edição 47 | julho de 2014
temas:  gato escaldado tem medo de água fria | ilha | alçapão

 

furor uterino
adelaide do julinho 


qualquer paixão me diverte

 

fui passear no mato, caí no buraco

num átimo, dei-me conta do barato:

 

e mãos à cobra

 

 

miniconto
adriana brunstein 


Se você afrouxasse a mordaça, pelo menos um pouco. É que, merda, tá faltando ar. Nesse maldito lugar que você trata como se fosse o útero da tua mãe. Que você vai arrancando e mastigando nacos de placenta, babando tudo feito criança. Suas pequenas sujeirinhas, não é? As migalhas que você deixa para que alguém te siga. Para que alguém acerte um tiro na tua testa e eu morra junto. Antes de solidão, depois de fome. E ainda mais uma vez, tentando gritar teu nome. E essa música de embalar pelúcias que não cessa, essa via de mão dupla da tua boca que engole e cospe a tua língua. Eu não gostava de você, eu te suportei como penitência para os erros que eu ainda não havia cometido. Eu debutei sentimentos cedo demais para que pudesse me livrar deles. Eu já estava no escuro antes de você me colocar aqui quando em algum lugar do mundo não eram nem sete da manhã. E você fez da minha vida tardes, que sempre foram infinitas, até praqueles que as experimentavam em parques ensolarados com risadas de crianças. Talvez eu tenha me enganado a seu respeito, você parece entender de amor.

 

 

4 poemas
adriane garcia 


trauma

 

 

Nem sei que água me trazes

Aposto

Que molha e me dói

Como sói ser

Adiante

As águas que se me

Repetem

 

Um dia me entraram e

Antes

Talvez que nunca me

Encharques

Estou a queimar-me

De frio.

 

 

 

 

na ilha

 

 

Nas rochas ígneas

Não foi dada a ignição

Um dragão de Komodo me olha

Forte, suficiente, superior

Eu contra o vento tento

Esconder meus pelos hirtos

Meus poros com frio

Fechados

Meus olhos com sede

Abertos.

 

 

 

 

ruínas

 

 

O espaço é o ponto do agora

Mas a infância ainda apavora

O que mora

Aqui dentro

 

A vida atravessa a janela

Mas tudo o que era

Ainda fere

Aqui dentro

 

O encontro ficou pra depois

E o eterno sonho de dois

É uma nota só

Aqui dentro

 

Aqui dentro é um mar

Uma ilha

Uma dissonante melodia

Num castelo mal-assombrado.

 

 

 

 

gaiola

 

 

Fazíamos de palito de picolé

Botávamos um palitinho extra

Suspendendo a coisa

Uma linha amarrada

Farelinho de milho que

Nós mesmos quebrávamos

O milho com a pedra

Nosso coração acelerado

Num zás   zás   zás

Esperávamos o passarinho

Vindo vindo

Findo.

 

 

há luz no fim
adrienne myrtes 


A vida não vale um chiclete mascado.

Ela me disse, eu não achei nada para responder. Achei o silêncio, melhor resposta. Em silêncio, desejei ser o chiclete revolvido em sua boca.

Ela continuou ocupando o espaço que minha voz deixava livre, foi assim que ele me falou: eu adoro você. Você sabe disso, não sabe?

Eu?

Não, eu. Era eu quem devia saber, lógico. Aí eu respondi: eu também adoro você. E ele, em seguida: E eu adoro que nós nos adoremos. Percebeu? Era adoração demais, estava lógico que não cabia verdade naquele quadro. Cabia um altar se não estivéssemos em um motel.

Ela pretendeu rir, não conseguiu. O ato nervoso provocou mais lágrimas e eu quis provocar consolo. Consolação. Era a estação do metrô, sentados em um dos bancos, no meio da plataforma, conversávamos.

