edição 49 | dezembro de 2014
temas:  uma velha canção | o corpo | fim de ano

 

2 poemas
adelaide do julinho 


oh yeah

 

 

este natal

vai ser

do peru

 

 

 

noite feliz

 

 

hohohohohohoho

ah... ah... uau...

foi muito bom, nicolau

 

©cristina arruda

 

and a happy new year, john l.
adriana brunstein 


Talvez eu não conheça Paris e continue me apaixonando por canalhas, fingindo que gozo com palavrinhas sujas, no fundo eu admiro quem fode a nossa vida só porque pode, que nem cachorro que lambe o cu só porque pode, talvez na próxima tempestade eu enfie minhas pernas em uma boca de lobo, grite por socorro, exija uma amputação in vivo, com transmissão ao vivo pro plantão de natal, talvez eu aprenda a montar estilingues pra acertar cofrinhos de borracheiros que dizem que aquele pneu não tem mais jeito, tem que trocar, que por sorte ele tem um recauchutado na pechincha, talvez eu me disfarce com um bigode ridículo e um boné "I love midget porn" pra frequentar reuniões secretas da YMCA, talvez eu faça hipnose de regressão a vidas passadas, proclame a abolição de armaduras e encoste meu ouvido no peito nu de um cavaleiro atingido pelas costas, talvez eu escreva epígrafes personalizadas em jornais para quem ainda não nasceu e tem a vida como opcional, tipo direção hidráulica e ar condicionado, talvez eu abandone de vez a turma do deixa disso e parta pra porrada aleatória, até que um camburão que lute pela preservação de úteros e me jogue lá dentro em posição fetal, talvez eu erga mais um memorial em nome daqueles que um dia acharam que o mundo poderia ser outro, ou dominado por extra-terrestres entediados com seus velhos Ataris, talvez eu faça sapatinhos de crochê na sala de espera do homeopata e venda como protetores de bolas pra caras com cagaço de vasectomia, talvez eu chute o pau da barraca num acampamento de hippies que perderam totalmente a noção do tempo, assobiando a música tema da ponte do rio Kwai, talvez eu deixe pegadas pra quando eu me sentir realmente sozinha. São exatamente onze horas e cinquenta e nove minutos.

 

 

 

3 poemas
adriane garcia 


arranhões

 

 

Esses acordes acordam algo

Que não sei

Ouço ouço ouço

Leave me alone

Você aparece e some

Era pra esquecer

Era de vinil

E ninguém viu

Que eu guardei a vitrola

Ai

Dói na boca da pele

Cada palavra é agulha.

 

 

 

 

das engrenagens que nos têm dentro

 

 

Máquina de brincar de Deus

Máquina de Deus brincar

No começo Ele deixa solto

Depois chama para se vingar

Não lubrifica

Não limpa

Não troca peças

E o equipamento pneumático

Enferruja decrépito

(Tentamos contrabandos e instalações)

Deus ri.

 

 

 

 

1996

 

 

Cada ano foi uma

Mas teve uma que

Pulou da ponte

No ano em que

Não choveu

Teve uma que

Estava sozinha quando

Borbulharam alegres

Champanhas

Depois sim

Ela mesma outra

Procurou clausura

Mas ficar com a cara

Lacerada no fim do ano

Marca.

 

 
2 contos
adrienne myrtes 


Nos dissemos que o começo é sempre, sempre inesquecível e, no entanto, meu amor, que coisa incrível, esqueci nosso começo inesquecível...

 

E aí tocou aquela merda de música e eu pensei: "era só o que me faltava".

Eu havia planejado tudo tão direitinho. Escolhi aquele bar porque não tinha música ambiente. Tudo o que eu não precisava era de clima romântico. Eu já nem sabia o que era romance, ou você acha que após dez anos de casamento essa palavra sobrevive?

Eu convidei Antonio pra sair porque queria falar do Geraldo. É lógico que eu não ia falar assim, de sopetão. Eu ia começar falando da efemeridade da vida, da transitoriedade de todos os fenômenos (li isso numa revista e achei lindo), de que o mundo gira... Entendeu? Daí pra dizer que o casamento estava acabado seria um pulo. Pronto. Fim de papo. Caso encerrado.

Porque agora o que eu queria mesmo era correr para os braços do Geraldo. O abraço do Geraldo era puro calor. De degelar o sol, meus miolos, sacudir as ideias. Um ideal de paixão, Geraldo me acordava os sentidos.

Geraldo me beijava e eu salivava labaredas. Fazia arder meus ossos de maneira que, igual, em minha vida inteirinha, ninguém. Não. Teve sim. Um homem. Só um homem conseguiu. Antonio, no nosso começo. Inesquecível...

Tratei de esquecer aquele raciocínio porque eu tinha mesmo era que me concentrar no Geraldo, mas aí um idiota qualquer resolveu estacionar o carro em frente ao bar e ligar o rádio. E qual era a música que estava tocando? Antonio ficou todo emocionado. "Nossa música", falou com cara de bobo (um filho da puta esse João Bosco, viu?). E não satisfeito, ainda me mandou um: "todo dia é dia de recomeçar".

Daí quando, em seguida, ele me perguntou o porquê daquele programinha, tudo que consegui falar foi: "Feliz aniversário de casamento".

Mas feliz, feliz mesmo, fiquei eu, por Antonio não saber direito o dia em que casamos.

 

 

 

 

lição de anatomia

 

 

Ele falou assim pra mim:

— Muito prazer. Sabia que eu sempre pintei você?

E desenhou no rosto o sorriso da Gioconda. Não, o sorriso dele era um pouco mais aberto. Sabe janela com persiana? Por aí. Sabe qual a resposta que dei pra ele?

— Não.

É lógico que não. Ele era meu ídolo, eu fã, tiete. Eu me jogaria no Tietê se ele me pedisse. Eu também sorri, mas achei melhor sorrir de verdade.

Quando nos encontramos pela segunda vez, ele falou:

— Nove cabeças e meia.

— O quê?

— A proporção de seu corpo é de nove cabeças e meia.

— ...

— Você sabia que as proporções gregas eram de nove cabeças? Pras obras de arte.

— ...

— O tamanho do corpo. O tamanho do corpo das esculturas e pinturas gregas tinha que ser nove vezes o tamanho da cabeça..

— Ah.

— Você tem nove vezes e meia... Nunca pensei que você pudesse existir... Por isso inventei você.

Dizer o que depois disso? Nada.

Nadei minha língua pela boca dele e mergulhei sem oxigênio.

Fui resgatada pelas mãos do artista que souberam recriar meu corpo como ninguém.

 

©cristina arruda

 

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