edição 3 | dezembro de 2005
solidão

 

pequei novamente, padre 
bárbara barros

Pequei novamente, padre. O senhor sabe que quando eu morrer, vou diretamente pro inferno, portanto, não sei porque sempre venho aqui contar essas barbaridades que cometo por causa de meu ofício. Acho que volto aqui pra abusar de sua paciência, porque assim me sinto mais aliviado, é um peso que sai dos ombros.

 

O senhor sabe que não escolhi essa profissão de matador, sempre penso que foi ela que me escolheu, pois tem vezes, quando faço um serviço caprichado, sinto que estou fazendo uma limpeza nesse mundo, parece até uma missão. Já lhe contei dos safados que tenho mandado pro outro mundo. Ainda nem rezei todas as penitências do mês passado, mês movimentado, um político e um traficante na mesma semana. Ao menos o traficante era gente boa, ajudava a vizinhança na comunidade, fazia alguma coisa pelos pobres. Mas o senhor sabe que eu não escolho meus alvos, nem faço perguntas, nem quero saber dos motivos. Nesse ramo a gente deve ter critérios e princípios.

 

Mas padre, pequei de novo e dessa vez tô incomodado, esse serviço não tá me saindo da cabeça, é que dessa vez foi mulher, padre. Eu não gosto nem de bater em mulher, a não ser quando pedem, quanto mais fazer um trabalho desses. Já fiquei incomodado quando aceitei essa encomenda, por telefone, pois dessa vez foi uma mulher quem me contratou. Aquela voz rouca e aveludada me pediu pra fazer uma execução e fiquei ainda mais intrigado quando ela disse que a vítima era outra mulher. Mas o senhor já me conhece, padre, não escolho meus alvos e gosto de fazer tudo muito bem feito. Sou um profissional. Tenho um nome no mercado.

 

Antes de investigar esse alvo, pra achar o momento certo do abate, comecei a me perguntar que motivo teria essa contratante misteriosa. Provavelmente seria ciúme, disputa por homem, ou até por mulher, sabe-se lá. Podia ser por inveja. Talvez, motivo de herança. De repente uma queima de arquivo. Ou seria por grana mesmo, algum seguro de vida milionário. Chantagem. Olha, padre, nesse negócio, os motivos são os mais variados, acredite. 

 

Quando comecei a vigiar a casa, para estudar seus hábitos, primeiro me impressionou o fato dela morar sozinha. Depois me chamou a atenção sua aparência, de uma beleza natural, dessa que não precisa de maquilagem, sua silhueta esguia, sua elegância clássica. Não tinha nem trinta anos, era muito discreta na aparência, muito reservada mesmo. Não tinha amigos, não recebia visitas nem visitava ninguém. Apesar de bonita, não tinha namorado nem saía para festas e baladas. Apenas aos sábados dava uma espécie de ronda pelas livrarias e sebos da cidade, assim aumentava as fileiras de livros nas estantes da casa. Aos domingos à tarde ela freqüentava um desses bingos eletrônicos, não sei se ganhava ou perdia, mas sua vida social se resumia nisso, veja só.

 

Durante a semana ela saía cedo de casa, passava numa confeitaria da esquina, tomava seu café preto, puro, comprava uns chocolates, muitos chocolates, e seguia para a entrada do edifício onde trabalhava. Não consegui descobrir exatamente o que ela fazia lá, parece-me que era uma importante executiva de uma multinacional ou algo assim. Ela saía ao meio-dia, sempre sozinha, almoçava nos restaurantes ali por perto, gostava de variar, às vezes dava uma olhada nas novidades nas vitrines das lojas ou visitava uma ou outra livraria. E passeava pelas calçadas, usando seus terninhos bem alinhados, cores sóbrias, sempre com os cabelos presos, óculos combinando com o desenho das sombrancelhas, bolsa combinando com os sapatos, enfim, formava um conjunto bonito. A única coisa que não combinava eram aqueles olhos tristes, aquele semblante de quem está longe, em devaneio, como se algo faltasse, praia sem ondas, chopp sem colarinho. No fim da tarde, ao sair do trabalho, ia direto para casa e depois de algum tempo tomava um banho demorado e depois mergulhava em suas leituras, que não raro, passavam da meia-noite. E assim era sua rotina, o cotidiano de uma mulher solitária e comportada.

