edição 3
| dezembro de 2005
pequei novamente, padre Pequei
novamente, padre. O senhor sabe que quando eu morrer, vou diretamente
pro inferno, portanto, não sei porque sempre venho aqui contar essas
barbaridades que cometo por causa de meu ofício. Acho que volto aqui
pra abusar de sua paciência, porque assim me sinto mais aliviado,
é um peso que sai dos ombros. O
senhor sabe que não escolhi essa profissão de matador, sempre penso
que foi ela que me escolheu, pois tem vezes, quando faço um serviço
caprichado, sinto que estou fazendo uma limpeza nesse mundo, parece
até uma missão. Já lhe contei dos safados que tenho mandado pro outro
mundo. Ainda nem rezei todas as penitências do mês passado, mês movimentado,
um político e um traficante na mesma semana. Ao menos o traficante
era gente boa, ajudava a vizinhança na comunidade, fazia alguma coisa
pelos pobres. Mas o senhor sabe que eu não escolho meus alvos, nem
faço perguntas, nem quero saber dos motivos. Nesse ramo a gente deve
ter critérios e princípios. Mas
padre, pequei de novo e dessa vez tô incomodado, esse serviço não
tá me saindo da cabeça, é que dessa vez foi mulher, padre. Eu não
gosto nem de bater em mulher, a não ser quando pedem, quanto mais
fazer um trabalho desses. Já fiquei incomodado quando aceitei essa
encomenda, por telefone, pois dessa vez foi uma mulher quem me contratou.
Aquela voz rouca e aveludada me pediu pra fazer uma execução e fiquei
ainda mais intrigado quando ela disse que a vítima era outra mulher.
Mas o senhor já me conhece, padre, não escolho meus alvos e gosto
de fazer tudo muito bem feito. Sou um profissional. Tenho um nome
no mercado. Antes
de investigar esse alvo, pra achar o momento certo do abate, comecei
a me perguntar que motivo teria essa contratante misteriosa. Provavelmente
seria ciúme, disputa por homem, ou até por mulher, sabe-se lá. Podia
ser por inveja. Talvez, motivo de herança. De repente uma queima de
arquivo. Ou seria por grana mesmo, algum seguro de vida milionário.
Chantagem. Olha, padre, nesse negócio, os motivos são os mais variados,
acredite. Quando
comecei a vigiar a casa, para estudar seus hábitos, primeiro me impressionou
o fato dela morar sozinha. Depois me chamou a atenção sua aparência,
de uma beleza natural, dessa que não precisa de maquilagem, sua silhueta
esguia, sua elegância clássica. Não tinha nem trinta anos, era muito
discreta na aparência, muito reservada mesmo. Não tinha amigos, não
recebia visitas nem visitava ninguém. Apesar de bonita, não tinha
namorado nem saía para festas e baladas. Apenas aos sábados dava uma
espécie de ronda pelas livrarias e sebos da cidade, assim aumentava
as fileiras de livros nas estantes da casa. Aos domingos à tarde ela
freqüentava um desses bingos eletrônicos, não sei se ganhava ou perdia,
mas sua vida social se resumia nisso, veja só. Durante
a semana ela saía cedo de casa, passava numa confeitaria da esquina,
tomava seu café preto, puro, comprava uns chocolates, muitos chocolates,
e seguia para a entrada do edifício onde trabalhava. Não consegui
descobrir exatamente o que ela fazia lá, parece-me que era uma importante
executiva de uma multinacional ou algo assim. Ela saía ao meio-dia,
sempre sozinha, almoçava nos restaurantes ali por perto, gostava de
variar, às vezes dava uma olhada nas novidades nas vitrines das lojas
ou visitava uma ou outra livraria. E passeava pelas calçadas, usando
seus terninhos bem alinhados, cores sóbrias, sempre com os cabelos
presos, óculos combinando com o desenho das sombrancelhas, bolsa combinando
com os sapatos, enfim, formava um conjunto bonito. A única coisa que
não combinava eram aqueles olhos tristes, aquele semblante de quem
está longe, em devaneio, como se algo faltasse, praia sem ondas, chopp
sem colarinho. No fim da tarde, ao sair do trabalho, ia direto para
casa e depois de algum tempo tomava um banho demorado e depois mergulhava
em suas leituras, que não raro, passavam da meia-noite. E assim era
sua rotina, o cotidiano de uma mulher solitária e comportada. Concluí
que a melhor forma de cumprir minha missão, seria dentro de sua casa
e para tanto precisava estudar esse ambiente. Na primeira vez que
entrei na casa, após ela ir para seu trabalho, notei o bom gosto na
decoração, tudo casava com tudo. Na sala havia um conjunto de gravuras
de mandalas e também uma série de fotos de túmulos e cruzes de cemitérios.