Na primeira vez que marcamos, sabe? Quando ele sugeriu nos encontrarmos no próprio trem, primeiro vagão, achei ousado, todo mundo marca na catraca. Foi original. Me apaixonei. Tudo tão novo, acreditei. Por que é que a gente acredita no amor? O amor não vale um chiclete mascado. Sabor canela, quer?

Peguei da mão dela o que me oferecia, mastiguei a ação que não tive.

Ele não gostava desse sabor, preferia menta.

Também eu prefiro menta, mas por ela eu mascaria chicletes canela o resto da vida.

Eu acho que sabia, mas quis acreditar em nós, juntos, atados. A gente sempre quer, não é? Ter alguém pra dividir a viagem, essa maçada toda fica mais fácil de ser suportada a dois.

De dois em dois minutos, um novo trem, possibilidades, sei lá quantos desde que me sentei ao lado dela. Tentei ainda dizer qualquer coisa, convidá-la pra sair, pedir seu telefone, a voz travou no meio do caminho, aquela gata me pareceu escaldada o suficiente.

Ela se levantou assoando o nariz no lenço de papel, agradeceu-me o apoio, o ombro colado ao pescoço. Entrou no vagão e eu segui olhando até o túnel engolir o metrô.

No caminho até a escada rolante joguei na lixeira o chiclete mascado.

 

©neuza ladeira

 

ilhas
alice barreira 


"Meus amigos foram às ilhas.

Ilhas perdem o homem".

Carlos Drummond de Andrade

em "Mundo Grande"

 

1.

 

na infância toda

ilha é uma porção

de terra com um tesouro

enterrado toda ilha um sem

parar de sonhos piratas terríveis

batalhas dantescas riquezas sem fim e

quanto nos custa sair deste dezembro eterno

largar sonhos aportar nas ilhas

sem ter mais na bagagem

a ilusão de que existem

coisas sem fim

a começar por 

nós mesmos

 

 

2.

 

mas a  ilha por todos os lados

salvação de Robinson Crusoe

maldição de todo náufrago

perdido na praia deserta

rezando a canção do exílio

 

 

3.

 

cada homem quantas ilhas

quantos mares interiores

onde nos diluviamos

as tormentas empilhadas

sem que surja lilipute ou marajó

mesopotâmia ou avalon

manhattan ou paquetá

nada nada no horizonte

desinfinito sem ponte

 

 

4.

 

amor essa ilha sem mar

onde me afogo e me salvo

e entre perdas me dano

naufrágio de velas sem pano

sem nunca poder voltar

 

 

5.

 

ilha de wright tomada PT

cabeças cortadas VG

línguas a prêmio PT

a música não toca mais PT

 

seguimos

         perseguindo

                   submarino

                            amarelo

 

 

 

ditos & escritos
ana flor 


escaldada


 

 

— Por que você não se casa de novo?
— Não cometo o mesmo erro. É falta de criatividade.

 

 

 

imaginária


 

 

Esperava que todos fossem se deitar,
e navegava em seus pensamentos,
que flutuavam numa ilha particular.

 

 

 

o alçapão


 

 

Era naquela portinhola sempre fechada, suspensa no teto, que olhava sem coragem de desvendar. Quais tipos de criaturas medonhas e misteriosas, que a escuridão, única moradora de lá, deveria criar?A minha dor

eu pinto da cor

que sinto o amor.

 

 

gastronomia mediterrânea pós-humana:
uma proposta de intervenção metodológica
bernadete reutman1  

 

 

Aquele homem está sendo devorado por canibais!