 

Concluí que a melhor forma de cumprir minha missão, seria dentro de sua casa e para tanto precisava estudar esse ambiente. Na primeira vez que entrei na casa, após ela ir para seu trabalho, notei o bom gosto na decoração, tudo casava com tudo. Na sala havia um conjunto de gravuras de mandalas e também uma série de fotos de túmulos e cruzes de cemitérios. No quarto, sobre o criado-mudo, uns rosários e caixinhas de comprimidos antidepressivos. Pelas paredes, imagens de Buda, Krishna e deuses egípcios. E havia também aquele cheiro no ar. Incenso. Muito incenso. Feito esse primeiro reconhecimento de terreno, depois de cheirar todos os seus perfumes, muitos perfumes, saí da casa, tomando os devidos cuidados para não deixar nenhuma marca, nenhuma impressão. Nesse ofício a gente deve ser assim, muito cauteloso.

 

Resolvi retornar no dia seguinte, queria saber mais dessa moça que, aparentemente, não fazia mal a ninguém. Dessa vez, me demorei vendo seus albuns de fotografias. Boa origem, algumas viagens, formatura, um ex-namorado, que parece que chegou a ser noivo, várias fotos de praças, onde ela gostava de fotografar estátuas e esculturas, fazendo fotos de vários ângulos de uma mesma escultura, coisas desse tipo. Havia ainda um caderno com muitos manuscritos, poemas principalmente, quase sempre falando da morte, de suicídio e coisas assim. Até que gostei.

 

Não resisti e no dia seguinte voltei para bisbilhotar um pouco mais essa vida, cuja data final estava escrita em minhas mãos. Queria encontrar um motivo, embora isso fosse contra minhas regras. Com cuidado fui vasculhando tudo, mas não vi ainda nada que a fizesse merecer essa fatalidade. Sob a cama encontrei apenas umas revistas de homens nus e numa gaveta, várias calcinhas muito bonitas, em estilo erótico, com transparências, desenhos, fendas, penugens e outros enfeites. Acho que ela tinha lá suas fantasias. Remexendo mais um pouco, achei uma caixa com cartas do tal ex-namorado, as quais tive o cuidado de ler em ordem cronológica. As primeiras eram todas muito melosas, com declarações e muitas promessas de amor, algumas até mesmo elogiando as paisagens íntimas da destinatária. Depois de um ano começavam a falar de planos, de juntar as escovas de dentes. Mas depois o namoro foi esfriando, o relacionamento entrou em crise e as declarações passaram a ser reclamações, sobre brigas e as irreconciliáveis diferenças de temperamento e de objetivos. Por fim, a última missiva falava mesmo era de despedida. Enfim, nada demais.

 

Tudo naquela casa era bonito, mas ao mesmo tempo, um pouco triste. Eu já estava puto da vida por não ter achado um motivo pra que alguém quisesse acabar com aquela mulher. Eu já conhecia sua intimidade, já estava me apegando a ela, já estava com vontade era de matar aquela que me contratou, a da voz rouca e aveludada. Mas o senhor sabe, padre, sou um profissional, meus clientes em primeiro lugar, meu nome a zelar, e depois, meu pagamento já estava depositado em minha conta.

Em minhas andanças seguindo-a, notei como seus gestos eram delicados, era graciosa no andar, muito educada e gesticulava de maneira sempre muito suave. Por isso escolhi um método que não fosse cruel e sanguinolento, como das outras vezes. Planejei esperá-la dentro de sua casa, um pouco de éter pressionado de surpresa em suas narinas a faria desmaiar imediatamente e depois uma ingestão induzida com pílulas e barbitúricos, formando um coquetel fatal, fariam o resto. Dormindo, rápido e indolor. Ela não merecia sofrer. E foi assim que aconteceu, padre, agora há pouco, assim que terminei vim direto pra cá, padre. E se estou tremendo assim e com a voz um pouco embargada, é por que depois do serviço feito, vi no criado-mudo um CD, onde estava escrito o nome dela e a palavra "declamações". Coloquei o CD no aparelho e apareceu a filmagem de um evento de poesia em uma livraria. Lá estava ela, de cabelos soltos, declamando seus poemas, com aquela sua voz rouca e aveludada.

 

Bárbara Barros é jornalista de formação, bibliotecária de profissão e escritora por convicção. Publica aqui e ali alguns contos e crônicas. Prepara para breve a publicação de Meus pecados preferidos, coletânea de contos eróticos.

