edição 46 | março de
2014 uma lembrança para godot [fragmentos] larissa marques entrega
as moças de
família ficariam quietas, esperariam santas à sua volta. elas suportam
faltas silenciosas, movem-se com delicadeza, como se não tivessem vontades
berrando em cores de Frida Kahlo. usam perfumes finos e esperam ser
seduzidas, como se isso não fosse papel delas. seus narizes empinados
cortam o vento e eu não sou assim. excito você porque não sou assim e se
tudo que me oferece hoje é uma punheta, quero-a de bom grado, se isso me
levar um pouco mais perto de seu corpo e de sua vontade, toque-se pensando
que ainda há desejo aqui. pense em minha boca que tantas vezes disse o seu
nome e com desespero abocanhou-lhe rijo e teso. sim, tenho saudades, seu
lugar ainda é seu por merecimento. não encontrei quem o substituísse à
altura. sou de uma simplicidade burlesca, de uma sagacidade pagã, há quem
me julgue passional e impulsiva, quem disse que eu
ligo?
sambinha
se soubesse
que chegaria tão cedo, não teria bebido o porre de vodca dessa madrugada,
relendo as suas cartas e não estaria com esse cheiro de choro amanhecido
nem com esses olhos inchados. não pedi dinheiro algum nem sabia onde
estava e fiquei esse tempo todo sem notícias. acho que a bebida afeta mais
seus miolos que os meus. não tenho cuidado nem de mim nesses últimos
tempos, então não me venha falar de seu retrato. o telhado está cheio de
goteiras e não tive forças para subir e consertar, mas coloque o vinil do
Pixinguinha, me beije e mate minha fome, juro que depois mato todas as
suas.
lira
não há
indiferença nesses olhos amanhecidos, enquanto sinto você por perto,
amado. espero que tenha entendido que o que não quero é sofrer por algo
efêmero, mas tudo é. não há dor maior que acordar com isso, pedir cordas e
se jogar no asfalto, como se fosse tudo que temos. e se não soubesse de
nossos lençóis revirados e carregados com nosso cheiro, das garrafas
vazias e dessas marcas na pele, poderia jurar que não há amor. nunca acreditei em contos de fada
ou histórias da carochinha, o cotidiano não contabiliza ganhos na
distância nem os queloides que a ilusão acentua. e se tem o coração
batido, saiba que o meu por esperança ou dolo, segue o mesmo ritmo do
seu.
concreto
sei que não
conseguirei arrancar essa dor que traz nem tampouco aliviar essa angústia
cimentada em seu peito. a noite é cega e me faz lembrar do que me disse
uma vez sobre a vida ser preta, sobre a vida ser branca e nesse contexto
não há tons de cinza, amado. a metáfora é certeira e sua fala é exata.
somos privados de sanidade quando assumimos o risco de amar, quando nos
entregamos ao desejo. e reitero que somos aqueles lençóis, embriaguez e
nossas marcas. sei que tudo é transitório, mas ainda não me acostumei com
isso.
plateia
apeteceu-me,
por um tempo, olhar as pessoas como peças móveis em um tabuleiro, tendo a
visão de que estavam em seus pequenos casulos sociais, tecendo seus fios
de hipocrisias e medos. nessa época não me considerava gente e aceitava
quase impune meu papel de pequeno e irrelevante observador. agora sofro
por me ver presa nesse mesmo casulo e amarrada com as mesmas
cordas.
reestreia
sim, os
antigos personagens com suas experiências bizarras e passagens invisíveis
estão de volta. e são eles os que mais prosperam e proliferam nessas
pequenas chances que dão a mim. as viagens alheias se tornam
auto-biográficas, mas a caneta esferográfica não distingue nada. as
grandes jornadas são feitas no silêncio mais profundo que conheço e que é
possível. as ondas de meu velho rádio de pilha só repetem músicas que me
pedem paciência. um passo de cada vez, depois de tantos, sem pensar que
tudo está à beira do mesmo abismo colossal. as notas destoantes e
cacofônicas nascem da simbiose do medo e do encontro de olhares
catatônicos.
alucinação
hoje lembrei
de uma noite estranha, os dois entorpecidos, sem quem nos velasse ou
olhasse por nós, a visão de corpos sangrando e saindo pelas paredes
daquele quarto de subúrbio, eram seus olhos arregalados me fitando com
desejo e fúria, eram suas mãos me apertando e seu sexo me invadindo.
agora, vejo sua imagem, mesmo de olhos fechados, intocada pelo tempo, o
cheiro de éter está por todo lado e sua boca ainda sorri, sem abandonar a
minha.
intervalo
quando era menina, de boca frouxa e riso alto, desconhecia essa pausa longa, esse falsete de entrar no tom e não ter ritmo. desconhecia o compasso e não me dava conta desse tempo calado entre as notas. e é nesse silêncio impalpável que se condensa a realidade, seca-se a retórica até que não seja nada além de artifício. difícil é esquecer que tudo que é embuste, afasia, verbo tosco, fala falha, desafino e incompreensão vem da palavra. a bendita, a mal dita, tanto faz, a raiz do problema é sempre a mesma, ela e eu no mesmo contexto e tema.