(Anônimo)

 

A afirmativa da epígrafe poderia derivar em engulhos se estivéssemos ainda sob o paradigma gastronômico do século passado. Entretanto, a asserção nos servirá de ponto de apoio para nossa investigação (Aqui reiteramos nosso reconhecimento ao incentivo dos dois órgãos de fomento à pesquisa, mencionados nos agradecimentos). Retomando a sentença que encima o presente ensaio: além de ter a sensação de estarmos iniciando a leitura de um romance de ingenuidade novecentista a figurar o embate cultural entre um "nós" e um "eles" ou ensaio multiculturalista que lembre as pós-utopias do século XXI, o choque inicial se daria em dois níveis: no escatológico e no gastronômico. A pretensão deste ensaio é revelar o imbricamento entre esses dois domínios, supostamente distantes, mesmo que a literatura sobre o assunto seja bastante incipiente e os órgãos de fomento à pesquisa última e lamentavelmente tenham apresentado comportamento avesso ao financiamento de investigações nesta linha de pesquisa, salvo exceções já mencionadas. Assim, em primeiro lugar a pele da vítima é lacerada por mãos humanas de unhas grandes e sujas, o que nos deixaria entrever primeiro que, abaixo dela, temos uma gordura amarelecida, semelhante à das galinhas, por exemplo. O consumido emite fortes gritos de dor, imediatamente abafados por furores ritualísticos dos comensais, excitados com o início do processo. Fury (2104) afirma, amparado em pesquisas anteriores de Norton (2048) e Bishop (2071) que tais gritos emprestam à carne tenrez inigualável, o que desqualificaria o ato de abafar os gritos do consumido (p. 387). Ao fundo pode-se ouvir canções populares saídas de grandes alto-falantes dispostos em círculo, bastante adequados à situação festiva. O mau gosto daquelas canções não deverá ser levado em consideração, o que revelaria certo preconceito do sujeito (MISELA, 2111, p. 47) que observa a cena: sabe-se que etnocentrismos são impermitidos nessa ciência desde o século XX, e rigorosamente punidos, durante tais festivais. Camadas vermelhas de músculos seriam devoradas em seguida, deixando expostas pontas de ossos e tendões: os membros seriam os primeiros a serem devorados por conta da notória facilidade de serem descarnados e, a esta altura, a vítima teria já desmaiado, pois, conforme Ishtra (2083), é impossível para o cérebro humano manter-se consciente diante de dores de tal monta. Nesse sentido, inclusive, há estudos (CRAWFORD, 2100) que afirmam que alguns goles de bebida alcoólica podem ser dados à vitima, de forma a evitar o endurecimento precoce da carne. Nessa altura, sob a pira de abate, são postas grandes bacias de latão que servirão para aparar o sangue escoante do corpo do consumido, matéria prima para caldos de sabor inimaginável, reduzidos lentamente em fogo lento pelas anciãs da comunidade. Alguns comensais tiram da cintura pistolas de última geração e disparam para o alto, na falta de fogos de artifício, de difícil aquisição nesses tempos sombrios. O porte de arma, como se sabe, é permitido àqueles que detêm o saber de farejar vítimas em potencial (CAMPBELL, 2060). Depois dos membros, o seguinte da lista seria o tronco: porção de difícil acesso, posto que é protegida pelas costelas, cujos ossinhos deverão ser cuidadosamente partidos, de forma a não danificar, por exemplo, a carne suculenta de um fígado ou de um pâncreas, cortes bem servidos de sangue, que nessa altura do banquete já estaria sendo coalhado lá embaixo, nas bacias. De qualquer forma, vencer a grade de ossos que são as costelas não é tarefa para qualquer um e é por isso que, diferentemente da primeira fase do banquete, em que os quatro membros foram devorados e os artelhos separados para serem triturados e misturados a cortes menos nobres (FISHER, 2113, p. 67), a tarefa de consumar esta fase fica a cargo de alguns iniciados que conhecem a arte de descostelar um corpo humano sem que, ao final do intercurso, sobrem pequenas farpas das costelas misturadas aos cortes mais nobres presentes no interior do tronco (Ibid., p. 82). As costelas flutuantes, aquelas mais próximas do baço, são cuidadosamente retiradas por esses especialistas do