 

 

a moça do tempo e o tempo da moça 
bernadete reutman

Talvez ela fosse bonita, talvez fosse famosa, talvez fosse desejada e admirada. No entanto, a morena alta que todos os dias aparecia na televisão falando sobre a meteorologia em todo o país agora era apenas uma mulher sentada, olhando para as unhas pintadas com esmalte perolado e imaginando o que seria o destino se não fosse o destino. O que seriam das oportunidades que sempre apareciam na vida, tanto as negadas quanto as arrebatadas, seja com correção e ética seja com vileza ou nenhuma preocupação com as conseqüências. Pensava: o que seria de minha vida se em determinado ponto dela eu tivesse tomado decisões diferentes daquelas que tinha tomado?

 

O cheiro sempre a enjoou. Não gostava também da cor leitosa e silente. Aquela brancura que se derretia em si mesma, como um simulacro de inocência vendida, fazia-a sentir-se mal, triste e pequena. Não gostava tampouco do silêncio que era berrado pelos olhos das outras pessoas ali. Pessoas silenciosas como ela, como se o silêncio por encanto pudesse fazê-las serem perdoadas por todas as coisas que porventura tivessem feito à Ana. Pessoas que desconhecia, que nunca tinha visto e que provavelmente nunca mais as veria, quando saísse daquele velório.

 

Ninguém que ela soubesse tinha chegado e ali, os rostos, todos iguais, colavam-se displicentemente nela e tentavam supor em que circunstâncias a morta tinha conhecido a moça do tempo do jornal da noite. Alguns homens esticavam os olhares mais que seus abdômens, no afã de decifrar o corpo que havia por trás das curvas do vestido.

 

Ela soube do suicídio de Ana pela manhã, por Dona Perpedigma. Cochilava pastosamente e o moço que conhecera na boate da véspera estava deitado sobre sua, dela, barriga, bolinando o seu, dele, pênis, quando o telefone tocou. Ela atendeu e a voz grave mas feminina, de que ela suspeitou o cheiro forte de tabaco e o nome da dona, anunciou sem rodeios:

 

- Ana se matou.

 

Ela levantou-se aturdida com a notícia, mal percebendo que o moço, exasperado, reclamava muchochando o movimento brusco e tapava comicamente o pênis com as duas mãos em concha, como se aquilo fosse matéria estranha para ela.

 

- Eu tenho que ir.

 

Abriu o armário e tirou a primeira muda de roupa que encontrou.

 

- Que isso, Mara?

 

- Depois explico.

 

Deu uma olhada rápida no espelho e percebeu que, além de estar saindo de casa sem se pentear, não era mais a adolescente de seios bem desenhados com quem os homens alegavam querer se casar: era a moça do tempo, apenas a moça do tempo. Saiu, percebendo que havia no quarto aquele cheiro inconfundível de sexo e vinho italiano, misturados com o amaciante do lençol.

Na rua, olhou para o céu liso embranquecido de nuvens e pensou que certamente não precisaria das previsões dos institutos para adivinhar como seria o resto do seu dia.

 

Bernadete Reutman começou a escrever por indicação de seu terapeuta reichiano, que julgou que a literatura seria uma excelente válvula de escape para o trauma que carrega desde 16 anos atrás, quando sua irmã, Odete, foi brutalmente assassinada. Segundo Mirna Brunovitch, enfermeira-chefe da clínica de repouso Descanse em Paz, onde Bernadete passou sete anos se tratando, o que mais aprofundou o trauma foi o fato de que o brutal assassinato foi televisionado ao vivo no horário nobre. Solteira, 46, acha toda literatura afrodisíaca e avisa de antemão que está disponível para novos parceiros. Literários, entenda-se. De homem, basta quem a inventou.

 

 

8 poemas 
bianca lafroy


*

É madrugada

(hora híbrida em que a noite se abre para o dia),

moçoilas somam o ganho,

ainda mariposadas 

no teu VITRAL ANDRÓGINO,

Sanctus Januarius (Mês

que inauguro meu corpo

como se tocasse o teu

pela beleza e sangramento

e escrito sob uma lua-unha.

                                        )

San Genaro

Ó, tu, que com dardo de flama

Partes o gelo da minha alma,

Para que ela se lance fremente

Ao mar de sua suprema esperança:

Sempre mais clara e mais sã,

Livre na lei mais amorosa -

Assim exalta ela teus milagres,

Belíssimo Januário!