No quarto, sobre o criado-mudo, uns rosários e caixinhas de comprimidos
antidepressivos. Pelas paredes, imagens de Buda, Krishna e deuses
egípcios. E havia também aquele cheiro no ar. Incenso. Muito incenso.
Feito esse primeiro reconhecimento de terreno, depois de cheirar todos
os seus perfumes, muitos perfumes, saí da casa, tomando os devidos
cuidados para não deixar nenhuma marca, nenhuma impressão. Nesse ofício
a gente deve ser assim, muito cauteloso. Resolvi
retornar no dia seguinte, queria saber mais dessa moça que, aparentemente,
não fazia mal a ninguém. Dessa vez, me demorei vendo seus albuns de
fotografias. Boa origem, algumas viagens, formatura, um ex-namorado,
que parece que chegou a ser noivo, várias fotos de praças, onde ela
gostava de fotografar estátuas e esculturas, fazendo fotos de vários
ângulos de uma mesma escultura, coisas desse tipo. Havia ainda um
caderno com muitos manuscritos, poemas principalmente, quase sempre
falando da morte, de suicídio e coisas assim. Até que gostei. Não
resisti e no dia seguinte voltei para bisbilhotar um pouco mais essa
vida, cuja data final estava escrita em minhas mãos. Queria encontrar
um motivo, embora isso fosse contra minhas regras. Com cuidado fui
vasculhando tudo, mas não vi ainda nada que a fizesse merecer essa
fatalidade. Sob a cama encontrei apenas umas revistas de homens nus
e numa gaveta, várias calcinhas muito bonitas, em estilo erótico,
com transparências, desenhos, fendas, penugens e outros enfeites.
Acho que ela tinha lá suas fantasias. Remexendo mais um pouco, achei
uma caixa com cartas do tal ex-namorado, as quais tive o cuidado de
ler em ordem cronológica. As primeiras eram todas muito melosas, com
declarações e muitas promessas de amor, algumas até mesmo elogiando
as paisagens íntimas da destinatária. Depois de um ano começavam a
falar de planos, de juntar as escovas de dentes. Mas depois o namoro
foi esfriando, o relacionamento entrou em crise e as declarações passaram
a ser reclamações, sobre brigas e as irreconciliáveis diferenças de
temperamento e de objetivos. Por fim, a última missiva falava mesmo
era de despedida. Enfim, nada demais. Tudo
naquela casa era bonito, mas ao mesmo tempo, um pouco triste. Eu já
estava puto da vida por não ter achado um motivo pra que alguém quisesse
acabar com aquela mulher. Eu já conhecia sua intimidade, já estava
me apegando a ela, já estava com vontade era de matar aquela que me
contratou, a da voz rouca e aveludada. Mas o senhor sabe, padre, sou
um profissional, meus clientes em primeiro lugar, meu nome a zelar,
e depois, meu pagamento já estava depositado em minha conta. Em minhas andanças seguindo-a, notei como seus gestos eram delicados, era graciosa no andar, muito educada e gesticulava de maneira sempre muito suave. Por isso escolhi um método que não fosse cruel e sanguinolento, como das outras vezes. Planejei esperá-la dentro de sua casa, um pouco de éter pressionado de surpresa em suas narinas a faria desmaiar imediatamente e depois uma ingestão induzida com pílulas e barbitúricos, formando um coquetel fatal, fariam o resto. Dormindo, rápido e indolor. Ela não merecia sofrer. E foi assim que aconteceu, padre, agora há pouco, assim que terminei vim direto pra cá, padre. E se estou tremendo assim e com a voz um pouco embargada, é por que depois do serviço feito, vi no criado-mudo um CD, onde estava escrito o nome dela e a palavra "declamações". Coloquei o CD no aparelho e apareceu a filmagem de um evento de poesia em uma livraria. Lá estava ela, de cabelos soltos, declamando seus poemas, com aquela sua voz rouca e aveludada.
