edição 43 | dezembro de 2010
temas: escuro | ausência | miudezas

 

mindinho
adelaide do julinho

 

um mala
mole
cabeça
: destamanhim
me poupe
isole
esqueça
: xô, pingulim

 

 

 

4 textos
adriana versiani

 

darkness

 

Conheço a noite, pesadelo povoado pela Besta, terra onde ela aplica seus métodos.

 

Nós, de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.

 

Conheço o pesadelo, noite povoada pela Besta, terra onde ela aplica seus métodos.

 

Nós , de suas unhas compridas e sujas, vigiamos.

 

Universo povoado pelas sombras,

conheço a escuridão de suas unhas.

 

 

 

 

réquiem para guiomar

 

Guiomar,

 

No dia da sua morte, cortaram-lhe as tranças.

 

Júlia embrulhou-as no papel de seda.

 

Porque é tradição jogar dentes no telhado, amarrar com fitas pequenas mechas de cabelo, carregar corpos pelas ruas em procissão, acender velas, lançar flores nas covas, chorar, entoar cânticos, levar as crianças para que não se esqueçam.

 

O ritual da queimação, dos corações fragilizados, dos soluços.

 

Guiomar,

 

No dia da sua morte foi assim:

 

Júlia agarrou-se à caixa e chorou sobre as cinzas.

 

 

 

no mundo das pequenas coisas

 

as casas de Minas têm interior

não se dá por elas o que vai por dentro

 

saída dos fundos opção que se estende até os becos e pedras dos muros

 

um dia interrompida pelo diabo aceso que arrasto

larguei o chicote na mão do inimigo

 

cachaça procissão, luto

porque não fui visitá-lo no seu leito de morte amigo

agora agonizo

 

entrei no mundo das pequenas coisas

 

afeto não se explica nada foi vivido tudo anda escondido

 

alguns perguntam o que sabe a criatura do calabouço

sentenças gavetas onde estão quardados  os indícios véus missais botões bilhetes e suas

transcrições

 

acostumei-me ao ritmo é este o veredicto:

essa não presta queimem seus escritos

 

 

E A ALMA QUE LHE DEI?: — ESQUEÇA, INSISTO.

 

 

ando triste às vezes choro

sei fazer samba do Sinistro

 

vivo pelas pontes praças precipícios

 

 

 

oceano

 

Se algum dia nos fosse dado mergulhar nesse oceano de minúcias e nus, no fundo, nos víssemos de perto e se suas mãos ásperas apertassem minhas coxas e abrissem minhas pernas e se sua boca sugasse de mim o que tenho de fluido e se você derramasse em mim sua seiva e me engendrasse seus mistérios e me amordaçasse com algas para que eu não gritasse e se seus dentes roçassem os meus mamilos e os marcassem e meus lábios lhe mostrassem outros caminhos e revelassem na minha língua seus segredos.

Se algum dia nos fosse dado, seria preciso gemer baixinho para não acordar os peixes.

 

 


 

coisa diacho tralha
alice barreira

 

1.

 

beijo cuspido na pia

calcinha retorcida na torneira

 

a figueira seca do amor

brotando cegueiras

 

flores de lepra

lágrimas de cebola insone

 

na mesa posta o prato de louça inglesa

o peixe de silicone

 

e o que boia na sopa

revolvida com a colher

 

coleção de cacos de vidro

para não esquecer

 

 

 

2.

 

lembro da tua pele branca

que minha alma já assinara

 

brancura que nunca fora

rindo o vinho derramado

 

sonho de teu gozo antigo

com ânsias de cartomante

 

mares dantes do castelo

cartas nunca navegadas

 

ai quiséramos amores

naufrágios assinalados

 

 

 

3.

 

gira

sol

e

aquece

a

paixão

que

esquece

e

anoi

tece

a sol

idão

 

 

 

4.

