edição 46 | março de
2014 2 poemas melissa campos súplica
Não vi o
amanhecer
pra saber,
com certeza,
que o sol
nascera.
Cortinas
fechadas,
lustres
ligados.
Na tomada,
solidão:
corrente
rompida
daquele arco
voltaico.
O teu desejo
arcaico
de não voltar
atrás,
não
satisfazer idades,
adorar
Satanás
te chamou
pr'outra roda
à
frente.
Sem
frete,
não chego
lá.
É melhor
esquecer
o que
dói
que viver o
presente.
Ingrata que
sou,
devolvo teus
discos
riscados.
Me jogo
pr'além
desse tempo
banal.
Volto às
cavernas,
à
pólis.
Cartago
incinerada,
Babilônia das
putas.
As ruas
servem de palco
pr'esse drama
barato
que enceno de
graça.
Com a sua
farsa,
fico no
estrado.
O dia
perpassa
numa dor
inventada.
A tua vida te
atura,
exibida.
Atua os
cantos,
finge
repasso.
Eu abraço os
prantos.
Tantos os
contos
que inventei
pr'amanhã;
faço de
conta
que sou seu
talismã.
Você
aparece
e me toma o
desespero.
Pecado sou
eu,
seu sotaque
pedante,
nosso temor
restante.
Suplicante,
volta
você.
Por
favor,
me
implore.
Depois
imploda.
Não sou toda
sua.
desejo
banal
Não é à
toa
que as
palavras
não
rimam
que o
tempo
não
passa.
O
campasso
não
encaixa:
É poesia
fraca!
Sangue
ralo,
as noites de
quarta.
Meu nome
lateja
teu
peito,
enfeita um
terço.
O
sonho
arrepende a
foda.
O
verso
não rima
desejo.
O
perto
não mata o
que há.
Se selasse ao
pacto
não
sobrevivia ao feito.
Sem
falar
na falta de
tento:
um invento
seu,
pra não
encarar o fim.
Se tivesse me
chamado
pr'aquela
cerveja,
pr'aquela
mesa de ber,
o
arrependimento
era
outro.
Escreve suas
penas
e espera
exorcizar
o que já não
há.
3 poemas nanda prietto kahlo
A
nitroglicerina é um bálsamo.
Um trem de
ferro que
Me entra pela
pélvis.
Mas me
distraio das fraturas
Tendo
orgasmos.
Pintando
frascos de fetos alados
De anjos de
asas mutiladas.
Fazendo a
autopsia
De minha
natureza viva.
Diego me
queria
Mulherzinha.
Calcinha
mínima.
Echarpe.
Pulseiras e
colares.
Cinta-liga.
Mas calcei o
meu strap-on
E me
fui
À caça de seu
sono.
Ao acordar,
ele:
"Sonhei que
Deus me
Queria
Parir
menina".
Então o vento
que sou
Capaz de
exalar
Ondula,
belamente, os meus cabelos.
Sou Eva,
Lilith e todas
As diabas
vira-latas.
Vingativa dos
adultérios,
Corto meus
cabelos.
Sementes de
serpentes.
Ordeno-lhes:
"Entrem
Pela uretra
de Rivera".
ritual
A minha nudez
é isso
Que você está
vendo.
Meus cabelos
exalam
Gafanhotos e
outras pragas.
Para a missa,
entro nua
De bíblia em
punho.
Enquanto
"eles" bebem,
Em torno do
altar do holocausto,
As vísceras
do crucificado mais recente,
Recolho, um a
um, os sêmens
Dos cordeiros
primogênitos.
Na rua, minha
nudez é
O que você
está vendo:
Câncer no
coração.
Vermes nos
olhos.
Lepra na
genitália.
A nudez é o
que
Você
vê?
Eu,
nua
Sob a
burka.
Democra$ia!
Simulacros de
intestinos que bebemos
Exercitando
Nossa ilusão
de livre-arbítrio.
masoquista
pusilânime
Nunca senti
saudade.