descostelamento, e postas para secar, pois servirão para enfeites eróticos femininos [Supõe-se, inclusive, que há entre os homens lenda que reza mais ou menos o seguinte: com quanto mais costelas for presenteada uma mulher, mais desejada ela é, pois mais presentes eróticos ganhou, ou seja, seus serviços sexuais são supostos, pagos ou medidos pela quantidade de costelas humanas com que ela encima seu dossel. Crawford (op. Cit.) sugere que tal lenda tenha origem no costume de tribos asiáticas estudadas desde dois séculos, o que validaria sua aplicação e sua consideração teórica no presente ensaio]. Terminado o descostelamento, a fúria alcança níveis estapafúrdios, pois o populacho ataca a carcaça sem piedade. Segundo Cosme (2112, p. 201), os intestinos certamente serão retirados, desenfezados e lavados para mais tarde servirem de suporte a grandes embutidos, preenchidos com alguns cortes indesejados que depois de besuntados com a gordura existente sob a pele e temperados com ervas da região, são ali introduzidos, e o embutido daí resultante é posto para cozer no bafo por duas semanas, na sombra. O problema de se retirar os intestinos antes de tudo é que, por estarem espalhados por todo o tronco humano, sua retirada provoca uma confusão de órgãos dos diabos: o estômago, muito apreciado por sua carne ao mesmo tempo macia e composta, de sabor característico e digestão difícil (SUKUYAMA, 2111), por vezes, a depender do que a vítima comeu horas antes de seu abate, provoca arrotos frutados no comensal e, por vezes, alguma indisposição; o fígado e o pâncreas, extremamente macios, como já se disse, trazem um sabor mais característico, sanguíneo e forte, à semelhança dos rins que, à sua maneira, trazem um sabor ainda amargo, penetrado pela ureia [há gastrônomos (NORTON, 2048; BISHOP, 2071) que sugerem sua fervura por seis horas para evitar tal sabor indesejado, mas daí apenas decorre que a carne fica a se despedaçar, sem a retirada completa do sabor amargo]; o coração mereceria um capítulo à parte (os mesmos Norton e Bishop já o fizeram com louvor), coisa impossível diante da ligeireza de um texto leve como este, quase crônica, que aqui pretendemos conceber, por isso podemos afirmar, amparados em nossa pesquisa anterior (REUTMAN, 2100), que sua textura lembra a de um estômago, só que acrescida da robustez de um bíceps, já devorado na primeira parte do banquete, como já se sabe, mas que, acrescida a esta característica gastronômica incomparável, igualmente apresenta ao imaginário de quem o devora, por ser o órgão identificado com os sentimentos mais sublimes do ser humano, além do apuro gastronômico citado, a sensação de se estar deglutindo algo como o caráter do devorado (Ibid., p. 52), que certamente será transplantado para o consumidor, e mesclado com o seu próprio; os pulmões são frugais, desde que não tenham sido utilizados por vivente fumante, o que lhe emprestaria extremo amargor que, posto lado a lado com a tal frugalidade da peça, tornaria sua deglutição quase um ato de reconhecimento histórico da evolução do ser humano, reconhecidamente postado na porção superior da conhecida cadeia alimentar. A cabeça (FISHER, 2113, p. 173) é separada da carcaça restante, e cozida naquele caldo sanguíneo que, como dito, já está sendo reduzido pelas anciãs desde o início da solenidade. Os ossos do crânio figuram dissolvidos exatamente três dias depois do início de sua cocção (Idem). Como já adiantado, às peças remanescentes restaria o destino de serem utilizadas em compotas, embutidos e salames de dar água na boca dos consumantes. As unhas são sumariamente descartadas (FISHER, 2113, p. 202) e dadas às crianças, que com elas constroem colares coloridos e brinquedos os mais criativos. Embora isso seja reconhecido como verdade científica desde o século XX, pesquisas datadas do século passado (NORTON, 2048; BISHOP, 2071) afirmam o seu contrário, ou seja, que as unhas compõem um corolário de valoração grastronômica, sendo comparadas ao crânio. Alguns especialistas (SUKUYAMA, 2111; COSME, 2112; FURY, 2104) divergem dessa pesquisa, mesmo validada por estatísticas de empresas tradicionalmente competentes do ramo.