 

 

 

 

 

*

 

O embrulho líquido,

mergulho abissal no elemento móvel

e FEMMINIELLO.

Anfíbio-fêmea tatuada

No couro

Camuflado na escama prateada.

Tatoo azulada, aureolada,

cintilada que a trans

forma em menino-peixe.

 

 

 

 

 

*

 

Em segredo sujeita o herói

(travestido do que sonha)

a sua trama, desvio

e TRANS

(Ícaro inventou a queda

para oferecer seu corpo

à Iemanjá)

FORMAÇÃO em heroína.

 

 

 

 

 

*

 

A SEGUNDA NATUREZA

(respiração em bolhas,

toque gelado dos seres

liquefeitos e entregues

à diversidade e afeitos

à algazarra das algas

e ramas; entremeadas,

enganchadas, medusadas

nos na nas no em), afoita,

imprescindível

 

 

 

 

 

*

 

A queda do corpo

dissipa e dissimula

a face, flâmula trêmula,

no LAGO ESPELHANTE

de Apolo

:

Herói

devolvido (armadura

de músculos)

 

ao fundo, ao chão.

 

 

 

 

 

*

 

A leveza aniquila superfícies.

Leveza-rarefação,

corpo envolto em bolhas de ar

sob um céu aquoso,

no limiar de mundos

turvado e oxigenado

(único som é próximo

do estalido

de hímen de homem).

À tona, lama na boca,

a LÍNGUA LETAL de um dialeto,

o lótus aflora

(meu nome de guerra).

 

 

 

 

 

*

 

No céu de centauro,

égua mítica, ÉGUA GUIA,

de asas e ancas velozes

e dedos de Lilith;

mil e uma noite

na ponta da língua,

a órbita zen, o vôo cego

no dorso, arcabouço de luz,

ao centro do poço negro,

do calabouço cósmico

sem janelas,

no céu de Centauro,

bilhões de sóis

acendem.

 

 

 

 

 

*

 

Das metamorfoses,
refazimentos,
sou aquele que não consta
na galeria de Ovídio,
Didimarcos muito menos,
Nem em Nicandro
ou Antígono.
Sou mais perigosa que os clássicos,
Sou obra FORA DA ESTANTE
(um encaixe na família).
Transformo o nada e o morno,
dissolvendo invólucros do desespero.

 

 

 

 


*

 

faça sua oração ao buda
esculpido no ecstasy.
Vire a página. Ela
sabe tirar proveito
da sua lordose
no VENTRE
JESUS
.

 

 

 

Bianca Lafroy (Curitiba/PR, 1975). É travesti, poeta e ficcionista. Seu livro Embrulho líquido já coleciona admiradores e promessas de publicação. Trabalha nas ruas de Curitiba.

 


boa noite, solidão   
cláudia villela de andrade

Sala de bate-papo número 5. Marquei encontro aqui com Outono. Ele deve chegar às 2. Ainda faltam alguns minutos. Vou até a sala 3 ver se Torpedão está por lá. Ontem ele estava meio pra baixo. Havia brigado com o irmão. Coitado. Não se dão e a mãe sempre apóia o outro. A conexão hoje está péssima. Não agüento esse provedor. Vou passar e-mail reclamando. Isso é um abuso. Um serviço tão caro não pode ficar assim.

Não... Aqui não. Ele não veio. Torpedão deve estar dormindo. Vou escrever o e-mail de reclamação. Até lá, Outono chega na sala e podemos engrenar um bom papo. Vou responder àquele e-mail do meu grupo de amigos virtuais. Tá pensando o quê? Não vou ficar com o desaforo daquela moça atravessado na minha garganta. Vou responder à altura. Ela vai ficar fula da vida, azar. Esse Outlook! Hoje, não quer abrir. Trava a todo momento. Deve ter sido aquele e-mail do Xerife que tinha scripts sujos. Cachorro! Não sabe fazer scripts e fica mandando essas porcarias pra gente. Vou ter que passar o Norton. Ontem recebi uns quatro vírus. Usuário desconhecido. Por que será que tem gente ruim assim? Ah, esqueci, preciso responder esse questionário de pesquisa. Vão dar prêmios para os cem primeiros que chegarem. Nossa! Quanto compromisso eu tenho essa noite! E esse MSN que não pára de me chamar. Não vou autorizar, não. Quem será agora? Ah, é Princesa. Conheci-a numa lista de obesidade. Ela perdeu quinze quilos. Estou tão gorda! Saí da lista de vergonha. Também, ninguém me conhece. Não sei porque fiquei com vergonha. Era só ter mandado outra fotografia de alguém que lembrasse a Julia Robert. Quem vai saber?

