edição 47 | julho de 2014
temas:  gato escaldado tem medo de água fria | ilha | alçapão

 

o bigode de joãozinho
carla luma 


Eram nove horas, hora que para mim ainda é madrugada, quando o telefone tocou e me acordou.

"Seu projeto foi aprovado, Carla, venha ao meu escritório para discutir detalhes do contrato".

Hoje não dá, tenho compromissos inadiáveis, menti e marquei para as três da tarde do dia seguinte.

O meu primeiro livro, As mãos me falam, os falos me calam, vendeu mais que água mineral em Machu Picchu, mas não é fruto de um projeto, é exclusivamente uma colagem de episódios da minha vida, com uma boa dose de exagero, cujo efeito é criar no leitor a ilusão de que é tudo ficção.

Agora é outro papo. Eu estou muito bem de grana, o livro continua vendendo horrores na China, principalmente depois que o Diário do Povo, principal jornal chinês, rotulou-o como "o mais cabal exemplo da dissolução moral do mundo ocidental". Além disso, continua em franca expansão a franquia de lojas Sex Shop, que montei em sociedade com um conhecido empresário carioca, cujo nome é prudente omitir, já que por meio da sua empresa holding ele deu um tombo monumental na bolsa de valores. Não é por dinheiro que pretendo abandonar provisoriamente o ócio e as badalações do jetset e enclausurar-me no pequeno apartamento que comprei em Montmartre, Paris, onde creio que terei mais sossego para enfrentar o desafio que me impus de escrever um romance, que colocará a literatura brasileira em um patamar jamais atingido. Não apenas para satisfação do meu ego, mas também para alimentar um pouco mais o mau humor da crítica brasileira, que padece de inveja crônica e não dá o valor devido aos autores nacionais que se tornam bestsellers. Eu e o Paulo Coelho somos os exemplos mais destacados.

Já faz algum tempo que venho adiando, porque descartava sumariamente todos os temas que me ocorriam ou que me eram sugeridos, mas eu tive um sonho, sonhei que estava em uma ilha. Foi um sonho muito confuso, cujos detalhes rapidamente desapareceram da minha memória, mas no dia seguinte sonhei com o bigode de João Ubaldo Ribeiro. Dois dias depois, desembarquei do meu Beechcraft Hawker 800 no Aeroporto de Salvador, que antigamente se chamava Dois de Julho, onde peguei um helicóptero para Itaparica. Obviamente eu havia me assegurado de que JU estava refugiado na casa que era do seu avô materno, a casa onde nasceu e à qual retorna sempre que precisa respirar ares mais civilizados que o do Leblon. Não consegui combinar um encontro, mas tinha certeza de que ele apareceria puto da vida para tomar satisfação do salafrário que descia de helicóptero no meio da rua, bem na porta da sua casa. 

Ele sempre foi muito gentil comigo e dessa vez não foi diferente, apesar do helicóptero, da surpresa e do mundo de gente que acorreu para ver quem descia do céu para reverenciar o grande escritor, orgulho e patrimônio da Ilha Heróica, epíteto que Itaparica ganhou pela atuação desassombrada da sua população nos episódios sangrentos acontecidos em 7 de janeiro de 1823. Feitos que contribuíram para a Independência da Bahia, em 2 de julho do mesmo ano. O Dois de Julho que dava nome ao aeroporto que agora tem o nome de um político já falecido.

Política à parte, foi na conversa com JU, que na intimidade eu chamo de Joãozinho, que me ocorreu o tema para o meu projeto. Falávamos de literatura. Eu citei Gregório de Mattos e ele falou de um autor popular, um tal de Cuíca de Santo Amaro, figura controversa e irreverente que escrevia trovas sobre escândalos sexuais e políticos. Mais que isso, anunciava antecipadamente o tema do seu próximo libelo esperando que a "vítima" da sua pena o procurasse para comprar a edição inteira ou o seu silêncio. Quando isso não acontecia, ele saía pelas ruas mercando os versos que escandalizavam a sociedade soteropolitana. Entre 1930 e 1963, Cuíca de Santo Amaro escreveu cerca de mil títulos de livros de histórias, nome que dava aos folhetos, que só depois se denominou como literatura de cordel.