 

1Professora titular da Universidade Aberta do Sudeste.

 

 

um grande talvez
ariana zahdi 


O estampido. E depois, a escuridão. Abriu os olhos devagar. Aos poucos, uma luz morna como se um palco se estendesse sobre o corredor da antiga casa e finalmente o grand finale pudesse arrancar aplausos do público comovido, em pé. Mas que público aplaudiria o final trágico de uma vida inventada, mal vivida e indesejada? Nenhum, ela pensou, porque ninguém consegue olhar para o incômodo sem um falso pesar e o desejo mesquinho de que a pessoa "melhore", não pela felicidade do outro, mas para expiar a própria culpa de assistir à decadência humana sem reagir.

 

Abriu a portinhola do chão de madeira. O barulho das tábuas rangendo a fez parar por uns instantes. Fechou os olhos e pensou em quantas vezes teve medo de quebrar o cadeado que separava a aridez da vida real dos escuros porões andares abaixo. Agora era tudo translúcido e efêmero, quase irreal. Respirou fundo e desceu a escada. Um, dois, dez degraus. Os olhos mal se acostumavam à escuridão e as narinas reagiam irritadas ao pó que cada passo seu levantava. Aos poucos, por uma fresta do chão acima de si, a luz entrava e mostrava uma caixa lá no canto. Devagar caminhou até ela e arrancou os pregos que tampavam o recipiente dos medos secretos. Deixou-os escapar, um a um, enquanto olhava para o espelho de moldura enferrujada e trincado no canto direito superior. Lembrou-se dos medos da infância: revisitou as vezes em que se sentiu culpada por imaginar os pais no caixão, antecipando a própria orfandade, os sofrimentos advindos do medo de ter medo. Ressentiu a sensação de impotência diante do incontrolável, do imponderável. Depois, pensou no próprio corpo estirado no chão, a poça de sangue manchando o assoalho, a expressão de pavor no rosto da mãe, da irmã, ou seja lá de quem fosse que a encontrasse caída, pálida, fria. Será que essas pessoas a quem caberia a tarefa de vê-la liberta do terror que é viver teriam mentalmente também a imaginado morta e sentido imediatamente a culpa por um quase desejo de antecipar o curso da vida? Será que o medo daquelas pessoas que não adivinhavam do que ela era capaz eram semelhantes aos seus?  Passou a catalogar todo tipo de angústia que havia sentido durante a vida, e mentalmente contou todas elas, como faz a mãe zelosa que sai para passear com os filhotes e teme que eles se percam. Deu aos próprios fantasmas as mãos e dançou uma ciranda sombria até que, um a um, eles se dissolvessem no ar.

 

Na outra ponta do porão, uma outra portinhola mal iluminada já se anunciava entreaberta. Curiosa, não se conteve e já adiantava mentalmente seus passos: abrir o buraco, descer as escadas, acostumar os olhos. Antes, porém, ao se esforçar para levantar a tampa do alçapão, enfiou uma farpa da porta debaixo da unha. A lasca de madeira fez sangrar. Menos que o tiro, mas com dor mais aguda. Fina, como era fina a melancolia que devagarinho a consumia, levando aos poucos a sanidade. Torturante, como aqueles anos todos de angústia, loucura e desamor. Não conseguia, porém, ver a profundidade do intruso fiapo de madeira que arranjara espaço entre sua carne e aquela unha de esmalte descascado e um pouco encardido. Respirou fundo, cerrou os punhos e desceu. Olhos fechados, para não ver melhor. Não por medo, mas para brincar com a própria morbidez de se saber morta e tentar intuir uma nesga de vida onde nada mais pulsava.