 

Tenho que trocar minha senha no provedor. Já faz algum tempo que não troco. Ai, esqueci de ver meu saldo hoje. Vou ligar a impressora. Ontem ela não funcionava. Tenho que desinstalar e reinstalar o programa. Deu defeito. Arquivos corrompidos. Ainda tenho que ir naquele site dos discos voadores. Ontem escrevi pra eles. Imagina! ET em Barra Dura. Só se for o prefeito de lá. Ele, sim. Parece um ET. E a foto que mostraram? Dava pra ver que era montagem. Tenho que responder o cartão de Fada Madrinha. Ela é tão delicada!

 

Ihhh, o Outono. Esqueci dele. Até agora nada. Que engraçado esse cara. Diz umas coisas pra mim, que deve dizer pra todas. Mas, é bom ouvir. Mesmo que seja mentira. Ele quer se encontrar comigo, mas está sempre adiando, inventando um problema. Deve ser casado. E daí? Eu também sou. A mulher dele deve estar roncando, como ronca o meu marido no sofá da sala. Ronca e baba. É um chato. Há tempos a gente não transa e agora nem conversa mais. Ainda bem que existe a internet. Saio  daqui com a sensação de ter conversado com o mundo inteiro.

 

Nossa! Acabo de me lembrar: tenho que dar a receita de camarão pra uma amiga francesa. Fiquei de enviar ontem, mas são tantos os compromissos que tenho, me esqueci. E aquela fofoqueira? Foi contar nosso papo pra outra. Deu fofoca. As palavras escritas são diferentes da linguagem falada. Aqui não nos olhamos nos olhos e as conversas podem ser mal-interpretadas. As entonações, os gestos, não existem. Isso é perigoso. Em todo grupo que freqüentei, deu confusão por isso. Falta o olho no olho. Depois, os níveis sociais são muito diferentes e certamente isso entra em choque na hora de se esclarecer algo. Não faz mal. O melhor é trocar de grupo e começar tudo de novo. Uma vez, num grupo de cozinha, inventei uma receita nova. Uma outra componente, dois dias depois, disse que a minha receita deu dor de barriga no marido dela. Ora, bolas. A minha mistura? Não seriam os ingredientes dela que estavam vencidos ou estragados? Ou o marido que estava predisposto à doença? Não. Foi a minha receita, ela disse. É claro que brigamos. Também não tenho sangue de barata.

 

Uma tal de Foca uma vez me contou que conheceu o namorado na net. Eram felizes, mas o tal namorado era viciado em computador. Quando ela saía, ele conectava. Um dia ela chegou em casa, pegou o micro e quebrou-o. Espatifou-o inteirinho, no chão. Sabe o que aconteceu? Ele fez a mala e foi embora. Disse que sem a net era impossível viver. Ela chorou, mas comprou outro computador e começou a navegar de novo. Encontrou com ele novamente na sala de bate-papo que freqüentavam e voltaram a namorar. Só que cada um na sua casa e no seu computador. Às vezes, encontravam-se pessoalmente. Mas brigavam  muito. Aí, íam pra casa, faziam a conexão e pronto. Tudo em  paz.

 

Nossa! Três e meia da manhã. Achei o Torpedão! O quê? De baixo astral de novo? Manda esse seu irmão catar coquinho no asfalto! Vou indo, tá? Preciso encontrar um amigo em outra sala. Tchau, até amanhã. Te cuida, hem?

 

Aqui está: Outono. Fala, meu amor virtual, fala ao meu ouvido tudo o que quero ouvir hoje. Que coisa boa é sonhar com você. Que coisa boa é imaginar o que você é,  mesmo que não seja. Pedaço da minha noite. Pedaço do meu mundo inteiro. Hora em que a minha imaginação pode ser manipulada e tornar-se realidade momentânea. Dama do meu jogo de xadrez que derruba todas as peças do meu tabuleiro. De você eu só ouço delicadezas. Você só me faz rir. Só me conta coisas boas. Nenhum problema. Nenhum desaforo. Só descansa o meu coração. Só me manda beijos. Só me encanta. Pena que você só exista dentro dessa tela. E o meu medo de tirá-lo daí é justamente esse. O medo de você não ser mais o meu Outono. O desfolhar seco e amarelo de uma fotografia colorida que brilha na minha mente e acompanha o meu coração nas horas em que penso estar sozinha.