Dado o interesse que demonstrei pelo assunto, Joãozinho recomendou-me procurar a Profª. Edilene Matos, da Universidade Federal da Bahia. "Ninguém sabe tanto quanto ela sobre literatura de cordel e sobre Cuíca de Santo Amaro", ele me assegurou. Eu não sei se por brincadeira ou provocação ela me sugeriu escrever um cordel e me desafiou com o tema: "A mulher que largou o marido para casar com o Facebook". Estou animadíssima. A editora garantiu-me um adiantamento de um milhão de dólares. Sigo amanhã para Paris, que psicologicamente é como se fosse a minha ilha.

 

 

poema
carolina caetano 


eu não sei quantas vezes passaram

por nós aquele cão aquele avião aquele filme

desde que nos dissemos sim

você atendeu o telefone e se lembrou dum sonho mas a ligação

te recolheu a memória à memória e o seu medo de atender agora é assim

ele toca eu antecipo é alguém que morre é uma oferta são boas

e sempre torcemos por um engano tem uma maneira engraçada do engano não atrapalhar o sonho

eu me lembro da primeira vez que viemos morar aqui

já se passaram tantas vezes sempre nos mudamos praqui

coisas que nunca aconteceram precisa levar a mão à testa pra lembrar

antes de sair da cama e se tocar o telefone seja engano

eu me lembro do que era sentir quando começaram a escrever aquela narrativa

nas pedras do campeche uma ilha parece estar sempre ligada

à outra: morávamos a norte

você o deserto eu o cerrado era o tempo

em que a única palavra em todas as línguas era sertão

a palavra pedra é fatalmente moderna a palavra sertão deu nome ao primeiro homem

eu me lembro de como ele era uma mulher e pronunciava articuladamente sErrtAum

você dizia mÊibi pronuncie articuladamente a palavra mÊibi parece o nome de uma mulher

ela dizia sErrtAum eu me lembro

de como a guerra era iminente de como ninguém mais se entendia depois das palavras

eu nunca mais consegui ler o poema nas pedras da Capivara uma serra

parece estar sempre levando a outra e nós ouvimos alguém dizer vai haver um bolão para a guerra

nessa época poucas palavras existiam além de bolão para a guerra e a palavra sertão já tinha

perdido bastante seu valor

é levar a mão à testa eu me lembro antes de sair da cama

eu tenho uma relação bíblica com a palavra vez

eu me lembro muitas vezes eu sei muitas vezes nós moramos muitas vezes aqui

o cão o avião o filme passam continuamente em se deixando as vezes encontrarem-se

a única palavra que não se pode continuar é ilha

que portanto veio depois da guerra daquela guerra eu não lembro como ficou o bolão

a palavra sertão é a mais extensa é desde aquela mulher dizendo até hoje não terminou de ser dita

aquela mulher morreu dizendo ilha

 

 

 

2 contos
célia musilli 


alçapão

 

 

Você caiu dentro de mim. Sei que usei direitinho a armadilha. Cheguei  blasé, com cara de quem não quer compromisso. Nada como a falta de compromisso para perturbar um homem. Geralmente, acham que as mulheres são loucas por alianças. Por isso, meti anéis nos dedinhos dos pés para configurar meu espírito livre, sem futuro, de quem só pensa no ato. Te alisei como uma serpente colorida. Te atraí com joias falsas, lenços de seda na cintura, sem calcinha. Ofereci iluminação intimista, batom rosa-choque, fitilhos nas pernas, perfumes doces, umidade entre as coxas mal você havia entrado. Sou amante programadora de desejos, protagonizo meu tesão e assim fui te deixando louco.

Hoje te ofereço sexo sem cobranças, não quero ligações no dia seguinte, nem promessas. Minha armadilha é um plano de vida mal elaborado, sem apólice de seguros. Quando vi, meu alçapão se abriu e você caiu gritando: "quero ir mais fundo, mais fundo". Pois foi sozinho, por sua  conta e risco. Agora te mantenho na cama, agarrado como um passarinho ao meu corpo, alimentado por ilusões simbólicas, beijinhos na boca, faço pose de amante de uma única noite. O melhor alçapão é o que se abre mantendo a dúvida. Uma vez lá dentro nenhum homem sabe como voltar.

 

 

 

pupila escaldada

 

 

Ah! meu olho escaldado. Só me arrisco vê-lo de longe para doer menos. Qualquer contato, um cumprimento, a possibilidade de conversa me fazem tremer da cabeça aos pés. Covarde. Experimento olhares de esgueio, de rabo de olho, podem achar que sou vesga, nem ligo. Vejo-o refletido em vitrines com livros empilhados do outro lado. Lembro-me que te dei as obras completas de Elizabeth Bishop com a pulsação do poema "Uma arte" partindo como flecha na minha direção toda vez que leio: "a arte de perder não é nenhum mistério".