Bárbara Barros é jornalista de formação, bibliotecária de profissão e escritora por convicção. Publica aqui e ali alguns contos e crônicas. Prepara para breve a publicação de Meus pecados preferidos, coletânea de contos eróticos.
a moça
do tempo e o tempo da moça Talvez ela fosse bonita, talvez fosse famosa, talvez fosse desejada e admirada. No entanto, a morena alta que todos os dias aparecia na televisão falando sobre a meteorologia em todo o país agora era apenas uma mulher sentada, olhando para as unhas pintadas com esmalte perolado e imaginando o que seria o destino se não fosse o destino. O que seriam das oportunidades que sempre apareciam na vida, tanto as negadas quanto as arrebatadas, seja com correção e ética seja com vileza ou nenhuma preocupação com as conseqüências. Pensava: o que seria de minha vida se em determinado ponto dela eu tivesse tomado decisões diferentes daquelas que tinha tomado? O
cheiro sempre a enjoou. Não gostava também da cor leitosa e silente.
Aquela brancura que se derretia em si mesma, como um simulacro de
inocência vendida, fazia-a sentir-se mal, triste e pequena. Não gostava
tampouco do silêncio que era berrado pelos olhos das outras pessoas ali.
Pessoas silenciosas como ela, como se o silêncio por encanto pudesse
fazê-las serem perdoadas por todas as coisas que porventura tivessem feito
à Ana. Pessoas que desconhecia, que nunca tinha visto e que provavelmente
nunca mais as veria, quando saísse daquele velório. Ninguém
que ela soubesse tinha chegado e ali, os rostos, todos iguais, colavam-se
displicentemente nela e tentavam supor em que circunstâncias a morta tinha
conhecido a moça do tempo do jornal da noite. Alguns homens esticavam os
olhares mais que seus abdômens, no afã de decifrar o corpo que havia por
trás das curvas do vestido. Ela
soube do suicídio de Ana pela manhã, por Dona Perpedigma. Cochilava
pastosamente e o moço que conhecera na boate da véspera estava deitado
sobre sua, dela, barriga, bolinando o seu, dele, pênis, quando o telefone
tocou. Ela atendeu e a voz grave mas feminina, de que ela suspeitou o
cheiro forte de tabaco e o nome da dona, anunciou sem
rodeios: -
Ana se matou. Ela
levantou-se aturdida com a notícia, mal percebendo que o moço, exasperado,
reclamava muchochando o movimento brusco e tapava comicamente o pênis com
as duas mãos em concha, como se aquilo fosse matéria estranha para
ela. -
Eu tenho que ir. Abriu
o armário e tirou a primeira muda de roupa que
encontrou. -
Que isso, Mara? -
Depois explico. Deu
uma olhada rápida no espelho e percebeu que, além de estar saindo de casa
sem se pentear, não era mais a adolescente de seios bem desenhados com
quem os homens alegavam querer se casar: era a moça do tempo, apenas a
moça do tempo. Saiu, percebendo que havia no quarto aquele cheiro
inconfundível de sexo e vinho italiano, misturados com o amaciante do
lençol. Na rua, olhou para o céu liso embranquecido de nuvens e pensou que certamente não precisaria das previsões dos institutos para adivinhar como seria o resto do seu dia.
Bernadete Reutman começou a escrever por indicação de seu terapeuta reichiano, que julgou que a literatura seria uma excelente válvula de escape para o trauma que carrega desde 16 anos atrás, quando sua irmã, Odete, foi brutalmente assassinada. Segundo Mirna Brunovitch, enfermeira-chefe da clínica de repouso Descanse em Paz, onde Bernadete passou sete anos se tratando, o que mais aprofundou o trauma foi o fato de que o brutal assassinato foi televisionado ao vivo no horário nobre. Solteira, 46, acha toda literatura afrodisíaca e avisa de antemão que está disponível para novos parceiros. Literários, entenda-se. De homem, basta quem a inventou.