Boa noite, Outono!

 

Cláudia Villela de Andrade (Rio de Janeiro, 1956). Professora, escritora e poeta. Recebeu vários prêmios literários, destacando-se o 70º lugar pela Academia Brasileira de Letras, no Concurso de Redação para Professores de 2001, entre 6032 textos inscritos, fazendo parte da coletânea Devemos ver com olhos livres (frase de Oswald de Andrade). Fundou o Grupo Virtual Pax Poesis Encantada e publicou dois e-books na Internet, um deles de literatura infantil: Brincadeira de gente grande. Organizou e participou da antologia poética do grupo, DiVersos (Editora Scortecci, 2002) e da antologia de prosa, Com licença da palavra (Editora Scortecci, 2003).

 

 

teatro das letras   
fernanda bandeiras

Eu só queria ir ao teatro. Uma peça longa, calma, de uma voz só. Outros personagens derrubariam o encanto, a serenidade. Mas já era tarde para se comprar um ingresso. O espetáculo começaria dali há trinta minutos. Valia a pena tentar. Sou um homem das letras? Não, sou mais bonito no espelho. Arrumei-me rápido. Tinha que chegar na bilheteria com as notas na mão e o pescoço desamparado. Se me negassem a entrada, cortaria-o e voltaria para casa mais leve. Se eu entrasse na peça, minha cabeça ficaria mais leve e a minha vida cortada. Só precisava de um casaco e, no caminho, um espelho. Já falei, sou mais bonito no espelho. Tranquei o apartamento como se tranca o passado. A vida se manteve calma, lá dentro, enquanto meu pescoço tomava um ar. O teatro era duas quadras e meia seguindo no sentido para cima, sem fazer curvas à direita. Tinha que correr um pouco. Lembro-me que gostei da idéia. Refrescaria também meus olhos.

 

Como de costume, era de noite. Meu bairro não é um dos mais calmos. Corri do mesmo jeito. Não queria saber da violência urbana, afinal sou um homem formado por letras. Não, enganei-me. As pessoas que estavam na rua estavam calmas, tranqüilas, rindo, como o meu passado trancado. Os bares, por sua vez, estavam cheios, amontoados, quentes, como o meu pescoço enrijecido. Minha barba, nem muito grande e nem muito espessa, deleitava-se com o frescor da noite e o frio de julho. Tenho que confessar que ela é um pouco arredia ao calor e ao vermelho. Acho que é por ficar na parte de cima do... ah, vocês já sabem. Naquele dia, a calçada estava meio torta, indo e voltando, confundindo meus pés. Eles tinham que ficar voltando e indo, como sempre, mas acompanhando a calçada. Tinha que revezar entre olhar para o chão e olhar para o céu. O primeiro para eu não trocar o ritmo. O segundo por ser um costume bobo. Minha jaqueta, de couro e marrom, ricocheteava-se nas minhas costas. Elas brigavam insistentemente, sem parar e sem culpa. Minhas pernas, seguindo o frenético e pontual ritmo de meus pés, cansavam. Duas quadras, para o meu pulmão, eram duas léguas. Mas o problema era a meia quadra restante.

 

Cheguei sufocado na bilheteria. Peguei as notas amassadas, desamparei meu pescoço e sorri. Um sorriso falso, seco, nervoso. Existia a possibilidade de dali há alguns segundos eu não mais ter dentes. Aliás, teria, mas o chão não responde à simpatia. Baforei um pouco no vidro que me separava do vendedor. Vi o meu reflexo abafado, torto, opaco. Sabia! que era só no espelho que eu era mais bonito. O vidro gosta de mentir, provoca a sensação de proteção quando o deixa desprotegido do principal perigo: a visão. O homem, calvo e brilhante, vendeu-me a minha vida cortada. Pelo menos, teria a companhia do meu carrasco, do ator. Pela fila que não tinha para entrar, percebi que a dor ia ser mais forte do que imaginava. E começou também mais cedo do que eu esperava.