ano novo
estou farta das superfícies, por isso fujo dos jantares de fim de ano, por isso fujo das pessoas que um dia amei. poderia dizer que quero a solidão, mas é mentira. poderia dizer que quero o silêncio, mas continuaria mentindo. é que quando estamos sós temos certas coragens que nos faltam em público, é que ali no silêncio desassossegado, que bem citou Pessoa, todos estão propensos a verdades afiadas. sabe que me provoca profundidades. vir à tona, tomar fôlego até o pulmão quase estourar e voltar à lama, ao lodo que só se acha no fundo. sabe que instiga o pior que há em mim e mesmo que diga: "a faca é cega", eu digo, amado, meus olhos de pedra conseguem amolá-la, para furar os outros como bem me ensinou. tenho que expurgar essa personagem que toma conta de meu cotidiano, ontem passei a noite olhando para ela, que é a fumaça de meus cigarros, que é minha inspiração e minha expiação. rememoro cada prego da cruz, porque é isso que dá vida e faz sangrar. e reafirmar que ela não sou eu não melhora em nada a minha condição de sua escrava. finjo, dissimulo em febre quase gentil, como se não fosse minha essa dor que toma e tomará tudo o que me é importante. minha pele tem muitos queloides provocados por lembranças suas e não suporto mais. e mesmo rejeitando esse sentimento calmo e nocivo, permaneço alimentando o que machuca e deixa marcas. e não deveria perder meu tempo nessa mesma tecla preta do piano. por quantas vezes foi possível, repeti que abandonei aquele estágio dicotômico de amor e asco. e assumo, assumo mil vezes, que trago aqui essa falha de caráter, uma fuga insana da realidade torpe que rasga todo o tempo, mas quem disse que consigo renegar isso?
10 poemas líria porto kahlo-me
aparentemente
inerte
a pedra
espera
e
sente
frí(gi)da ao
meio-dia
à meia-noite
fervente
a pedra
dentro
da
pele
nus
e assim — sem
fantasia
tu és sapo eu
sou
jia
possessivo
queria-me
nua
tão
completamente
que depois
das vestes
arrancou-me a
pele
(fiquei carne
viva)
então me
salgou
comeu uma
parte
e não
satisfeito
congelou o
resto
(vai comer
mais tarde)
a
atriz
com uma saia
cigana
um xale de
renda preta
e eu virava
uma puta
uma mulher
sem cabresto
depois — a
roupa trocada
e limpa de
qualquer culpa
fantasiada de
santa
ninguém me
apontava o dedo
difícil é
ficar nua — ser duas
seres tu
mesma
complexo
vestida com
poucos pelos
(tinha
pelagem restrita)
caminhava uma
mulher
sem qualquer
outro adereço
e nua como
nasceu
atravessava
esta vida
até que um
dia um cruel
apontou suas
estrias
a mulher
então corou
apequenou-se
cobriu-se
flores
desabrocham
insinuas
compreendo
e sem nada
explícito
fico nua tu
te despes
em dias de
delicadeza
o grotesco é
belo
:
o sexo dos
velhos
melancólica
enrolava a
saudade
umas quatro
ou sete voltas
fazia quase
um novelo
enrolava-a
mais um pouco
cansava do
sofrimento
dava outras
tantas voltas
e enrolava a
saudade
enrolava-a
enrolava-a enrolava-a
para atirá-la
ao vento
eis que então
ficava presa
a saudade se
agarrava
aos fios do
seu cabelo
saudade
abraço a tua
ausência
ela preenche
meus braços
chego a
sentir o teu cheiro
eu beijo o ar
e
desfaço-me
in_continente
os rios
saídos dos olhos
são rios sem
peixes
nascidos no
amar
amor meu amor
não me deixes
sem ti sou
areia e o vento
é
voraz
o sal da
saudade é amargo
é um fardo de
morte morrida
ou
matada
lacuna
no vão entre
o colchão e o cobertor
espaço da tua
ausência
a saudade dos
arrulhos dos sussurros
do amor que
existiu e voltará
numa noite
assim
de muita
chuva
teseu luísa mendez sá a pele
avessa
[crua de meu
homem]
não
atravessa
ousada
porta.
a pia
quebrada
anuncia
falências
ou
silêncio.
minha nudez
velha
sepulta o
destino
das
partidas.
meu homem
ignora
bailar
vertiginoso
labirinto de
rugas.
corpo ou
gaiola
habito sem
coragem
3 poemas mafalda mautner amor de
galeria
é
preciso
ajustar na
tela
meu tesão
Frida Kahlo
ao teu gozo
Diego Rivera
in nomine
suo
antes
em nome do
Pai
muitas
orações
e
flagelações
(castigo
pra toda
nudez
imaginada no
confessionário)
agora
em seu
próprio nome
só
ereções
e
masturbações
(uma parte
animal
não se
enjaula)
memorabilia
saudade:
ouvir
ainda
o barulho das
teclas
da Olivetti
Lettera
poe-mico maria josé de dirceu o que Diego
mais gostava
era de
enroscar-se
nos bigodes
de Frida
para Silvana
Guimarães
Juro dessa vez eu não volto nem que se faça mandinga os anjos reclamem o mundo se acabe você vire pedra juro não volto fique com o desamor começado no inverno o gato as chaves do inferno os vinis importados os quadros as tralhas "as mesmas toadas de natais e de férias" as contas-poupança o arremedo de sexo a última piada a sem-vergonhice do nada juro não volto vou me desvestir desse ranço e sair por aí à procura da moça que se sentia feliz fazendo amor no banco traseiro de um carro que gostava da boca que lhe mordia a nuca enquanto brincava de conversar com os olhos e só por isso eu vou e ainda carrego comigo a lembrança de um punhado de ausência já que nem retrato eu quero e nada mais me arrepia nem aquele contrato que um dia assinamos entre promessas felizes de que o amor que era tanto se um dia acabasse não fosse feito vidro que deixasse ao menos a dor tinta de negra saudade.
|