8 poemas
É
madrugada (hora
híbrida em que a noite se abre para o dia), moçoilas
somam o ganho, ainda
mariposadas
no
teu VITRAL ANDRÓGINO,
Sanctus
Januarius
(Mês que
inauguro meu corpo como
se tocasse o teu pela
beleza e sangramento e
escrito sob uma lua-unha.
) San
Genaro Ó,
tu, que com dardo de flama Partes
o gelo da minha alma, Para
que ela se lance fremente Ao
mar de sua suprema esperança: Sempre
mais clara e mais sã, Livre
na lei mais amorosa - Assim
exalta ela teus milagres, Belíssimo Januário! * O
embrulho líquido, mergulho
abissal no elemento móvel e
FEMMINIELLO. Anfíbio-fêmea
tatuada No
couro Camuflado
na escama prateada. Tatoo
azulada, aureolada, cintilada
que a trans forma em menino-peixe. * Em
segredo sujeita o herói (travestido
do que sonha) a
sua trama, desvio e
TRANS (Ícaro
inventou a queda para
oferecer seu corpo à
Iemanjá) FORMAÇÃO em heroína. * A
SEGUNDA NATUREZA (respiração
em bolhas, toque
gelado dos seres liquefeitos
e entregues à
diversidade e afeitos à
algazarra das algas e
ramas; entremeadas, enganchadas,
medusadas nos
na nas no em), afoita, imprescindível * A
queda do corpo dissipa
e dissimula a
face, flâmula trêmula, no
LAGO ESPELHANTE
de
Apolo : Herói
devolvido
(armadura de
músculos) ao fundo, ao chão. * A
leveza aniquila superfícies. Leveza-rarefação, corpo
envolto em bolhas de ar sob
um céu aquoso, no
limiar de mundos turvado
e oxigenado (único
som é próximo do
estalido de
hímen de homem). À
tona, lama na boca, a
LÍNGUA LETAL de um dialeto, o
lótus aflora (meu nome de guerra). * No
céu de centauro, égua
mítica, ÉGUA
GUIA, de
asas e ancas velozes e
dedos de Lilith; mil
e uma noite na
ponta da língua, a
órbita zen, o vôo cego no
dorso, arcabouço de luz, ao
centro do poço negro, do
calabouço cósmico sem
janelas, no
céu de Centauro, bilhões
de sóis acendem. *
Das
metamorfoses,
faça
sua oração ao buda
Bianca Lafroy (Curitiba/PR, 1975). É travesti, poeta e ficcionista. Seu livro Embrulho líquido já coleciona admiradores e promessas de publicação. Trabalha nas ruas de Curitiba.
boa noite,
solidão Sala de bate-papo número 5. Marquei encontro aqui com Outono. Ele deve chegar às 2. Ainda faltam alguns minutos. Vou até a sala 3 ver se Torpedão está por lá. Ontem ele estava meio pra baixo. Havia brigado com o irmão. Coitado. Não se dão e a mãe sempre apóia o outro. A conexão hoje está péssima. Não agüento esse provedor. Vou passar e-mail reclamando. Isso é um abuso. Um serviço tão caro não pode ficar assim. Não...
Aqui não. Ele não veio. Torpedão deve estar dormindo. Vou escrever
o e-mail de reclamação. Até lá, Outono chega na sala e podemos engrenar
um bom papo. Vou responder àquele e-mail do meu grupo de amigos virtuais.
Tá pensando o quê? Não vou ficar com o desaforo daquela moça atravessado
na minha garganta. Vou responder à altura. Ela vai ficar fula da vida,
azar. Esse Outlook! Hoje, não quer abrir. Trava a todo momento. Deve
ter sido aquele e-mail do Xerife que tinha scripts sujos. Cachorro!
Não sabe fazer scripts e fica mandando essas porcarias pra gente.
Vou ter que passar o Norton. Ontem recebi uns quatro vírus. Usuário
desconhecido. Por que será que tem gente ruim assim? Ah, esqueci,
preciso responder esse questionário de pesquisa. Vão dar prêmios para
os cem primeiros que chegarem. Nossa! Quanto compromisso eu tenho
essa noite! E esse MSN que não pára de me chamar. Não vou autorizar,
não. Quem será agora? Ah, é Princesa. Conheci-a numa lista de obesidade.