 

sobrevivente da calamidade

amor não tem cara nem metade

 

amor coisa diacho tralha

não divide nem migalha

 

amor silêncio da loucura

todo dia contigo amanhece

 

amor inferno que você carrega

e desconhece


conto-colar "suicídio", de adriana versiani

 

ele não sabe com quem mexeu
carla luma

 

Deus, a Natureza, essa força misteriosa graças à qual existimos — e acerca da qual não ouso aprofundar especulações para não prejudicar a pele, as unhas e o juízo — nos castigou com a maternidade e, para compensar, deveria nos conceder imunidade contra certos sentimentos, entre os quais o amor, que também estraga a pele, as unhas e o juízo. Sobretudo o juízo.

 

Ontem, depois de muito tempo, quase dois eternos meses, mergulhada na escuridão da loucura à qual fui atirada pela paixão por um cafajeste que me conquistou com barris e mais barris de lábia e de lágrimas, emergi quando num átimo de lucidez saquei que o dito cujo conseguiu me extorquir quase todo o saldo da caderneta de poupança com o pretexto de que era um empréstimo para estabelecer-se no comércio.

 

A estúpida aqui se sentia enlanguescida quando o filho da puta me dizia que já não conseguia suportar os ciúmes e a dor que sentia quando me sabia nos braços de outro homem, mesmo sabendo que para mim é um serviço como outro qualquer, no qual não há sentimento algum envolvido. E dizia que me libertaria dessa escravidão quando o seu negócio começasse a dar lucro, e me fazia assinar outro cheque.

 

Quase dois meses me enrolando. Nunca me disse onde investia o meu dinheiro. É uma surpresa. Mas é comércio do quê?  Em qual rua? É uma surpresa, no dia da inauguração você vai ver. A loja está ficando linda, mais dois ou três meses. Espere, tenha calma. E beijava os meus olhos, beijava as mãos, a boca e me arrancava a roupa, me comia e me fazia assinar outro cheque.

 

Ontem eu não resisti à curiosidade e resolvi segui-lo. Peguei um táxi porque temia perdê-lo neste caos que é o trânsito em São Paulo. Melhor não dar aqui todas as voltas que o carro deu até chegar em uma rua no Tucuruvi. Ele estacionou e entrou em um prédio de apartamentos. Esperei uns cinco minutos e entrei no prédio. Francisco, o velho porteiro, encantado pela generosidade do meu decote, era todo loquacidade e em menos de dois minutos eu já sabia que o meu amantíssimo gigolô era casado e pai de três crianças.

 

Subi ao 904. Abriu a porta uma garotinha linda com cerca de sete ou oito anos de idade. Ela sorriu e aquilo me desarmou. Vi-me naquela menina. Vi-me quando tinha medo de escuro e me enfiava entre papai e mamãe quando acordava assustada com a escuridão da madrugada. Vi-me quando me escondia debaixo da cama para não assistir papai bêbado espancando mamãe. De dentro uma voz de mulher perguntou quem era. Baixinho eu disse que era engano e a menina gritou para dentro que era engano. Desci chorando de raiva porque não consegui executar o meu plano de vingança. Não, eu não poderia fazer aquilo. Aquela garotinha, seus irmãos, sua mãe, eles não tinham culpa da minha estupidez.

 

Ontem não voltei pra casa, como quem não voltaria para um quarto escuro. Caminhei à-toa, depois fui para a casa de Amália Malaquias, amiga cuja alegria contagiante é sempre capaz de me transformar o humor, de trazer-me de volta à luz. Agora, em casa, refeita, escrevo esse relato que se não servir pra nada mais, servirá pra que eu não me esqueça e caia outra vez na tentação de uma vida normal. Miguel ainda não sabe que eu sei. Hoje, quando vier, será recebido como se nada tivesse acontecido e eu o farei broxar, eu o humilharei naquilo que ele se considera infalível e eu o tangerei como quem tange uma vaca velha que não dá mais leite nem cria. Eu o cuspirei como quem cospe bagaço de fruta chupada. Ele não sabe com quem mexeu.

 

 

 

 

 

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