edição 46 | março de 2014
temas:  frida kahlo | nudez | saudade

 

prova de português
adelaide do julinho


decorou os lusíadas

os cânticos

algumas epopeias

 

na hora do vamos ver

só se lembrou do ato:

joaquim e seu caralho

 

a quatro

 

 

 

miniconto
adriana brunstein 


comece pelo meu pescoço. evite áreas sujeitas a cócegas ou coisas deliberadamente aflitivas como língua na orelha. tenta não ficar fazendo apologia aos meus seios com parvalhices do tipo: que bom que você nunca amamentou. esqueça toda aquela merda de animais trepando no discovery channel e posições de ioga que meu corpo sedentário e inelástico não tem condições de fazer. ombro não é nada erógeno pra quem não tá numa sessão de quiropraxia. passa batido. a falta de simetria entre os lados direito e esquerdo do meu corpo: trate como política. declare-se de centro, fique em cima do muro mas, uma vez em cima de mim, meta um capacete amarelo na cabeça e finja que eu estou em obras. não me faça sorrir, meu rosto fica obsceno demais  e todo o resto da minha anatomia vai parecer ridículo. não me fale de suas preferências sobre pelos quando abaixar minha calcinha, concentre-se mais em afastar os meus joelhos que tendem a se atrair feito polos magnéticos opostos. não dê nome aos bois como clitóris, vagina, ânus, use os dedos e a boca calada. pense em qualquer pintura renascentista quando mais nada estiver cobrindo meu corpo. há algo sagrado nisso. agora pode me foder.

 

 

 

3 poemas
adriane garcia 


mais que um cansaço

 

 

Cortaram de fora

A fora

O boi

Morto

E agora

No gancho

O vermelho

Vivo

 

Como as dele

Estão minhas

Costelas

Partidas

Feito as

De

Frida

 

 

 

 

 

eclipse

 

 

Encosto-me em ti, nua

Crateras de encontro e encaixe

 

Um vizinho nos olha

Pelo telescópio

 

Uma metade minha é tua

A outra metade tua é minha

 

E nosso voyer

É rápido:

 

Sabe que somos furtivos astros

 

 

 

 

 

o membro fantasma

 

 

Um dia ouvirei seu nome

Como uma lança penetrante

Em meu flanco esquerdo

 

Não será saudade ainda...

 

Levará anos

Até que eu extirpe essa dor

Inutilmente

Que como um braço, uma perna

Amputados

Continuarão doendo.

 

 

o exercício
adrienne myrtes 


Talvez fosse necessário substituir os diálogos, alguma coisa precisava ser modificada; ainda não conseguia ouvir a pulsação de um corpo naquele texto. Não havia sangue circulando entre letras.

Se cortasse os pulsos haveria sangue suficiente, pensamento absurdo, embora absurdo fosse seu nome quando assentava palavras no papel.

A cabeça encontrou apoio entre as mãos. Um ponto qualquer latejou dentro da caixa craniana. Ponto. Um simples detalhe talvez, não nos diálogos e sim na narração. Quem sabe o olhar distante da mulher sentada no café pudesse na realidade estar perdido. Saboreou as sílabas entre os dentes, per-di-do. Mastigou-as. Perdido estava ele naquele instante, largado na esquina de um país estrangeiro, sua imaginação: passaporte confiscado. Levantou-se da cadeira, não quis prosseguir. Esse querer durou pouco, sentou-se outra vez. Imaginou um amor incompreendido, tentou sentir-se melancólico; sentiu-se medíocre. Ridículo.