Ela perdeu quinze quilos. Estou tão gorda! Saí da lista de vergonha.
Também, ninguém me conhece. Não sei porque fiquei com vergonha. Era
só ter mandado outra fotografia de alguém que lembrasse a Julia Robert.
Quem vai saber? Tenho
que trocar minha senha no provedor. Já faz algum tempo que não troco.
Ai, esqueci de ver meu saldo hoje. Vou ligar a impressora. Ontem ela
não funcionava. Tenho que desinstalar e reinstalar o programa. Deu
defeito. Arquivos corrompidos. Ainda tenho que ir naquele site dos
discos voadores. Ontem escrevi pra eles. Imagina! ET em Barra Dura.
Só se for o prefeito de lá. Ele, sim. Parece um ET. E a foto que mostraram?
Dava pra ver que era montagem. Tenho que responder o cartão de Fada
Madrinha. Ela é tão delicada! Ihhh,
o Outono. Esqueci dele. Até agora nada. Que engraçado esse cara. Diz
umas coisas pra mim, que deve dizer pra todas. Mas, é bom ouvir. Mesmo
que seja mentira. Ele quer se encontrar comigo, mas está sempre adiando,
inventando um problema. Deve ser casado. E daí? Eu também sou. A mulher
dele deve estar roncando, como ronca o meu marido no sofá da sala.
Ronca e baba. É um chato. Há tempos a gente não transa e agora nem
conversa mais. Ainda bem que existe a internet. Saio
daqui com a sensação de ter conversado com o mundo inteiro. Nossa!
Acabo de me lembrar: tenho que dar a receita de camarão pra uma amiga
francesa. Fiquei de enviar ontem, mas são tantos os compromissos que
tenho, me esqueci. E aquela fofoqueira? Foi contar nosso papo pra
outra. Deu fofoca. As palavras escritas são diferentes da linguagem
falada. Aqui não nos olhamos nos olhos e as conversas podem ser mal-interpretadas.
As entonações, os gestos, não existem. Isso é perigoso. Em todo grupo
que freqüentei, deu confusão por isso. Falta o olho no olho. Depois,
os níveis sociais são muito diferentes e certamente isso entra em
choque na hora de se esclarecer algo. Não faz mal. O melhor é trocar
de grupo e começar tudo de novo. Uma vez, num grupo de cozinha, inventei
uma receita nova. Uma outra componente, dois dias depois, disse que
a minha receita deu dor de barriga no marido dela. Ora, bolas. A minha
mistura? Não seriam os ingredientes dela que estavam vencidos ou estragados?
Ou o marido que estava predisposto à doença? Não. Foi a minha receita,
ela disse. É claro que brigamos. Também não tenho sangue de barata. Uma
tal de Foca uma vez me contou que conheceu o namorado na net. Eram
felizes, mas o tal namorado era viciado em computador. Quando ela
saía, ele conectava. Um dia ela chegou em casa, pegou o micro e quebrou-o.
Espatifou-o inteirinho, no chão. Sabe o que aconteceu? Ele fez a mala
e foi embora. Disse que sem a net era impossível viver. Ela chorou,
mas comprou outro computador e começou a navegar de novo. Encontrou
com ele novamente na sala de bate-papo que freqüentavam e voltaram
a namorar. Só que cada um na sua casa e no seu computador. Às vezes,
encontravam-se pessoalmente. Mas brigavam
muito. Aí, íam pra casa, faziam a conexão e pronto. Tudo em paz. Nossa!
Três e meia da manhã. Achei o Torpedão! O quê? De baixo astral de
novo? Manda esse seu irmão catar coquinho no asfalto! Vou indo, tá?
Preciso encontrar um amigo em outra sala. Tchau, até amanhã. Te cuida,
hem? Aqui
está: Outono. Fala, meu amor virtual, fala ao meu ouvido tudo o que
quero ouvir hoje. Que coisa boa é sonhar com você. Que coisa boa é
imaginar o que você é, mesmo
que não seja. Pedaço da minha noite. Pedaço do meu mundo inteiro.
