faço para descrever o que significa o fim do ano. Essa melancolia que existe mas é difícil de explicar. Seria melhor representar sem escrever muito? Usar as sínteses tão profundas quanto as crônicas e os contos prolongados? A natureza nos ensinou exatamente  isso ao inventar a lágrima. Ideograma/lágrima = tristeza profunda. Com variações para alegria desvairada.

Mas vivo do outro lado do mundo, leio Clarice e reflito sobre a tristeza de dezembro. Em Clarice, isso se materializaria num acontecimento intrigante: nasceu em 10 de dezembro, morreu em 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos. Tenho para mim que morreu de tristeza a Clarice, mas antes deixou no mundo uma celebração em palavras. Cada um se expressa conforme seu hemisfério. Este é o maior inventário que se pode ter na vida. Inventário de invenção, percebam. Não aquele dos contabilistas. Porque somos escritores, não advogados. Em dezembro perfilamos palavras, não contamos dinheiro, o que torna a vida mais delicada.

Termino com o ideograma/riso = alegria de viver. E se foi mais um dezembro.

 

 

3 poemas
daniela delias 


agulhas

 

 

nos dedos de minha mãe

é que as horas desdobravam

os silêncios mais sentidos

 

não que eu quisesse cantar

porque nos dedos de minha mãe

eu também ia e vinha

 

basta agora uma canção amarrotada

ou um suave e metálico tilintar de agulhas

e eu já alimento relógios antigos

 

 

 

 

âncoras

 

 

há essa palavra aberta

 

é só uma ferida

um gesto inesperado

de navio contra rochedo

 

há o corpo e o  silêncio

 

sobre eles

um peso de âncoras

 

 

 

 

a carne

 

 

prender-me a um nome, uma ideia

deixar que arranque lentamente meus pelos

sujar as mãos, cravar os dentes

morrer de amor, morrer de amor

 

arranhar-me, condescendente

como se condenada à roseira

e olhando nos olhos de Chronos

entregar a pedra, não o filho

 

mas ainda assim

diante da carne clara da que fui

morrer um pouco

 

 

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