 

Ainda me restavam uns cinco minutos antes de começar a tortura, e por quê não?, o espetáculo. Minha bexiga pedia socorro para tirá-la da dor que é ser uma prisão. A bexiga é um dos órgãos mais solidários, não? Não agüenta prender, sente dor, repulsa. Ela gosta de soltar, libertar o que fica parado em suas paredes. Concluí que eu deveria seguir seu exemplo e ser solidário, como ela. Deveria dar o prazer à bexiga de libertar o que segurava. Fui ao banheiro e foi onde vi. Um espelho grande estava à minha espera. Meu reflexo, pelo que vi, não gostou muito desse encontro. Eu sou um homem das letras?, ele me perguntou. Como você pode perguntar isso para mim? Confesso que foi o máximo que eu poderia pensar. Sim, eu sei, poderia ter falado que não, eu era mais bonito no espelho, mas era ele que estava me questionando! Não me culpem! Mas, no momento, eu não poderia lidar com aquilo. Eu tinha que ter minha vida cortada. Eu paguei por isso!

 

O primeiro apito avisando que o espetáculo iria começar já estava no palco. Entrei e procurei meu assento, minha cadeira. Era de numeração ímpar, como o meu pescoço. Achei-a. Por precaução, procurei por fios que poderiam estar ligados a ela. Ufa! não os achei. Mas como eu sou bobo! Minha vida vai ser cortada, não tostada! Eu paguei por isso! O segundo apito fez companhia ao primeiro. Como eles ficam irritantes juntos. A luz parece ter concordado comigo e saiu. E as cortinas se abriram.

 

Minha tortura começou branda e suave. Só uma pessoa falando, despejando as letras, as palavras. Cuspindo-as como pregos. Eu, da cadeira, desviava. Eu não podia deixar ser atingido, tinha que desviar. Eu sei que eu tinha pagado por aquilo, mas não tinha meios para agüentar aqueles objetos frios secos e pontiagudos perfurando minha pele grande lisa quente. Como ele podia continuar com aquilo? Ele nem se importava. Não queria saber quem seria atingido por sua ingênua simulação de algo tão pesado e complexo. Era apenas o suporte, não a causa. E continuava cuspindo de forma constrangedora. E eu desviando. Mas, calma aí! Eu paguei para ele cortar minha vida, não minha pele! Parei de desviar. Sentia os projéteis me atingirem e passarem. Prestei atenção em cada um, sem desviar. Minha pele estava intacta.

 

As duas horas passaram voando, como os pregos. Os vãos que os cortes fizeram em minha vida permitiram uma leveza branda. Caminhei sossegado, sem preocupações, com menos vida para sustentar. Aconteceu o contrário do que eu imaginava. Minha cabeça ficou mais pesada por ter comprado as entradas. Não tinha mais que correr para voltar para minha casa. Meu passado estava seguro lá, rindo e se divertindo. E eu mais leve. Andei pelas calçadas e estranhei. O ritmo delas estava igual aos dos meus pés. A rua estava tranqüila. As pessoas já não estavam mais por lá, nem os bares. Fui descendo, voltando para casa. Minhas pernas relaxavam. Minha barba deleitava-se. Meu casaco estava calmo. Foi quando eu a encontrei, subindo pelo lado oposto ao meu.

 

Ela estava diferente. Acho que foi porque deixei meu passado em casa. Cumprimentei-a. Comigo está tudo bem. Não, não, acabei de voltar do teatro. É, realmente, as noites nessa época do ano são mais frescas. Por quê será que nunca encontramos a pessoa interessante no momento certo? Ela era vazia para aquela hora. A conversa já estava ficando chata, quando eu senti falta do meu passado. Ele a faria ficar tão mais completa. Mas, não. Pode deixar, eu te ligo. E foi andando, sorrindo. Estúpida! Acho que ela nem percebeu a ausência da minha vida. Ela nem deve ter percebido a ausência do meu passado!, como pode? E eu me preocupando...

 

Continuei andando, pensando em quanto minha vida estava completa agora. Sim, completa! Faz parte dela ser perfurada de vez em quando. Ela espera e anseia por esse momento. Caminhei as duas quadras e meia como se fossem jardas. Abri a porta e senti o meu passado. Abafado, sufocante, solitário, dependente. Senti-me mal. Não coincidia com a minha vida. Parecia que eram antagônicos, completos estranhos. Meu coração ficou no meio do choque, comprimido, angustiado. Não agüentava aquela colisão. Aliás, não a esperava. Queria que o passado nunca tivesse ficado trancado. Ou, se ficasse, que abrisse as janelas!