Exceto
Quando o céu
e o chão fugiram
Quando
você
Se foi
cantando,
Se
metamorfoseando
Em pássaro
voando
Para longe,
para sempre,
Para fora do
alcance
Das minhas
unhas,
das minhas
pedras,
2 poemas nina rizzi crepúsculo
sobre a iracema
sobre meus
olhos, umidez.
sobre meu
sexo, uma flor.
acredite, nos
labirintos, umidez e uma flor.
[ancestral.
negra, negra.
saudade, um
rastro pra joana corona
ela foi para
o mistério
de uma costa
em areia e flor
— delicadeza
tanta
ao infinito
que não podemos pensar
viva la vida patty flag Amélia não
abre as cortinas de propósito: eu grito, peço pelo amor do Deus que,
desconfio, não acredito, mas ela vai embora assobiando e com um riso na
cara que não vejo, mas adivinho.
Son sandías
maduras, sólo. Nada más. No es más que una naturaleza
muerta.
Una
naturaleza muerta.
Una
muerta.
De dentro da
escuridão, de dentro das cortinas fechadas — um raio de luz da orla por
uma fresta, talvez — um pop up improvável de Viva La Vida explode na tela
de meu computador.
Guilherme
gostava de naturezas mortas, Guilherme tentava me educar em artes, mas eu
só queria orgasmos. Às vezes até me interessava por um nu ou outro, mas
naturezas mortas achava um porre. E Guilherme sabia. E me torturava
admirando detalhes demoradamente só pra me ouvir suspirar, impaciente.
Então, ria e me arrastava pro banheiro do museu, pra seu carro, a um
hotel. Sei lá.
Guilherme
está morto. As cortinas fechadas. E o pop up de Viva La Vida desliza em
minha cabeça: Tão vermelhas, as melancias. Cortadas, oferecidas, drapeadas
feito minhas saias de dançarina da Vogue.
Melancias. —
Cada um tem a epifania que merece! — E assim me dou conta de que esta não
sou eu. Não, eu não sou a mulher que depende dos outros para limpar a
bunda, para dar um simples passo. Não sou. Não posso
ser.
Não é
ingratidão. Amélia é mulher de verdade, me masturba em silêncio, no banho.
Me bate na medida certa. Me cospe na medida certa. E faz minha
fisioterapia, há anos. Me dou conta de que me
acomodei.
Travo as rodas da cadeira para não deslizar. Apoio as mãos na mesa. Levanto. Depois de três anos, levanto sozinha. E dou dois passos. No terceiro minha cabeça encontra o chão. Minha cabeça não é mais que uma melancia madura derramando seu suco vermelho nos vãos dos tacos de madeira. Fico olhando o labirinto geométrico de sangue se esparramar pela sala, mas não vou esperar Amélia voltar. Eu limpo. Só preciso recuperar o fôlego.Um sussurro baixinho. A voz de Guilherme. Mais uma de suas aulas de arte: "Frida escreveu sobre essa tela poucos dias antes de morrer. Essas letras, Viva La Vida, são sua última pintura. Não é irônico?".
priscila lira As flores
amarelas de medo daquele velhinho pornográfico estão por toda parte. Hoje,
domingo ensolarado, uma delas acordou tremelicando sobre o meu peito.
Desonrarei os compromissos, quebrarei amizades novas, pouparei o exercício
de simpatia alheio, não sairei de casa. Além do mais, posso aproveitar o
calor e lavar minhas calcinhas.
"É crua a
vida. Alça de tripa e metal. / Nela despenco: pedra mórula ferida. / É
crua e dura a vida. Como um naco de víbora". Será que a
Hilda lavava suas calcinhas? Será que as estendia no varal da Casa do Sol?
Ou, como eu, não gostava de expor assim o seu sexo e as secava atrás da
geladeira?
Por todo
lugar brotam as flores amarelas, hoje o mundo tremelica de medo, os
ditadores, o povo, os democráticos, os ex-militantes, as mães de
estudantes, o moço revistado com maconha no bolso, as mulheres com o rosto
escaldado condenadas à feiura eterna, eu. Morreremos todos, medrosos. Mas
preciso lavar as calcinhas.