 

No canto do segundo porão, um armário antigo, com a madeira desgastada pelos raspões de alguma mudança a que foi submetido. Devem ter sido muitas, ela pensou, ao lembrar de tê-lo visto na infância na casa dos avós, depois na casa de uma tia, por fim na própria casa, como herança de uma história que não era diretamente a sua, mas que passou a lhe pertencer depois que os parentes foram morrendo. A porta, que sempre teve problemas para permanecer fechada, estava agora calçada com um pedaço de papelão, cortado de uma caixa velha de sapatos. Antes  disso, ela lembrava, havia um prego na parte superior do armário e um pedaço de barbante preso na porta. A tranca improvisada dava a real noção da maneira que via a própria vida: imprecisa, desajeitada, absurdamente transitória.

 

Dentro do armário, um amontoado de caixas sobrepostas, centenas de fotos de rostos estranhos e antigos, nunca antes vistos, mas que certamente foram, assim como o velho armário, histórias que vieram antes dela para que neste momento estivesse ali, sendo confrontada por um passado desconhecido de centenas de anos e a própria vida. Sentia-se ridícula quando o assunto era a sua vida, considerada um presente indesejado. E agora, quando deveria passar um filme diante de seus olhos, ela pensava nesses rostos todos que vieram antes dela e que ela estranhava, mas pelos quais ela chegou ao mundo com cabeça, tronco, membros e um certo desajustamento em relação ao mundo. Pensava naquele armário cheio de carunchos e sentia que era a metáfora perfeita para a própria vida: ela era o armário onde os carunchos de milhares de ancestrais culminaram e, agora, a desfaziam em farelos que poderiam ser varridos para debaixo do tapete ou dispensados por alguma fresta do chão, se a mão que a varresse tivesse preguiça demais para se desfazer dela. Via em cada foto rostos já tão mortos quanto o dela  e que lhe possibilitaram nascer para existir em desalinho e receber como herança um armário carregado de fotos. Um enorme armário corroído pelo tempo e cheio de felizes e infelizes existências. O espólio incluía, ainda, a genética ruim e depressiva, o desencanto de viver e um prêmio de consolo: a coragem de apertar o gatilho contra o próprio peito e sentir alívio em vez de dor. Relativizou, finalmente, que o incômodo de uma farpa sob a unha amarelada é mais insuportável que a dor da morte. Que para o emaranhado de pensamentos inconclusos, a falta de rumo e a melancolia de se saber ela mesma não havia remédio que curasse.

 

Perdida entre delírios e lapsos de realidade, demorou a perceber uma terceira portinha, para outro subsolo. Uma portinha minúscula e provavelmente poucas vezes aberta. Repetiu o ritual, dessa vez lançando-se lá de cima, porque entre a portinhola e o chão não havia degraus. Caiu direto sobre a terra. Não havia assoalho, não havia mais nada. Tateou ajoelhada até encontrar um lugar por onde vazava um facho de luz e de onde se via um amontoado de terra marcado por um pedaço de madeira, como se ali estivesse enterrado um tesouro. Maravilhada e temerosa pela descoberta, tentou imaginar o que poderia estar tão bem escondido, que fosse necessário tantos alçapões para atravessar. Que tipo de mistério alguém esconderia ali? Um corpo desovado às pressas depois de um assassinato passional? Um objeto valioso demais que precisa ser protegido? Um segredo aterrorizante, incompreensível para quem está na superfície? Ou um pedaço de músculo sublimado a tal ponto que nada mais o contaminaria?  Cavou com as mãos, com certa dificuldade, até ficar exausta. Quase a ponto de desistir, tocou algo macio e morno. Demorou para compreender o que estava acontecendo naquele mundo paralelo onde perambulava, nem tão viva que pudesse se manifestar, nem tão morta que pudesse inexistir. Arrancou da terra, devagar,  o simulacro perfeito do próprio coração e, com ele, todo o assombro que era a vida. Tocou o peito e sentiu o buraco aberto pela arma de fogo. Segurou o coração entre as mãos pequenas e pensou no próprio corpo caído no corredor da casa de madeira. Acolheu em si todas as imagens mentais de seus monstros, das fotografias amarelas de seus antepassados, misturou aos espantos guardados naquele coração falso que nem bem batia, nem bem se desintegrava e tentou encaixar tudo naquela ferida aberta pela estranheza que era existir.