Hora em que a minha imaginação pode ser manipulada e tornar-se realidade
momentânea. Dama do meu jogo de xadrez que derruba todas as peças
do meu tabuleiro. De você eu só ouço delicadezas. Você só me faz rir.
Só me conta coisas boas. Nenhum problema. Nenhum desaforo. Só descansa
o meu coração. Só me manda beijos. Só me encanta. Pena que você só
exista dentro dessa tela. E o meu medo de tirá-lo daí é justamente
esse. O medo de você não ser mais o meu Outono. O desfolhar seco e
amarelo de uma fotografia colorida que brilha na minha mente e acompanha
o meu coração nas horas em que penso estar sozinha. Boa noite, Outono!
teatro
das letras Eu
só queria ir ao teatro. Uma peça longa, calma, de uma voz só. Outros
personagens derrubariam o encanto, a serenidade. Mas já era tarde
para se comprar um ingresso. O espetáculo começaria dali há trinta
minutos. Valia a pena tentar. Sou um homem das letras? Não, sou mais
bonito no espelho. Arrumei-me rápido. Tinha que chegar na bilheteria
com as notas na mão e o pescoço desamparado. Se me negassem a entrada,
cortaria-o e voltaria para casa mais leve. Se eu entrasse na peça,
minha cabeça ficaria mais leve e a minha vida cortada. Só precisava
de um casaco e, no caminho, um espelho. Já falei, sou mais bonito
no espelho. Tranquei o apartamento como se tranca o passado. A vida
se manteve calma, lá dentro, enquanto meu pescoço tomava um ar. O
teatro era duas quadras e meia seguindo no sentido para cima, sem
fazer curvas à direita. Tinha que correr um pouco. Lembro-me que gostei
da idéia. Refrescaria também meus olhos. Como
de costume, era de noite. Meu bairro não é um dos mais calmos. Corri
do mesmo jeito. Não queria saber da violência urbana, afinal sou um
homem formado por letras. Não, enganei-me. As pessoas que estavam
na rua estavam calmas, tranqüilas, rindo, como o meu passado trancado.
Os bares, por sua vez, estavam cheios, amontoados, quentes, como o
meu pescoço enrijecido. Minha barba, nem muito grande e nem muito
espessa, deleitava-se com o frescor da noite e o frio de julho. Tenho
que confessar que ela é um pouco arredia ao calor e ao vermelho. Acho
que é por ficar na parte de cima do... ah, vocês já sabem. Naquele
dia, a calçada estava meio torta, indo e voltando, confundindo meus
pés. Eles tinham que ficar voltando e indo, como sempre, mas acompanhando
a calçada. Tinha que revezar entre olhar para o chão e olhar para
o céu. O primeiro para eu não trocar o ritmo. O segundo por ser um
costume bobo. Minha jaqueta, de couro e marrom, ricocheteava-se nas
minhas costas. Elas brigavam insistentemente, sem parar e sem culpa.
Minhas pernas, seguindo o frenético e pontual ritmo de meus pés, cansavam.
Duas quadras, para o meu pulmão, eram duas léguas. Mas o problema
era a meia quadra restante. Cheguei
sufocado na bilheteria. Peguei as notas amassadas, desamparei meu
pescoço e sorri. Um sorriso falso, seco, nervoso. Existia a possibilidade
de dali há alguns segundos eu não mais ter dentes. Aliás, teria, mas
o chão não responde à simpatia. Baforei um pouco no vidro que me separava
do vendedor. Vi o meu reflexo abafado, torto, opaco. Sabia! que era
só no espelho que eu era mais bonito. O vidro gosta de mentir, provoca
a sensação de proteção quando o deixa desprotegido do principal perigo:
a visão. O homem, calvo e brilhante, vendeu-me a minha vida cortada.
Pelo menos, teria a companhia do meu carrasco, do ator. Pela fila
que não tinha para entrar, percebi que a dor ia ser mais forte do
que imaginava. E começou também mais cedo do que eu esperava. Ainda
me restavam uns cinco minutos antes de começar a tortura, e por quê
não?, o espetáculo. Minha bexiga pedia socorro para tirá-la da dor
que é ser uma prisão. A bexiga é um dos órgãos mais solidários, não?