Seus olhos seguiram as linhas das mãos, alheou-se na contemplação das texturas, não encontrou o caminho de volta. O pensamento, em enxurrada, arrastou-o até o meio do rio, as imagens boiavam, fragmentos de histórias, sua existência fictícia misturava-se à realidade. Do outro lado da ponte, em silêncio, sua sombra aguardava o momento de colar em seus pés. Desejou intimamente o som da campainha da quitinete por auxílio. Silêncio. Quis sair do transe. Ainda em silêncio lembrou-se da mulher com olhar supostamente perdido que continuava no café à espera. Continuava, não, permanecia. Uma senhora com o olhar perdido. Não. Uma mulher. Senhora fica para José de Alencar, uma mulher apenas, e ela permanecia, per-ma-ne-cia, é, permanecia sentada no café à espera. Por que permanecer? Porque se permanece mais comodamente que se continua. Não se imagina uma sucessão infinita de permanência; continuação sim, continuação puxa um fio muito longo, pesa. E tudo naquela mulher traduzia comodidade. Voltando, ela poderia estar observando as próprias mãos. Sabe-se lá quais pensamentos lhe ocorriam, quem sabe futilmente observasse o anel, bijuteria barata. Quem sabe imaginasse outras mãos sobre as suas, ou lembrasse com paixão a textura do corpo de um homem, um belo membro pulsando em suas mãos, e riu pra dentro ou era o pensamento que ria porque se sabia dele. Percebeu-se apertando os dedos de encontro às palmas. Sentiu-se a mulher e não havia comodidade nesse sentimento, havia saudades de um futuro que o esperava na esquina, um futuro à feição de um cachorro magro que qualquer hora arrebentaria a coleira para matar a fome. Quis chorar, mas era querer demais para tão breve texto, além disso, choro não tem querer, tem necessidade.

Aquela mulher absurda era ele, aquele era o personagem cuja forma plena só conhecia as páginas do seu quarto. Não havia como fugir das linhas do papel, ali era o espaço onde despia o corpo e deixava expostas as carnes da alma. Havia construído um labirinto só para se perder dentro dele.

E se queimasse todos os papéis da casa? Besteira. Havia papéis mais amassados a representar no futuro. Quis acionar todas as teclas, finalizar com o toque brusco de um piano, ou esmurrando os teclados; mais um querer expondo o ridículo da situação. Clicou em editar, selecionar tudo, teclou delete.

Fechou o computador e foi ao banheiro buscar algum prazer na masturbação.

 

 

poema
alice barreira

corpo

a

corpo

 

no

corpo

corpo

 

no

meu

corpo

nu

o

teu

corpo

nu

 

no

meu

corpo

nuvem

o

teu

corpo

nunca

 

 

o que fica
ana criolina 


não é na garganta,

esse nó

é na ponta da língua

onde haveria qualquer

palavra

não fosse tanta boca embebida

em saudade saliva

— eu quis sua dor pra mim.

 

um, dois, três
ana flor 


um
 

Na parede pintada de azul,
'Frida y Diego viveron en esta casa'.
E no vento que respira sem cor:
'Y montón dolor también'.
 
 

dois
 

Se toda nudez será castigada,
como escreveu o homem.
Digo apenas então,
que todo castigo será desnudo.
 
 

três
 

Saudade
é quando a pessoa
se mudou daqui,
mas continua morando
dentro de você.

 

 

soulstripper
ariana zahdi 


Ele olhava pelo buraco da fechadura

E eu dançava um blues antigo

Descalça

No chão do quarto

 

Soltei o vestido de leve

E fiquei com as costas à mostra

Rebolante como uma stripper

 

Abri o sutiã devagar

E aos poucos lancei contra a porta

 

Tirei a calcinha

Deixei que caísse no piso gelado

E dancei como se meu corpo

Já não tivesse peso

 

Arranquei com calma a pele

Longa, lisa, macia

E ele invadiu o quarto

 

Sentou-se na cama

Enquanto eu rasgava os músculos

 

Ficou excitado

Porque eu destrinchava as vísceras

 

E não se conteve:

Quebrou meus ossos

E arrancou meu coração

 

Mas foi só quando a alma

Completamente nua

Se desprendeu de mim

Que ele gozou

 

 

poema
aymée h 


Dia desses

vou esquecer como você

é

Vou esquecer como você fazia

desfazia

refazia

 

Já estou esquecendo

de como sua boca mexia

do canto esquerdo para o direito

quando você falava tudo

menos eu te

..mo

te..

..mo

..te amar

 

Dia desses esqueço que você perguntou o nome de uma estrela

olhando nos olhos dela

Esqueço a estrela

O céu

Esqueço os olhos

 

Dia desses

Tudo esquecido

Só falta

te conhecer

de novo
 

 

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