Mas perco sempre a razão, toda vez que te vejo em outra companhia, às vezes  uma mulher sem graça, que acho aquém de mim. Queima meus pelos, os pubianos, saber que você se aventura na madrugada, nos fins de semana,  fazendo fotos de amantes ainda que tudo seja uma brincadeira, ficção para tornar a vida mais interessante.

Alguns sentimentos queimam como água quente. Borbulham num caldeirão de necessidades não satisfeitas, vazios que parecem a condensação de um desejo, passagem do estado gasoso ao líquido, lágrimas gotejando como um vapor permanente no teto. Neste inverno, conjugo o verbo chover em vez de chorar toda vez que me lembro de você. Fico dizendo: "Eu chovo, tu choves, ele chove". Evito sintaxes  angustiadas.

Mas toda vez que te vejo, mesmo de longe, alguma coisa queima. Chuva ácida de sentimentos confusos. Dor que desperta no sótão do qual mantenho a porta fechada. Atravesso ruas, dou pulos para mantê-lo à distância. Evito  proximidade,  contatos, lembranças, visitas. A gata Bishop é igual a mim, nunca mais deixou caças no tapete desde que entrou correndo com um passarinho e eu, assustada, derrubei o chá. Agora, Bishop nem pode ver o bule. Por isso, também prefiro furar os olhos a te encarar, incêndios começam com faíscas. Seus olhos nos meus nunca mais. Pupila escaldada tem medo de uma piscada fria.

 

 

3 poemas
daniela delias 


quanto

 

 

não fosse o ruído

dos meus passos

em direção ao medo

 

não fosse o sibilo

das suas asas

na contramão do vento

 

ouviríamos de pronto

o arder e o canto

daquelas palavras

belas e suicidas

 

 

 

 

a ilha

 

 

quando disse teu nome

minha boca soou tão antiga

 

repara, repara em minha boca

quando te guardo, quando te digo:

 

esta cidade, meu bem,

é quase uma ilha

 

 

 

 

alçapão

 

 

o homem desce agora

à casa de um deus torto

 

seus ossos quebram os átomos

seus pés lambem o escuro

 

lá vai o homem

a caminho da casa

do deus subterrâneo

   

— asa, ele diz, é armadilha.

 

 


 

3 poemas
heloisa defarge
 


cozido em banho-maria

 

 

nunca mais, eu dizia

nunca mais

mas ele pedia com jeitinho

ele sabia pedir

com mentiras suaves

e eu me repetia

nunca mais, nunca mais

e era todo dia

 

 

 

 

acidente geográfico

 

 

uma ilha é só uma ilha

um acidente geográfico

como este amor: istmo

fio tênue de terra e mar

 

 

 

 

armadilha

 

 

trago entre as pernas

este doce alçapão

aberto aos passarinhos

mas gosto mesmo

é de vê-los pousar

felizes em minha língua
 

 

 

náufraga
isadora galvão 


de ilha em ilha

projeto meu país

das maravilhas

tal Alice insandecida

(cortem-lhe a cabeça,

mas jamais

a imaginação

nem o clitóris)

 

na minha ilha

sou ninfa, sereia, Safo

entre um desabafo

e um pileque

um Sexta-feira

a meu serviço

 

náufraga

e sôfrega

na minha ilha

(lá mando eu

qual Odisseu

na sua história

entre uma dose

de rum ou gim

ai de mim!

até que eu goze

em som e glória...)

 

 

 

poema
jane sprenger bodnar 


em tempo

personagem eleito

neste esparso domingo

 

vou pôr teus pés

pra fora da ilha

enraizar-te comigo

 
 

 

poema
larissa marques 


querido missionário

 

deixai essa cercania voraz

não permita que eu te engane

meu olhar triste e falsamente vencido

só esconde a tez canibal

 

as pupilas bem trazem o belo

bem trazem o zelo

e arfam-se do autêntico

perfeitamente aprazível

venha me visitar...

 

oh, menina da ilha

não tome palavras de Eliot

para me agradar

nessa batalha fascinante

que caminha em nosso

descansar prazeroso...

 

 

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