 

Fernanda Bandeiras. Casada há 8 meses, teve o fruto de seu amor antes da bênção da Igreja, José, atualmente com um ano e 4 meses. Formada em Psicologia, passa os dias treinando com seu filho o dia-a-dia da profissão: ele deitado, ela analisando. Escuta rock progressivo e tem uma coleção de filmes de terror de dar inveja a qualquer cinéfilo. Quando morrer, quer passar a José sua obra literária; sua coleção de filmes morrerá com ela.

 

nossa canção   
gladys gamba

[solidão é lava que cobre tudo] a porra da música ecoa na cabeça enquanto os dentes travam nesse transe. puta transe imbecil. vou ter uma parada cardíaca, eu sei. nada do eu faço dá certo, mesmo. por que seria diferente agora? não é mesmo, sua burrinha? não é mesmo? não consigo me concentrar nem... para me responsabilizar. delito. o que não sai da mente, e nem talvez do coração, nem diante desse caos orgânico, é a penúltima. a dor da perda. a dor de fechar a porta e saber que ela nunca mais será aberta.
não, para a mesma pessoa.

[amargura em minha boca sorri seus dentes de chumbo] filho da puta. filho de uma puta. filho de uma enorme, imensa e gigantesca puta. como é que você pôde ter coragem de fazer isso com nós dois? desgraçado. você acaba de detonar com o casamento do século. você acaba de foder com o mundo, apenas porque veio programado para foder, e foder, e foder. o tempo todo, todo o tempo. como um animal qualquer, quando, não: você não era um animal qualquer. era o animal que eu escolhi para amar. ou meu coração escolheu...
na altura dos acontecimentos, você acha que eu posso dar importância a isso?
seu grandessíssimo filho de uma puta.

[solidão, palavra cavada no coração] você só fodeu com o mundo. e com o mundo todo. só isso. e com o meu mundo, em particular. e tudo por causa de xotas. de xotas e mais xotas, para a sua impávida, porém inoperante, já que por ora apenas imaginária, coleção de xotas. ou havia algo mais ali, além delas? pois deixe eu te dizer uma coisa, seu bastardinho de merda: você só tem xotas imaginárias na sua coleção de xotas. são xotas de ontem. não são xotas eternas, e você jamais poderá tocá-las novamente. nenhuma delas.
e se suas donas não conversavam com você, que dirá você de suas xotas?
que direi eu?
diga-me.
lamber? não. não pode. nenhuma.
você vive de pau duro de lembrança.

[resignado e mudo] eu devia te processar por uso indevido da minha imagem. por todas as vezes que você precisou pensar em mim para gozar. e se não tenho provas, não importa. te processo por perdas e danos. você levou minha alma no dia em que saiu.
sem alma, sem existência.
e na inexistência tudo é provável.

[no compasso da desilusão] ah, você achou que ia ficar tudo por isso mesmo? eu, nessa viagem de merda, talvez sem retorno, e você aí sentado como se fosse um monge leitor de mantras? e muito provavelmente, em seu mundo, os mantras se traduzindo em xotas? se você pensou que tudo estava acabado... você se enganou.
nós apenas começamos. e se você vivia sozinho até então, de suas duras lembranças, na acepção que mais lhe aprouver, deixe-me dizer, filho-da-puta:

[desilusão] você não está sentado em canto algum, não é monge e não está sozinho. resolvi fazer companhia a você. não porta afora, porque já não creio que ela exista mais. mas digamos que, como aqueles xamãs, eu também possa atravessar paredes? e dar de cara com você no lugar em que eu desejar?
não esperava por essa, não bad boy? nem eu.

[desilusão] você mentiu para mim. você sempre mentiu para mim, porque prometeu que nunca me deixaria. e deixou. você me deixou. como se eu pudesse ser deixada. você nem parou para pensar no que aconteceria se eu fosse deixada, parou?

[danço eu, dança você] que tipo de amor confesso é esse que não sabe a falta que fez? você sabe se você mesmo existiu, realmente? ou tudo não passou de farsa? a mesma farsa que fez de você um andarilho atrás de xotas e poemas. poemas são letras solitárias. são só versos atrás de rimas.
de cadências e metáforas. de alguma imagem que conte da pedra filosofal?

[a dança da solidão] negativo, meu querido: xotas são buracos solitários, e pouca gente lê poemas.

 

Gladys Gamba nasceu em Ghana e vive por gana. É aspirante à independência e liberdade de expressão. Em todos os sentidos.

 

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