edição 41 | julho de
2010
bellini
Foi
a minha primeira copa.
A
voz rouca e distante do rádio trazia para dentro de casa uma angústia
transmitida desde o outro lado do mundo. Eu não sabia onde era a Suécia.
Eu só sabia que era muito longe, pois a voz chegava muito cansada na
pequena sala onde minha família se espremia, rezando, chorando e gritando
junto com o locutor a cada gol do Brasil. Foi
a minha primeira paixão. Meus
olhos não conseguiam enxergar mais ninguém na foto do jornal. Vavá,
Garrincha, Pelé, Nilton Santos, serviam apenas de moldura para aquele
homem louro, de nariz fino, parecendo um estrangeiro perdido no meio
daqueles brasileiros. Bellini. Este era o nome da minha primeira
paixão. Não
havia televisão em 1958. Para ver os jogos, para ver meu ídolo, eu tinha
que chegar cedo nas matinês do Plaza para pegar um bom lugar na fila da
frente. Antes do filme, para quem não sabe, passava sempre um noticiário
que terminava com os lances principais de cada partida. Minhas mãos
gelavam, alguma coisa bulia no pé da minha barriga, meus olhos se enchiam
de lágrimas quando viam o homem mais bonito do mundo.
Bellini. Ele
era o capitão da Seleção Brasileira. Foi ele quem levantou a Taça Jules
Rimet com as duas mãos, num gesto majestoso que até hoje é imitado nos
fins de campeonato em qualquer lugar do mundo. Tinha 28 anos. Vinte a mais
do que eu. Mas o tamanho da minha paixão não respeitava diferenças. Um
dia desses eu vi uma foto do Sr. Hideraldo Luiz Bellini. Não reconheci, a
princípio, o meu ídolo de 58. Mas à medida que os traços embaçados do seu
rosto acendiam a minha memória, sua beleza foi aos poucos se
reconstituindo. Aí eu senti todo o peso da minha antiga paixão. Ela não
havia morrido. Apenas dormia no meu corpo que também já era antigo.
Novamente as mãos gelaram, o pé da barriga revirou-se, os olhos marejaram
novamente. Memória, pra que te quero? ![]() 10 poemas
verde
amarelo mato
no peito sofro
da bola : jogo
no ataque e
na retranca atrás
do morro tem um moço que
não me dá bola : gosta
de brincar
é de boneca pelada batia
o maior bolão marcava
gol de placa inês
no inferno inês
branca inês
má inês
sempre de péssimo humor imagino
inês entrando no inferno :
arredem seus pestes e
o capeta furioso :
espera inês — precisas limpar os pés [de
um poema de Manuel Bandeira] e
agora josefa? com
ou sem vontade vamos
todas para o inferno nem
laura nem beatriz escapam [de
um poema de Carlos Drummond de Andrade] (des)bandeirar vou-me
embora pro horizonte lá
sou amigo do infante aquele
que adiante depois
da ponte da fonte busca
a nascente o poente vou-me
embora pro horizonte não
me pergunte o quadrante nem
me peça que o aponte vou-me
embora pro horizonte (lã onde o sol
alua) [de
um poema de Manuel Bandeira] acordei
com carlos d. no
meio da cama tinha uma pena e
um anjo torto a
bunda — que engraçada (nasci
porto — se cais ancoro-te) fulano
mata
fulana é mito [de
poemas de Carlos Drummond de Andrade] explícita viu-me
como no filme : nu'a
teia a da
aranha caldeira esta
não é uma casa qualquer todas
as janelas são viradas pra lua aqui
é a tapera da velha bruxa a
que tem entre as pernas uma
aranha rubra arrrarrraaaarrrarrraaaaaaaaaaaá papo
de aranha a
palavra puxa o verso desconverso faço
que não vejo ela
volta dá-me
um beijo resistir
quem há de? virgem
santa vão
precisar de um bravo para
exercer tal façanha o
mato cresce e tem onça entre as pernas dessa aranha
futebol
Nunca
me levou ao estádio, o meu pai. Afundava-se no sofá e era tudo. Não me era
permitido perguntar coisa alguma. Às vezes, eu me confundia. As cores das
camisas mudavam. Do meu canto, torcendo pelo time errado até que era tarde
demais: "Qual é o seu problema, menina?". Eu não sabia. Como poderia
saber? Minha mãe irrompia na sala durante o intervalo trazendo mais
cerveja, mais petiscos. Ele não agradecia. Ela perguntava como estava o
jogo. Era fácil saber: quando ruim, socava a própria coxa direita e
soltava um palavrão; quando bom, erguia os braços, dizia o placar e
soltava um palavrão. O time dele estava quase sempre mal. Ele usava uma
outra palavra: crise. Quando conversava com os amigos. Em época de Copa,
era engraçado, ele torcia menos. Não era a mesma paixão. Não socava ou
erguia os braços, não xingava. Sorria quando sim, balançava a cabeça
quando não. Afundado no sofá, sem se importar que eu perguntasse isso ou
aquilo. Era quando eu pedia: "Me leva ao estádio, pai?". E ele: "Claro".
Mas, depois, estranhamente, não se falava mais
nisso.
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