edição 49 | dezembro de 2014
temas:  uma velha canção | o corpo | fim de ano

 

 

1 poema, 1 miniconto
alice barreira 


recordação dos ex-alunos da cultura inglesa

turma de 1963

 

 

1.

 

THE DREAM IS OVER

your head

you just have to jump

and catch

 

 

2.

 

ilha de wright tomada pt

cabeças cortadas vg

línguas a prêmio pt

a música não toca mais pt

 

seguimos

perseguindo

submarino

amarelo

 

 

 

3.

 

beatlemaníaco depressivo

psicodelicamente

rabisco um cisco

no olho da lua

na rua cheia

tudo se move

nada me comove

a vida roda em vt

um vulto da nossa história

agarra a glória & ninguém vê

 

 

 

yeah, yeah, yeah

 

 

Como sempre não há quase nenhum movimento na rua. Os quatro rapazes chegam na esquina, com suas roupas coloridas, brincam muito uns com os outros e atravessam a rua cantando. O fotógrafo ri e vai pedir calma, pois ainda nem montou sua câmera. Mas não há tempo, um caminhão de mudanças dobra a esquina à toda e atropela os quatro.

Foi uma pena, não só pela dor das famílias, mas porque todos ali em Abbey Road dizem que eles levavam muito jeito pra música.

 

 

habitat
ana criolina 


um equívoco, sangro. o visco vermelho é larva na carcaça apodrecente do homem, diz vontade, entre minhas pernas — sol  no corpo flácido de sono. estica o pescoço e a boca cansadafaminta, bicho, lambe — da língua à pele, estala uma baba espessa. entreabertos, os lábios imensos: a gota incólume na dobra esgarçada parece amor.

 

©cristina arruda

 

contagem regressiva
ana flor 


1. lembranças arranhadas

 

 

A vitrola ainda funcionava, mesmo de agulha torta, braço capenga e caixa furada. E sobre ela o disco de vinil, que tinha sobrado para cantar a história. A história que tinha sido um presente do bisavô para o avô, que por fim deu de presente para o pai, que finalmente acabou dando para ele. O bisavô era já antigo. O avô também logo ficou velho. Até o pai com o tempo envelheceu. Contavam que morreram ouvindo aquela mesma canção. Agora ele sabia que chegaria a sua vez. Por isso, todos os dias, cantava para si uma nova canção.

 

 

 

2. poesia anatômica

 

 

A cabeça, o tronco e os membros são as partes do corpo humano, assim como o começo, o meio e o fim compõem a prosa e a poesia — pensava, enquanto esquartejava, o assassino que escrevia nas horas vagas.

 

 

 

3. réveillon

 

 

Nas festas de fim de ano, sempre cheias de pessoas, comidas e bebidas, quando todos se preparavam para brindar, ela preferia afastar-se, sozinha. Afinal, solidão nasceu para viver no singular.

 

 

3 poemas
assionara souza 


*

 

 

Reinventar o mundo

Alhear-se de esforços

O grande espaço dentro de nós

Coração-caracol

Retorna lentamente a sua morada

Vento morno em boa sombra

Nenhum assombro

A tarde cai suave

Inundando o dia

O vagar de sonhos azuis

Navega as ondas dos olhos

 

 

 

 

narciso suicida

 

 

Nada impede que ela vá

Sai de cabelo molhado, sem pentear

Os fios emaranhados

Uma escova solta na mão frouxa

A casa é a antiga casa dos pais

Ela não olha para trás

Tenta comunicar-se

Mas tudo é incomunicável

Mesmo que o mundo a vista com um novo corpo

A alma ainda será a mesma alma

Perdida naquela casa

Em busca insistente

Do rosto que se prendeu

Em alguma tarde da infância

 

 

 

 

*

 

 

Um galo preto parado em frente ao monturo

Adivinhando o que àquela hora da manhã?

Da janela do ônibus vislumbrei

Esfinge talhada em crista, bico e penas

Os mistérios...

Com que constelações estava ele encantado?

O ponto de tempo parado antes do canto

Um galo é uma coisa abstrata

Até que as esporas se pronunciem

Nesse ciscar sagrado

Na umidade pura do chão

Mudam-se os rumos dos ventos

 


©cristina arruda

 

sorrisos
bernadete reutman 


Não acredito que estou aqui, de madrugada, escrevendo para passar o tempo. A idade definitivamente faz coisas conosco que jamais suporíamos conseguir. De qualquer forma, não conseguiria deixar de escrever isso, tantos anos depois do acontecido, tanto que me retornam as lembranças, mesmo que quebradiças como a asa de porcelana daquela xícara que ganhei de Leslie e Ilva. Ou seria Ilma?

Certa noite, um homem bateu à minha porta.

Nem bem alto nem baixo, nem bem bonito ou assustador, a porta que abri me desvendou um homem em sorrisos. Boa noite senhora, teria me dito, eu poderia agora dizer que ele disse, se não desconfiasse de minha memória. Mas vá lá. Digamos que, quem sabe, na cozinha um rádio tocasse uma canção brega que me fazia dar graças pela recepção ser uma porcaria. Afinal, a estática também tem suas vantagens. Boa noite, senhora, ele me disse, e continuou, eu me chamo Sandro e me parece que somos parentes. Não me recordo completamente daquela primeira conversa, primeira de dezenas, mas acho que ele conseguiu me fazer concluir que, sim, ele era algum tipo de parente meu. Primo distante, quem sabe. Como disse, minha memória anda péssima desde que Jorge morreu, e isso lá vão alguns anos que não conto para não assanhar ainda mais meus esquecimentos esquinosos.

