edição 41 | julho de 2010
temas:  memória de futebol | paródia | o beijo da mulher aranha

 

fidelidade
adelaide do julinho

 

que

seja

infinita

enquanto

duro

 

[de um poema de Vinicius de Moraes]

 

 

3 poemas
adriana versiani

 

pelada nua despida

 

Pornográfico, ainda não havia reparado bem nos músculos das tuas coxas. Pornográfica, talvez. Espada tricolor, não. Não sou essa. Definitivamente, não sou essa. Vejo com clareza esse jogo: invista na defesa e sebo na doce canela doce do atacante. Chora noivinha: seu amor transou com o irmão da nossa tia. Músculo da coxa, e viva a santa panturrilha. Mia neném, no teu velório chorei bastante e estendi sobre o caixão a bandeira do teu time de predileção. Definitivamente não entendias nada de futebol e entediavas-me na cama. Falo bem de você só porque valeu a pena morder tuas panturrilhas. Pornográfico, ainda não desvendei por dentro os músculos tensionados das tuas coxas. Pornográfica, talvez.

 

 

[por causa de Nelson Rodrigues]

 

 

 

 

dolores

 

Risque

Meu nome do seu inferno

Desse universo moderno

Da sua fala vazia.

 

[de uma música de Ary Barroso]

 

 

 

 

super-herói

 

Meu super-herói de brinquedo tinha capa,

asas e lutava contra moinhos de medo.

 

Uns anjos giravam no vento e diziam:

— Fica menino, fica! Ainda é cedo.

 

Meu super-herói de brinquedo

tinha uma luz que brilhava dentro.

 

Só os anjos sabiam seu segredo.

 

Para Matheus

 

 

 


©márcio cabral de moura

 

o gigante do maracanã
alice barreira

Ontem nem era meu aniversário, mas o pai trouxe uns panos e disse pra mãe fazer uma camisa e uma bandeira pra mim. Tinha pano verde, vermelho e branco e eu perguntei se não podia ser tudo vermelho, que eu gosto mais e o pai mandou eu largar de ser besta que vermelho era o América e ninguém lá em casa era América, sabe por que?, porque a gente é Fluminense, Fluminense. Eu disse que não sabia que eu era Fluminense, Fluminense, lembrei que o vô era Vasco e o pai explicou que tudo que é português é Vasco, que antes de ser time era um homem lá de Portugal que vivia só viajando de navio e eu achei que deve ser ruim ficar só viajando de navio mas o pai não ouviu. Ele não gosta muito de ouvir, prefere é falar.

A mãe passou a tarde no vai-e-vem da máquina de costura e de noite me chamou pra experimentar a roupa nova. Eu tinha que ficar quieta porque a roupa estava cheia de alfinetes, só que o mano veio espiar e ficou dizendo que aquilo era roupa de palhaça e que eu era palhaça, mas eu expliquei que não era nada disso, eu até quis só vermelho mas vermelho é América e ninguém lá em casa é América mas ele só ficava dizendo palhaça-palhaça-palhaça e depois que a mãe ralhou não dizia mais nada com a boca mas fazia uma cara que era igualzinho. Também, quando ele tava vendo aquele filme que eu não posso ver porque tem muito tiro e muita morte, eu fui na caixa de botão e roubei o melhor do time dele, aquele que o pai fez com casca de coco e encobre bem à beça.

Hoje de manhã eu já queria vestir minha roupa nova mas o pai explicou que a roupa era pra eu ir com ele no Maracanã. O pai já me levou no cinema, na lanchonete, na praia, no restaurante mas nunca nesse Maracanã e a mãe logo arregalou os olhos mas antes que ela abrisse a boca o pai já foi falando que não tinha perigo nenhum, que eu não ia me perder e eu ainda falei que nem ia ter ataque de asma que nem o mano mas a mãe nem escutou, arregalou mais os olhos e disse que era a final, a final, repetiu, mas dessa vez quem não ouviu foi o pai e eu fiquei imaginando que final era aquela, será que o tal do Maracanã ia acabar?

Depois do almoço eu botei minha roupa que ficou mesmo como a mãe disse, boazinha e sem nenhum alfinete e dava pra eu pular e eu até queria pular, mas o pai logo falou que não era pra pular agora coisa nenhuma, sua besta, a gente ia era pular na hora do gol e o mano riu e ficou fazendo aquela cara de novo mas eu nem liguei porque escondi o botão dele no bolso pra zunir bem longe lá no Maracanã. O pai pegou um monte de charutos e uma garrafa de champanhe, explicou que tinha que levar isso tudo porque a gente ia ser campeão, a gente entrou num táxi, o pai mandou eu segurar a bandeira do lado de fora da janela e eu nem gosto de segurar nada do lado de fora da janela mas era uma bandeira lindona, com as mesmas cores da minha roupa e a mãozona do pai ficava bem do lado da minha e lá ia eu com a bandeira pra gente ser campeão.

