edição 48 | outubro de 2014
temas:  uma andorinha só | amuleto | old times

 

 

priscila merizzio | reflexo, espectro, mão: no capô do carro | curitiba | 2012

 

tire uma leia a outra
carla diacov 


os tomates

 

 

vou ao mercadinho

estou muito triste

e isso não serve para a comoção

não me comovo e não quero comover

embora não sirva

estou muito triste

compro tomates com lágrimas

são os mais baratos

lágrimas são descontos

estou com sorte

estou com pena

sinto-me muito comovida e não quero esfaquear minha sorte

santa catarina! como pode ser

tão vermelha e suculenta a comoção?

 

 

os passos as ordens

 

 

um braço velho te puxa

pela língua

tua sorte é longa e plissada

um horror

uma palavra velha te puxa

pra dançar

ela é bonita e alta

faz cócegas na tua barriga

tua blusa é só mania

em motivos bíblicos

um braço velho te puxa

pela sorte

vocês dançam

danam-se a descascar uns beijos

em torno das lentas luas

lentas lentas luas

que sorte bonita

danada

linda

seu braço velho

linda

tua sorte é relinchar

 

 

as mortes

 

 

não há como carregar a sorte do defunto

escolha dois de seus braços

do defunto

some aos teus

teus braços avarenta vaca

já viu vaca avarenta? eu já

some os teus braços

visse?

não há como carregar a sorte do defunto

contudo santa

é de sorte que o defunto seja

é de sorte que o defunto feda

é de grandessíssima sorte que o defunto sofra

imensa contração-descontração muscular

quando das tuas flores de ereta pata

 

 

os pactos e os medos

 

 

tinha medo da névoa

fazia pacto com a névoa

vestia botas de borracha

cortava o cabelo todo

fazia cara de longa história

mas tinha tanto medo da névoa

fazia pacto com as águas

tinha um galho que descobria água crua

e dava sorte

o pacto

o galho dava medo

 

 

os chapéus

 

 

moço

grito na rua

moço

o chapéu caiu e eu pisei

com sorte

o moço sofrerá algum dano moral

ou com muita sorte

o moço sofrerá

 

 

as torneiras

 

 

hoje

caso a sorte lhe seja agradável

da terceira torneira da tarde

um rosto forçará a água

para que o teu veja a menina

force a sorte contra o peito

aperte a os lábios corra mansinho e volte

desorienta-te rápido, molenga!

 

 

as mortes

 

 

morri há cerca de trinta e nove anos

isso promove o meu rosto ao acaso de uma

sorte que talvez

possa acidentalmente

dar de topo comigo na prainha onde me enterraram

até o pescoço

até o pescoço quando criança eu via barquinhos onde só havia cimento e ferro

foi quando a sorte deu-me miopia

por sorte

eu já a esperava

por sorte a miopia

pode ser linda e franca

por sorte

há cerca de trinta e poucos  metros dali

 

 

os domadores

 

 

a sorte do leão

porque um mundo inteiro é contraído

estendido e estalado quando não

hoje foi dia de liquidação

 

 

os engenheiros e os idiomas

 

 

ergueram um muro entre duas raposas

a sorte fez-se de maneira que

uma das raposas era de pelagem vermelha

a outra também

e nenhuma delas tinha relógio

a sorte fez-se de maneira que

uma das raposas falava

a outra não

a sorte fez-se de maneira que

uma das raposas tinha bolso

a outra também

e nenhuma delas

e essa aspiraria ser a engenhoca do teu dia

dona Marina Tadeu

a cor é violenta o tempo inteiro

 

 

as orelhas

 

 

é dia de inaugurar

de novo

é reinauguração da sorte

prove com a orelha

os motivos na estampa da camisa do teu amor

NÃO VÁ ROUBAR SEUS DOCUMENTOS!

cheire

cheire como quem fareja a morte

 

 

as mentiras

 

 

pasmaceira do pássaro

a pena de um minuto aborrecido

com minhoca seca

omoplata é de usar

bico é de saber-se velho feio

horroroso em qualquer tempo

medonho

sem pena

com pena alguma

enganando os figos da manhã

um pinto uma pomba

 

esconder gravetos na calcinha para

o próximo ninho

 