Não agüenta prender, sente dor, repulsa. Ela gosta de soltar, libertar
o que fica parado em suas paredes. Concluí que eu deveria seguir seu
exemplo e ser solidário, como ela. Deveria dar o prazer à bexiga de
libertar o que segurava. Fui ao banheiro e foi onde vi. Um espelho
grande estava à minha espera. Meu reflexo, pelo que vi, não gostou
muito desse encontro. Eu sou um homem das letras?, ele me perguntou.
Como você pode perguntar isso para mim? Confesso que foi o máximo
que eu poderia pensar. Sim, eu sei, poderia ter falado que não, eu
era mais bonito no espelho, mas era ele que estava me questionando!
Não me culpem! Mas, no momento, eu não poderia lidar com aquilo. Eu
tinha que ter minha vida cortada. Eu paguei por isso! O
primeiro apito avisando que o espetáculo iria começar já estava no
palco. Entrei e procurei meu assento, minha cadeira. Era de numeração
ímpar, como o meu pescoço. Achei-a. Por precaução, procurei por fios
que poderiam estar ligados a ela. Ufa! não os achei. Mas como eu sou
bobo! Minha vida vai ser cortada, não tostada! Eu paguei por isso!
O segundo apito fez companhia ao primeiro. Como eles ficam irritantes
juntos. A luz parece ter concordado comigo e saiu. E as cortinas se
abriram. Minha
tortura começou branda e suave. Só uma pessoa falando, despejando
as letras, as palavras. Cuspindo-as como pregos. Eu, da cadeira, desviava.
Eu não podia deixar ser atingido, tinha que desviar. Eu sei que eu
tinha pagado por aquilo, mas não tinha meios para agüentar aqueles
objetos frios secos e pontiagudos perfurando minha pele grande lisa
quente. Como ele podia continuar com aquilo? Ele nem se importava.
Não queria saber quem seria atingido por sua ingênua simulação de
algo tão pesado e complexo. Era apenas o suporte, não a causa. E continuava
cuspindo de forma constrangedora. E eu desviando. Mas, calma aí! Eu
paguei para ele cortar minha vida, não minha pele! Parei de desviar.
Sentia os projéteis me atingirem e passarem. Prestei atenção em cada
um, sem desviar. Minha pele estava intacta. As
duas horas passaram voando, como os pregos. Os vãos que os cortes
fizeram em minha vida permitiram uma leveza branda. Caminhei sossegado,
sem preocupações, com menos vida para sustentar. Aconteceu o contrário
do que eu imaginava. Minha cabeça ficou mais pesada por ter comprado
as entradas. Não tinha mais que correr para voltar para minha casa.
Meu passado estava seguro lá, rindo e se divertindo. E eu mais leve.
Andei pelas calçadas e estranhei. O ritmo delas estava igual aos dos
meus pés. A rua estava tranqüila. As pessoas já não estavam mais por
lá, nem os bares. Fui descendo, voltando para casa. Minhas pernas
relaxavam. Minha barba deleitava-se. Meu casaco estava calmo. Foi
quando eu a encontrei, subindo pelo lado oposto ao meu. Ela
estava diferente. Acho que foi porque deixei meu passado em casa.
Cumprimentei-a. Comigo está tudo bem. Não, não, acabei de voltar do
teatro. É, realmente, as noites nessa época do ano são mais frescas.
Por quê será que nunca encontramos a pessoa interessante no momento
certo? Ela era vazia para aquela hora. A conversa já estava ficando
chata, quando eu senti falta do meu passado. Ele a faria ficar tão
mais completa. Mas, não. Pode deixar, eu te ligo. E foi andando, sorrindo.
Estúpida! Acho que ela nem percebeu a ausência da minha vida. Ela
nem deve ter percebido a ausência do meu passado!, como pode? E eu
me preocupando... Continuei
andando, pensando em quanto minha vida estava completa agora. Sim,
completa! Faz parte dela ser perfurada de vez em quando. Ela espera
e anseia por esse momento. Caminhei as duas quadras e meia como se
fossem jardas. Abri a porta e senti o meu passado. Abafado, sufocante,
solitário, dependente. Senti-me mal. Não coincidia com a minha vida.