Tem aquela estátua grande em cima do morro que o pai disse que é o Cristo mas nem se parece com o Cristo que a vó tem pregado numa cruz dentro do armário e ela pega o terço e fica falando mal do vô e da cidade onde a gente mora porque ela quer voltar lá pra terra dela. Mas nem o Cristo do morro era tão grande como o Maracanã, caramba, e tinha um mundo de gente com roupa e bandeira que nem a minha e todo mundo gritava, o pai gritava também, eu ria e comecei a gritar junto e a gente implicava com as outras pessoas que só tinham roupa preta e branca, que nem era colorida como a nossa e eu já tava era gostando de ser campeão.

O pai foi explicando e eu juro que nunca tinha visto nada assim. Nenhum gramado assim, nenhuma arquibancada assim, nenhuma geral assim, nenhum gol assim, nenhuma torcida assim, nenhuma grama verde com tanto verde assim. E onde eram as cabines do rádio, as cadeiras de número e até por onde os jogadores iam sair. E não é que o pai sabia tudo mesmo?, porque os jogadores saíram direitinho daqueles buracos na grama e foi uma gritaria muito maior, só que do nosso lado era mais bacana, que a gente ainda jogava talco pro alto e o pai me deu uns saquinhos que ele trouxe num embrulho e eu ia jogando e olhando o talco se espalhar pra todo lado. Aí o pai perguntou se eu tava vendo um homem lá embaixo e tinha tanta gente, mas ele explicou direitinho que era o careca e falou pra eu mirar bem e jogar o saco na cabeça do careca e eu olhei pro pai desconfiada que eu nem conhecia o tal careca mas o pai só fez que sim com a cabeça, eu mirei, mirei, mas cadê coragem?, e o pai segurou minha mão na mão dele e vuuuuum... em cheio! O careca levantou, acho que olhou direto pra mim, eu me agarrei no pai, o careca xingava, todo mundo ria, o pai ria e o careca ria também.

O pai acendeu um charuto pro jogo começar, o moço de preto que é juiz apitou e me deu um frio danado na barriga. O pai ia ensinando os nomes de quem pegava na bola, o Castilho, o Altair, o Escurinho, o Jair Marinho, o Valdo, menos do outro time, que esses tinham todos o mesmo nome de filho da puta. Só tinha um jogador de preto e branco que eu aprendi o nome porque ele pegava na bola e ia passando por todo mundo, até pelo Altair, e a gente ia ficando em silêncio, em silêncio e dava pra ouvir o pessoal do outro lado gritando Garrincha-Garrincha-Garrincha. Acho que só derrubando que ele parava porque o pai e mais um monte de gente gritava derruba esse puto, derruba!, e eu ajudava fechando o olho bem forte pra não sair gol contra a gente. Se funcionava pra não aparecer nem monstro nem ladrão de noite podia bem funcionar aqui também né, pai?, mas o pai achou que não, eu tinha que ficar de olho aberto o tempo todo pra ver o jogo, onde já se viu, porra?, e eu fiquei e descobri que era bem bom olhar o Garrincha-Garrincha-Garrincha passeando com a bola, pena que ele vinha pra cima do gol da gente, por que ele não fazia ao contrário? Mas isso eu nem perguntei pro pai. 

O pai olhava e olhava o relógio porque o jogo tava quase acabando e a gente ia ser campeão. Aí o Garrincha-Garrincha-Garrrincha pegou a bola e todo mundo gritou de novo derruba ele, derruba!, mas não é que o Altair não derrubou?, nem ninguém?, e não é que o Castilho que podia botar a mão na bola porque era goleiro dessa vez nem botou e eu nem consegui fechar olho nenhum e só via alegria do outro lado que gritava gol e gol e gol, não terminava nunca. Agora o pai dizia que o Escurinho e o Altair também eram filhos da puta mas aquela raiva toda foi ficando pequena, bem pequena, parecia até que o pai ia chorar, se não fosse o pai eu juro que ele tava chorando, mas não podia estar porque o pai não chora nunca, não é que nem a mãe que eu sei quando ela chora que logo começa a tremer o beiço. E aí o juiz de preto resolveu apitar que o jogo tinha acabado e eu olhei foi em volta e era só uma tristeza toda, toda, toda. Uma tristeza maior até que o verde. 

