edição 42 | setembro de 2010
temas:  masturbação | proposta | phoenix

 

 

oferenda
julya vasconcelos

Debaixo do sol descostura pétala, músculo, anatomia.

serei, eu, bicho mudo que encrava dentes e garras na pele?

bicho sem nome e faminto feito motor de navio velho, carvão incendiando as orelhas?

 

Quentura, lisura, franqueza, querer-se ir-se

Pontiagudos dedos de mulher — antes cobras entrelaçadas no fio de aço das facas da cozinha.

tomates pro molho, lima da pérsia, agrião — aviltam a gramática intacta do corpo buscando sabe-se lá

que raio,

que tremor,

que urgência,

e se anima em dizer "verão solitário", "desejo", sal de suor (colhido em montanhas altíssimas)

que agora me acode em tempestades e cheiro de rosas entre as pernas.

 

 

 

 

 

bilhete
jussara salazar

rio fênix por que escreveríamos river phoenix? talvez para que em sua língua você ressurja das cinzas menino-rio de um rio tão distante que se perdeu da vista se perdeu da mãe no imenso abraço-oceano a mãe-baleia com seu urro urrando bramindo em céu noturno, insano bramindo buscando o rio-mar que o rio de tão solar é rio escuro e se adormece em seus braços então por que não chamá-lo? por que não acordá-lo para que venha e nossa língua ressurja das cinzas menino de olhos cor-do-rio menino bonito sob o sol vou chamá-lo de cristalino assim para que ria pássaro sem mágoas que a palavra escrita aqui nessa língua é river e se espalha quando voam suas asas sobre a minha casa e menino você rindo azula os seus cinzas sobre o rio como a fênix flutuando sobre a água,

 

 


©juh moraes

 

 

vibracall
lia beltrão

Tudo o que ela queria estava ali, na sua mão. Protetor de tela com animação, viva voz integrado, melodias personalizáveis, efeito Multishot que permite tirar até 15 fotos em menos de três segundos. Além disso, envia imagens e sons em MMS e SMS e permite o acesso à Internet em alta velocidade pelo sistema GPRS. E tinha o Vibracall. Isto mesmo: o bichinho vibrava a cada chamada que recebia.

Não se sabe nunca o que se passa na cabeça de uma mulher. Por isso, não saberemos nunca o que se passou na cabeça desta mulher quando a palavra Vibracall atravessou suas retinas, percorreu milhares de neurônios e foi se alojar num canto obscuro do seu cérebro. Podemos apenas constatar os efeitos dessa transposição, pois, agora mesmo, neste quarto em penumbra, a vemos nua, deitada na cama, os olhos lânguidos, o corpo mole e o minúsculo aparelho volteando nas almofadas da mão.

Vibracall, Vibracall... Se alguém ligar, o bichinho vibra. Vibracall, Vibracall... Está na hora dele me ligar. Se ele ligar, o bichinho vibra. Se eu não atender, o bichinho vai vibrar até a chamada cair. Ele vai ligar de novo, o bichinho vai vibrar de novo, quantas vezes eu quiser, quantas vezes for preciso.

A mulher pensava isso e sua mão deslizava a pequena joia metálica sobre o corpo, movendo-se toda lentamente, preliminando-se, antecipando-se a um prazer que nunca imaginara ter e que agora estava ali, literalmente, à sua mão. E a mão descia com o fino instrumento dos seios para o ventre, dali para o púbis e deste para a linha de encontro das coxas. Slim, era fino assim o perfil do minúsculo amante. E fino assim, foi fácil encaixá-lo na fenda que se abriu carinhosa.

Não demorou muito para ele ligar. E ela recebeu por dentro a chamada do homem que a amava. Homem já agora dispensável, pois nenhuma das suas carícias foi mais funda e mais intensa do que esta que ela sente agora. Vibracall... Vibracall... — gemia ela. Vibracall — murmurava —, meu amor.

 

 

 

 

 

vou sonhar a pedra do teu coração...
lídia

vou sonhar a pedra do teu coração feito um martelo no linho obscuro da pérola: se deus falasse, ficaria calado: ela é o próprio mistério dos sinos todos de todas as catedrais: à noite ela deita a tessitura da cervical na grama fria: eu queria atravessar teu peito com esse arpão sagrado que é a palavra: e se casei com a noiva da neve, foi para que me soprasse: o gelo: no gelo do coração: a língua gelada na nuca fria: assim ela entraria em meu coração: com o sono do chuveiro espalhado na pele, vestiria toda a nudez quando sai da toalha molhada e atravessa o filme do Fellini já gagá entre a névoa: filma essa música espalhada na paisagem: um deus caído, que se falaria, preferiria ficar calado, chupa a chuva na tua coxa com brincos de coral e pérola caindo das orelhas: o arpão da língua a atravessa até o infinito: se te falo: todo o livro é uma declaração de amor, foi que chorei esses versos ainda hoje quando entravas no esquecimento de um dia de tédio: o tédio já é o deus cansado de sua falta do que dizer pois pode ser que ele desconheça a melancolia e o amor: eu entro no quarto com o chapéu de chuva atravessado com violinos de Béla Bartók: ela não acende algum cigarro: não pensa nas lamas do führer: eu bebo a água acumulada em sua clavícula

 

 


©juh moraes

 

 

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