 

Depois, desapareceu, etérea, deixando no mundo real um grande ponto de interrogação. Morreu de esperança. A de que estar morta fosse menos inoportuno que suportar a vida.

 
 

 

incumbência
carla diacov 


antes do alçapão

 

 

se eu fosse menos maleável ao instante

um pouco mais insuportável

poucas são as vezes em que eu me dobro a não estar aqui

é de um jardim a vida que eu não faço

são pedras ricas em sapos

e trevos que encaram o sol

se eu fosse menos maleável

estive pensando em deus

estive aqui

pensando em mim

extraindo carpas

puxava os rabinhos do fundo da goela

todas vermelhas e vivas

uma

apenas uma

deixou-me pela orelha

azul

mais azul que giz-de-cera azul

santo pai do céu

não é a loucura um peixe ornamental?

se eu fosse menos qualquer coisa ao instante.

 

 

 

dentro do alçapão

 

 

desde tanto

inventar um diabo para ter o ambiente

sob outras intenções

(minha cabeça é pior que o diabo)

outros experimentos falharam

chorar e seguir com a língua o caminho da lágrima

ralar o cotovelo e seguir com a língua o caminho da gota de sangue

ejacular e seguir com a língua

seguir o fio de sol

feito os trevos do antigamente no jardim

aqui

desde tanto

uma rua vazia e japonesa

minha cabeça é pior que o diabo

pior que o diabo que enfio entre as tábuas

as tábuas

desde que tanto cheguei aqui

é o diabo

melhor que seja

digo

a cor que isso vai tomando

sei que estou viva porque me vejo nos olhos do diabo

sei que respiro

porque o tenho tomando meu hálito

sei nada dos meus medos

porque sua cabeça linda, vermelha, tríplice

guarda noturno sonâmbulo diário crepuscular

ninguém meu amor

ninguém como nós conhece o sol*

meu diabo

às barbas do meu diabo

suas orelhas amplas

suas marcas nas minhas paredes

nasci para ser umidade cor de concupiscência

pensei

me visto de alçapão e choro

mas estou pelada

mas estou calva

estou feia e fútil

basta

basta quando que sou o alçapão

sou possuída e inquilina

céus

eu sou o alçapão

espia:

o diabo é minha carne pênsil.

 

 

 

no entremeio

 

 

aqui era só diversão

das cerradas árvores que a mim

me seguiam

desde o jardim

onde tanto tropecei aspirando nuvens

uma acanhadíssima folha seca grudada nos meus cabelos

caminhávamos ao alçapão

lembrávamos as carpas

marchávamos em nome das carpas

apesar de vivas

meteram as carpas todas

no foço limpo

outra vez

eram carpas alimentadas

eram imagens mortiças fora de mim.

 

 

 

fora do alçapão

 

 

o jardim dos meus tropeços

uma pedra de estimação

a loucura me afogando pela boca e pelos punhos

a ideia pervertida pela paixão: o alçapão

pregada nos olhos do pardal

a ideia

dou toda a minha saliva para ser o alçapão

entrego todas minhas manias

espia:

o caminho já é ponta

minha sombra já é ponta

o pagamento já é ponta

agora é ponta a escuridão.

 

 

 

de volta ao alçapão

 

 

espia:

aqui é minha capela

aqui eu rezo e sou da religião onde o pardal não

aqui o rosário

também entre as tábuas

nasci para ser umidade

e cá estou

aqui é meu cavalo

o diabo que fiz

ainda aqui

o meu diabo

sou e sou o alçapão

umidade em desesperos implicantes

a folha nos meus cabelos

aqui de dentro

a folha nos meus cabelos

e eu

que sorria

porque

agora sim

eu era ensolarada

espiada

escuridão precisa e desempenhada.

 

 

*Com a participação de Sebastião Alba.

 

 

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