Quando a gente desceu a rampa de volta a bagunça tinha mudado de lado e o pai chamava eles de palhaços e eles só gritavam é campeão e Garrincha-Garrincha-Garrincha. Eu enrolei a bandeira que nem tinha mais graça balançar ela e falei pro pai que era muito ruim a gente não ser campeão e ele nem disse nada, me deu a garrafa de champanhe, andou comigo até um daqueles moços de roupa preta e branca, falou pra eu dar a garrafa pra ele e eu fiquei olhando pro pai com olho de pergunta e ele só fez que sim com a cabeça. Daí eu dei a garrafa, o moço ficou olhando, a gente continuou descendo a rampa, o pai acendeu o último charuto, a gente entrou num táxi e eu senti o botão do mano quietinho lá no bolso do calção e deixei ele lá. Em volta muita gente ainda gritava Garrincha-Garrincha-Garrincha e no rádio do táxi um moço disse que estava deserto e adormecido o gigante do Maracanã e eu olhei pra trás e pensei que ele era gigante mesmo e dormi no ombro do pai.

     

 

1 conto, 1 poema
carla luma

 

Aperfeiçoando o imperfeito

 

Fui ao Vaticano e não vi o papa anjos nem a Capela Sistina. Na África do Sul preferia ver o Nelsinho, mas tive que me contentar com Kaká, Robinho e outros anjinhos cheios de poses e de pouca inspiração. Aturei com o meu característico zen-cinismo as desculpas de Dunga e de Jorginho, assim como extensíssimas horas de jabulanis voando sem rumo e de vuvuzelas soando como trombetas do juízo final. Quase volto surda. Faz mal não. Não sou aquela que se desmancha em lágrimas e tristeza pela pátria de chuteiras. Saí no lucro: faturei uma boa grana do industrial paulistano que me levou para interpretar o papel de esposa, comi bem, bebi melhor, só não trepei bem porque o cara é de muitas tentativas e de raros êxitos. Fiquei quase tão invicta quanto a defesa da seleção suíça, que estabeleceu na copa o inútil recorde de ficar mil e não sei quantos minutos sem tomar gol. Conheci lugares lindos e outros bem miseráveis, mas confesso que em alguns momentos, principalmente quando os cabeças de bagre do meio campo da amarelinha erravam passes laterais, eu sentia saudades da minha infância e me recordava vividamente de Afonsinho, aquele que mereceu uma canção de Gilberto Gil, "meio-de-campo".

 

Pra falar a verdade, eu não havia nascido no tempo que ele jogou, mas papai, torcedor do Botafogo, narrava apaixonadamente as atuações de Afonsinho e conhecíamos todos os episódios da sua carreira, desde quando foi revelado em 1962 pelo XV de Jaú, a sua estréia no fogão em 1965, sagrando-se bicampeão carioca, bicampeão da Taça Guanabara, campeão da Taça Brasil e do Torneio Rio-SP. No início dos anos 70, auge da ditadura militar, Afonsinho foi "afastado" do time e impedido até de treinar porque usava barbas à Che Guevara, porque era politizado, porque era culto, porque estudava medicina, porque não aceitava ser tratado como mercadoria. Rebelando-se contra a "Lei do Passe" que fazia do jogador de futebol escravo dos empresários e clubes, que tinham o poder absurdo de impedir o livre exercício profissional, Afonsinho travou uma batalha jurídica e política, obtendo a propriedade de seu próprio passe, ou seja, o passe livre. Obviamente que o cartel formado pelos interesses contrariados barrou-lhe a entrada nos grandes clubes. Tudo isso papai nos contava com orgulho, como se se tratasse de um filho e quando papai morreu tocou-me como parte da herança um poster com a foto de Afonsinho e um compacto de vinil com Elis Regina cantando a música de Gil.

 

 

A guardadora de rebanhos

 

O meu olhar é turvo como água suja.

Tenho o costume de rastejar nas sarjetas

sem olhar para os lados

e nem de vez em quando eu olho para trás...

O que eu não vejo a cada instante

é sempre o mesmo que antes eu não tinha visto,

 

Eu não sei se sei dar por isso muito bem...

Não sei ter o sobressalto estúpido

que teria um idoso se, ao falecer,

reparasse que falecera deveras...

Não me sinto falecendo a cada momento

para o eterno tédio do Universo...

 

Creio no Universo como numa abstração,

porque penso nele. Mas não o vejo

porque pensar é compreender...

O Universo se fez exclusivamente para pensarmos nele

não para olharmos para ele e estarmos de acordo...

(Ver apenas é estar doente do cérebro)

 

Eu não tenho sentidos: tenho filosofia...

Se falo na Natureza é porque sei o que ela é,

não porque a amo, e não a amo por isso,

porque quem não ama sempre sabe o que não ama

e sempre sabe por que não ama, e sabe o que é não amar...

 

Não amar é a eterna perspicácia,

e a única inteligência é pensar...

 

 

[de um poema de Fernando Pessoa]

 

 

 

 

 

 

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