 

as garoas e as rimas

 

 

ontem ainda chove

amanhã garoa e faz um pouco de frio

sorte a tua não

ter uma capa-de-chuva

na banca de jornais

a que se fez abrigo

lembra

lembra forte

uma mulher tocou teu umbigo

 

amanhã veremos o que foi isso

informe-se de muitas primeiras consoantes e adjetivos anasalados

 

 

as ruas e as versões

 

 

vá de bicicleta

coloque flores na cestinha

também umas coisas que sabes bem

tome o caminho da rua da lojinha dos violões

única certeza nessa vida

perdoa te enganar todo esse tempo

anda

coloque trevos na cestinha

 

 

3 poemas
carla luma 


ninho

 

 

De onde vem aquele pássaro solitário

Que teima em me chamar para a janela?

Ainda não é verão, sequer é primavera.

Mas ele insiste, canta, voa, volta, espera.

 

Não é prudente que se ponha em meu caminho

De onde terá vindo, de que mares de que terra?

Por que me procura, logo agora que estou fria?

Com que direito me desperta instiga e desafia?

 

Segue o teu caminho demônio anjo passarinho

Não tenho nada pra te dar sequer carinhos

Nada tens que devolva a minha alegria

 

Não. Espere. Não vá. Estou arrependida

Fique. Faço-te um ninho entre as minhas coxas

Venha. Preencha o meu vazio pequena ave roxa

 

 

 

 

água benta

 

 

Era um belo homem experiente

Olhar vivaz mãos firmes falo quente

Água benta derramada em meus lençóis

 

A beleza não tem corpo é transparente

Nutre o meu ventre noturno sorrateiro

Estrela no limiar do tempo de nós dois.

 

Dei de inventar cantigas e poemas

Pastorear estrelas cerzir recordações

Dançar imóvel mover constelações

 

Deu-me o amuleto que pus no meu cabelo

Os deuses que se nutrem nos meus seios

Um espelho que me mostra sempre jovem

 

Um dia sorriu abriu a porta desvaneceu-se.

Levou meus sonhos meus sorrisos minha voz

 

 

 

 

o tempo é filho de satanás

 

 

Aqui a noite me consente um silêncio

E a lembrança de muito tempo atrás

Quando vinhas mansamente e me abraçava

Como se não fosses abraçar-me nunca mais

 

Eu era uma menina libidinosa e linda

Eras do bairro o mais fogoso rapaz

Com uma pica de fazer inveja a Príapo

Que me rasgava quase sempre por detrás.

 

O tempo passa em minutos dias décadas

Asseguro-vos: o tempo é filho de Satanás

Nada mais há que explique ou justifique

 

Que aquele falo rígido e monumental

Seja atualmente flácido e inanimado

E a minha buceta apanágio do meu mal

 

priscila merizzio | manhã de mrs. dalloway no mercado municipal de curitiba | 2012

 

 

poema
carolina caetano 


vamos o caminho

é de casas cerradas

aquilo que venta sinaliza

um término da voz

de seus beiços palavras grudam

desgrudam

e vão

 

vamos

o caminho

venta

de seus beiços

as palavras

são casas cerradas

 

vamos

a sua vida

desgruda

seus beiços

são casas cerradas

 

vamos

o vento

desgruda

de seus beiços

a sua vida

são casas cerradas

 

vamos

desgrudam

da sua vida

as casas cerradas

são casas cerradas

 

vamos

o caminho

são casas

os seus beiços

são casas

a sua vida

as palavras

cerradas

 

vamos

a sua vida

o vento

não olha

as casas

são todas

palavras

cerradas

 

você leva na mão um amuleto nu-

lo de beiços nulos de olhos nu-

los você diz a sua filha a sua

vida o vento as águas não olha

 

são casas cerradas

 

você leva na mão

as suas águas

a sua vida

a minha filha

amuleto nulo

olhos

beiços

vozes paradas

em valises

o caminho das casas

suas mãos

cerradas

 

vamos

a sua vida

 

 

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