Sonhei que
havia um espelho na cozinha, eu parava em frente a ele e me observava,
tirava a camisa e o reflexo me dava um tesão imenso. Deslizava a mão sobre
os seios e descia até a barriga, os olhos fixos no meu outro. Acordei. Uma
pena, a excitação do sonho perdeu-se junto com ele.
Fumarei um
cigarro, colocarei uma música e vamos às calcinhas. Também não gosto de
lavá-las na área de serviço do prédio, uso a pia da cozinha mesmo, podia
ser a do banheiro, mas a janela que fica contra a torneira é muito
agradável. Gosto de pensar que as tantas janelas vizinhas estão logo ali,
de frente para esse quadrado, a me olhar, de costas, esfregando minhas
calcinhas. E saber que, apesar disso, ninguém está
vendo.
Eu cheiro
cada fundo antes de lavar, para ter certeza que meus fluidos continuam
transparentes e inodoros, ou com o odor de sempre. Imagine um voyeur
assistindo isso tudo e ficando louco. Essa branca de bolinhas pretas eu
usei no dia em que esqueci de descer no ponto de ônibus do trabalho, a
rosa, não lembro, a cuequinha preta foi naquele dia que encontrei o
pessoal, ela fica bem com a minha saia longa, aperta a barriga e meu corpo
parece mais bonito.
"Tinta,
lavo-te os antebraços. Vida. Lavo-me"
Essa é a
melhor parte, o momento em que eu coloco as mãos dentro do vestido, seguro
em cada ponta do meu quadril e deslizo a calcinha que uso. Sinto-a
passando pelas coxas, até ficar cambaleante e eu apará-la no pé. Ah, um
voyeur assistindo isso tudo. Assistem, todas essas janelas me veem tirando
a calcinha e ficam boquiabertas, fazendo promessas para que eu também lave
o vestido.
"No
estreito-pouco / Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida"
Calcinhas
escondidas, uma por uma, no varal elétrico. Meio domingo para ainda
existir. Podia continuar a brincadeira do sonho, não mais com o espelho,
com a janela do quarto. Todos esses quadrados, preparem-se, o vestido
cairá! A cama de frente para o sol, as pernas abertas para todas essas
pessoas, o meu corpo despido para mim. Todos esses sinais, esse par de
seios que contrasta tanto com os meus braços bronzeados, o pequeno relevo
que se forma nas costelas, o umbigo, o quadril estreito, as coxas com uma
leve penugem que reflete a luz, as canelas ásperas, quando tomar banho vou
depilar, tudo isso é meu. No sonho, eu tinha razão. Vocês, medrosos, olhem
para mim, esqueçam o câncer de próstata e as doenças venéreas, esqueçam as
crianças mortas da Síria, esqueçam Fukushima, eu estou aqui, de pernas
abertas, o vestido caiu, paguem suas promessas.
"A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos". A Hilda ia gostar de me assistir. Meu dedo andando em círculos percorrendo os pelos, desce, desce, molha-se. Desculpem-me, não há narrativa aqui, apenas hidromúrias rebeldes, solitárias, quebrando o protocolo. O meu corpo convulsiona na cama, os dedos encharcam, "a vida é líquida". Fecharei as cortinas, uma salva de palmas antes e voltem aos seus afazeres dominicais ensolarados. Preciso chorar o medo do mundo.