Parecia que eram antagônicos, completos estranhos. Meu coração ficou
no meio do choque, comprimido, angustiado. Não agüentava aquela colisão.
Aliás, não a esperava. Queria que o passado nunca tivesse ficado trancado.
Ou, se ficasse, que abrisse as janelas! Fernanda Bandeiras.
Casada há 8 meses, teve o fruto de seu amor antes da bênção
da Igreja, José, atualmente com um ano e 4 meses. Formada em Psicologia,
passa os dias treinando com seu filho o dia-a-dia da profissão: ele
deitado, ela analisando. Escuta rock progressivo e tem uma coleção de
filmes de terror de dar inveja a qualquer cinéfilo. Quando morrer, quer
passar a José sua obra literária; sua coleção de filmes morrerá com
ela.
nossa canção [solidão
é lava que cobre tudo] a porra da música ecoa na cabeça enquanto os
dentes travam nesse transe. puta transe imbecil. vou ter uma parada
cardíaca, eu sei. nada do eu faço dá certo, mesmo. por que seria diferente
agora? não é mesmo, sua burrinha? não é mesmo? não consigo me concentrar
nem... para me responsabilizar. delito. o que não sai da mente, e nem
talvez do coração, nem diante desse caos orgânico, é a penúltima. a dor da
perda. a dor de fechar a porta e saber que ela nunca mais será aberta.
[amargura
em minha boca sorri seus dentes de chumbo] filho da puta. filho de
uma puta. filho de uma enorme, imensa e gigantesca puta. como é que você
pôde ter coragem de fazer isso com nós dois? desgraçado. você acaba de
detonar com o casamento do século. você acaba de foder com o mundo, apenas
porque veio programado para foder, e foder, e foder. o tempo todo, todo o
tempo. como um animal qualquer, quando, não: você não era um animal
qualquer. era o animal que eu escolhi para amar. ou meu coração
escolheu... [solidão,
palavra cavada no coração] você só fodeu com o mundo. e com o mundo
todo. só isso. e com o meu mundo, em particular. e tudo por causa de
xotas. de xotas e mais xotas, para a sua impávida, porém inoperante, já
que por ora apenas imaginária, coleção de xotas. ou havia algo mais ali,
além delas? pois deixe eu te dizer uma coisa, seu bastardinho de merda:
você só tem xotas imaginárias na sua coleção de xotas. são xotas de ontem.
não são xotas eternas, e você jamais poderá tocá-las novamente. nenhuma
delas. [resignado
e mudo] eu devia te processar por uso indevido da minha imagem. por
todas as vezes que você precisou pensar em mim para gozar. e se não tenho
provas, não importa. te processo por perdas e danos. você levou minha alma
no dia em que saiu. [no
compasso da desilusão] ah, você achou que ia ficar tudo por isso
mesmo? eu, nessa viagem de merda, talvez sem retorno, e você aí sentado
como se fosse um monge leitor de mantras? e muito provavelmente, em seu
mundo, os mantras se traduzindo em xotas? se você pensou que tudo estava
acabado... você se enganou. [desilusão]
você não está sentado em canto algum, não é monge e não está sozinho.
resolvi fazer companhia a você. não porta afora, porque já não creio que
ela exista mais. mas digamos que, como aqueles xamãs, eu também possa
atravessar paredes? e dar de cara com você no lugar em que eu desejar?
[desilusão]
você mentiu para mim. você sempre mentiu para mim, porque prometeu que
nunca me deixaria. e deixou. você me deixou. como se eu pudesse ser
deixada. você nem parou para pensar no que aconteceria se eu fosse
deixada, parou? [danço
eu, dança você] que tipo de amor confesso é esse que não sabe a falta
que fez? você sabe se você mesmo existiu, realmente? ou tudo não passou de
farsa? a mesma farsa que fez de você um andarilho atrás de xotas e poemas.
poemas são letras solitárias. são só versos atrás de rimas. [a
dança da solidão] negativo, meu querido: xotas são buracos
solitários, e pouca gente lê poemas. Gladys Gamba nasceu em Ghana e vive por gana. É aspirante à independência e liberdade de expressão. Em todos os sentidos.
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