Acolhi Sandro naquela mesma noite sob a voz de Roberto Carlos cantando "O divã". Chovia, acho. Noites chuvosas são propícias a acontecimentos marcantes. Sandro, ao longo dos meses que ficou como meu hóspede, não me ajudava em nada com a casa, mas ficava sempre a meu lado e contava histórias de nossa família. Era divertido, pois não conhecia nenhuma delas. Além disso, depois de sua chegada o fantasma de Jorge jamais voltou a assombrar minha casa. Não sei se por medo do estranho, confiança ou cansaço. Sandro desenhava conhecimentos e encontros familiares de que eu jamais havia me dado conta ou sabido. Isso me fazia não lembrar do tanto que eu tinha me dedicado a Jorge e suas duas filhas — azougues que vieram, entraram em minha vida pela porta da frente e me fizeram sair da casa herdada por elas, e apenas por elas, após a morte de meu Jorge, pela porta da vergonha, de trás. Tanto que me dediquei. E tão pouco recebi dos dois azougues, tão logo as primeiras células de meu Jorge viraram comida de minhocas. Mudei-me para uma casa pequena, a mesma casa cuja porta uma noite distante abri, dando caras com Sandro e seus sorrisos. Trouxe algumas mudas de roupa e um rádio velho que jaz sobre a beirada da pia da cozinha.

Sandro tão perto e tão longe, distâncias traçadas por minhas lembranças poucas e expandidos esquecimentos, contava as histórias e, sabido, quando já noite alta, inventava (sim, eu sabia que inventava) um estremecimento, uma antecipação, um medo de unhas e garras assombroso, um algo que me motivava a esperar que no dia seguinte aquele regente de palavras desfizesse minhas angústias e acabasse com a suspensão de meus suspiros arrepiados de viúva impressionada. Os tios e primos viravam, fatiados pelos sorrisos de Sandro, heróis e criadores de uma família grandiosa a que eu me esquecera que pertencia. Isso me fazia mais altiva e portentosa: agora sim eu sabia que vinha de uma família de homens briosos e engraçados, alegres e impetuosos, sensíveis e altaneiros.

Altaneiros. Às vezes não sei de onde tiro adjetivos tão esquisitos.

A vizinhança, antes desconfiada e me maldizendo à sombra, mulher velha se aventurando com aquele menino de sorrisos e queixos, agora também se deixava encantar por Sandro, que também conseguia, que memória absurda a daquele homem, se lembrar de alguns parentes de quase toda a vizinhança, tateando nomes e linhagens antes desconhecidas para a mulherada do bairro. Entravam escutando a rádio-relógio; saíam ouvindo aquelas músicas melosas que vez por outra Sandro me segredava em noites mornas. De qualquer forma, minha casa vivia aberta, com mulheres entrando e saindo, invariavelmente levando lembranças, comíveis ou vestíveis, para o meu impetuoso Sandro. Ele as recebia sorriso, ouvia-as colo e abraçava-as travesseiro. Saíam leves, azuladas de felicidade, cristais de luz com patinhas, auscultando estrelas e vendo sinfonias em cada esquina, escura que fosse.

Muitos casamentos foram salvos por meu marmóreo Sandro. Tão felizes saíam as mulheres das conversas com ele — sempre de portas fechadas — que voltavam planas, rasas e lisas para casa, cantarolando flores, ao contrário das asperezas que purgavam nos dias sem ver Sandro. Eu, de mim, ficava me transbordando de orgulhos de meu primo distante tão próximo.

Ele continuava, noite após noite, contando as peripécias de parentes nossos que viviam em lugares os mais distantes, com nomes os mais difíceis de se pronunciar. Meus esquecimentos, acho que já disse, nublam minha vontade de lembrá-los, nomes e lugares. Só lembro das nuvens de éter perfumado fabricadas pelos encantamentos em que Sandro me fazia mergulhar, dos sustos, gargalhadas, suspiros e entorpecimentos.

Assim o tempo passou, e junto com o tempo, Sandro um dia foi embora. Deixou o rádio na mesma beirada de pia, apesar de eu lhe ter dito que podia levá-lo com ele. Não terminou de contar nenhuma de suas histórias, sempre repartidas em fatias doces de suspense: manteve-as assim mesmo. Deixou-as todas sem fim, feliz ou desastroso. No início de minha viuvez de Sandro, eu me lamentava, julgando-o, crendo ter sido enganada por um homem que passara meses sob meus cuidados e minhas despesas.

Mas não.

Sandro deixou-as inconclusas, as histórias, porque sua alma é boa, é um homem generoso, tanto de alma quanto de palavras. Hoje as tenho me fazendo companhia, eu e elas, as histórias gambetas, aleijadinhas de um fim, uma tão incompleta quanto as outras. Nós e ele, o rádio rouco da beirada da pia.

Não sei se já lhe disse isso, mas não acredito que estou aqui falando com você para passar o tempo e tentar não me esquecer de histórias inverossímeis que eram verdadeiras na boca de sorrisos de Sandro. A idade definitivamente faz-nos mais suportáveis aos outros do que jamais suporíamos.

 

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