luiz boeira da paixão priscila merizzio os segredos
que ele guarda
casado há 40
anos com a mulher
no lugar de
seu coração
gira o
ventilador centrífugo
da máquina de
lavar
batendo as
roupas
dos filhos
adultos
como
macacõezinhos
de
bebês
o cérebro
raciocina na mesma
frequência do
aspirador de pó
Eletrolux © /
suga sonhos
esquecidos na
lua de mel
ela está mais
atenta à precisão
simétrica do
corte das cebolas
do que nos
seios
— tão
formosos
como há 40
anos
suas costas
sardentas desnudas
no vestido
puído são déjà vu
dos cabelos
longos que cortinavam
seu corpo
lânguido nos anos 70
a filha mais
velha reflete a juventude
da mãe /
paternal, ele pede à ela
para que não
ande só de calcinha
pela
casa
não quer se
lembrar da mulher
coquete que
hoje dorme
ao seu lado
como se fosse
sua
irmã
ela lustra o
assoalho com a diligência
das indianas
afagando falos sagrados de pedra
ele namorou
com os olhos
a colega de
trabalho barbeando-se
no espelho de
mão da mulher
sempre ela: a
mulher
no domingo, a
levará ao cinema
comprará
pipocas, refrigerante
alisará seus
seios por cima da roupa
colostomia roberta silva Parei de
conversar com os colegas de trabalho. Todo aquele papo sobre pendências e
cobranças foi me deixando com náuseas. Minha antiga chefe dizia que eu e a
antiga estagiária éramos como lavadeiras. Pode ser, mas por um tempo a
gerência parecia uma grande família. É difícil não falar, então comprei
fones de ouvidos e ligo o rádio do celular. Um dia, esqueci o telefone em
casa, por sorte havia levado os fones. Coloquei-os nos ouvidos e a ponta
do fio dentro do bolso da calça. Não me incomodaram.
Eu ouvia uma
rádio comédia. Programas do tipo besteirol durante todo o dia. As vozes
dos locutores me cansaram também. Achei que não existia rádio que tocasse
música clássica nesta cidade, mas na hora do almoço tem uma estação que
toca. É boa, menos às segundas que tocam barroco.
Ouvir música
clássica enquanto ando de ônibus, quando ando pelas ruas ou estou no
trabalho faz com que me sinta em um filme cult. Joaquim Phoenix e Penélope
Cruz passam por mim, elegantemente vestidos de gente comum.
Não há música clássica que faça com que eu encare os intestinos expostos do João. Hoje João está sem camisa e sua bolsa de colostomia está pela metade de sangue. João nem percebe. Eu o conheci há uns dois anos. Homem, negro, aparentemente saudável, um metro e oitenta ou mais, parado no ponto do ônibus pedindo esmola. Ele dizia que não podia trabalhar, era doente, precisava de ajuda, algo assim. Não ouvi o que ele dizia, só podia encará-lo e pensar como podia um homem como ele pedir esmolas, se ele não sentia vergonha. Na semana seguinte eu o vi de novo. Dessa vez, ele espremia a barriga com cara de quem estava no banheiro e repetia seu discurso que mais uma vez não compreendi. Dois meses ou mais depois, João apareceu, camisa aberta. Havia uma colostomia e pela abertura da blusa se via a alça intestinal rodeada por uma bolsa de plástico. Não ouvi seu discurso, aquilo me chocou demais. Nas vezes seguintes, ele aparecia e além de deixar a blusa aberta, a cada parada para dizer seu texto, ele passava a mão pela barriga e pela alça saíam fezes líquidas. A maioria das pessoas, inclusive eu, não olhava diretamente. As senhoras mais velhas abriam suas bolsas e tiravam moedas. Fiquei muito tempo sem vê-lo. Anteontem, enquanto ouvia um lindo instrumental de piano, ele apareceu. Sem camisa. A alça intestinal estava muito inflamada e parecia ter sido tão espremida que virou pelo avesso. Media uns quinze centímetros e sangrava toda. João continua massageando sua barriga e penso que não percebeu que já passou da conta. Que o que ganha está virando-o pelo avesso. Tenho nojo do João, ele se mostra demais a troco das moedas das beatas. Tenho nojo dos meus colegas de trabalho, vomitando pendências e cobranças. Tenho nojo do Joaquim Phoenix e da Penélope Cruz, que são elegantes e se fingem de pobres enquanto toca música clássica na trilha sonora do filme cult. Tenho nojo da estação que contrata humoristas para ludibriar ouvintes durante o expediente e na volta para casa. Eu quero que o João morra logo e me deixe ouvir sossegada o som do piano nos meus fones de ouvidos.
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